terça-feira, 24 de setembro de 2013

A Ruça



Estatisticamente falando, somos um dos países que mais tem elevado os índices de escolaridade. O facilitismo crescente da última década converteu-nos numa sociedade prolífera em cursos expresse, onde a força dos números se impôs à necessidade do saber. Passamos de uma nação de analfabetos para uma amálgama de licenciaturas, mestrados e doutoramentos, muitos dos quais nem sabemos o que são nem para que servem, que sustentam a aparência do “Ter” veiculada pela vontade de quem manda.
No início do Estado Novo, Portugal era o país com a maior taxa de analfabetismo da Europa Ocidental, mais de 60% da população não conhecia os rudimentos da escrita.
Com a ascensão do Dr. Salazar a presidente do conselho, a par da reestruturação económica, a educação foi uma das preocupações do autocrático governo. Esse esforço titânico de inverter uma tendência profundamente enraizada num povo, que estava mais preocupado em sobreviver à miséria que a frequentar os bancos da escola, acabou por dar frutos e, no dealbar da liberdade, menos de 25% das nossas almas não sabia as primeiras letras.
Era um ensino formatado pela bitola do conhecer sem compreender, que limitava o pensamento para além do pragmatismo do ler, escrever e contar, mas que lançou a estrutura base para o sistema educativo pôs 25 de Abril. As mais de sete mil escolas primárias construídas nas mais recônditas e isoladas aldeias e a colocação de centenas de regentes escolares que supriram a carência de professoras primárias, muitas das quais acabaram por frequentar o magistério e ascenderem ao estatuto de professora, tornaram possível o incremento de um novo impulso educativo que, progressivamente, tornou o acesso ao ensino mais abrangente ao nível médio e superior.
Embora, o ensino primário, em Portugal, seja obrigatório desde 1835, só com o salazarismo foi cumprida a imposição legal de três anos, sendo o exame da 4ª facultativo. Essa obrigatoriedade colidia com o interesse dos progenitores, mais interessados no presente do que no futuro dos seus educandos. Os filhos, desde tenra idade, contribuíam para a débil economia familiar, sendo mais úteis a guardar cabras que a soletrar o abecedário. Por isso, as faltas eram recorrentes, tendo os professores que aplicar coimas para convencer os mais reticentes.
 A primeira professora a ser colocada na Gralheira, ao abrigo desta renovada imposição, foi a “Ruça”, assim alcunhada devido ao tom aloirado do cabelo. Essa senhora tornou-se o arquétipo das sevícias escolares, tal era a brutalidade com que admoestava os alunos.  
O terror que infligia aos miúdos era tal, que o “Canadiana”, por não ter muda de roupa dos “dias de fazer”, atirou-se ao tanque do Ribeirinho para não ir à escola.
Outros recorriam a truques mais dissimulados para mitigar as vergastadas da vara de salgueiro que pairava ameaçadora sobre as suas cabeças, aquando das idas ao quadro. Mesmo nos dias quentes de junho, as raparigas não dispensavam o uso de capucho e os rapazes casaco de burel com enchumaços no antebraço, para amortecer o ímpeto das varadas.
A mestra batia e os pais mandavam bater. Por isso, os petizes comiam e calavam para não levarem em dobro, caso se queixassem no lar. Apenas a “Tia Aurora” achou ser demais o seu “Toninho” ser privado do parco almoço, só por ter dado cinquenta erros e oito faltas, nas cinquenta palavras que compunham o ditado.
Foi à escola e disse:
-Sr. Professora, o meu Toninho não vem almoçar?
Ao que a senhora respondeu de pronto:
Não!..Porque deu muitos erros.
A mulher deu meia volta, mas tornou a bater à porta e, quando esta foi aberta, escachou uma piorna na cabeça da professora, libertando o seu “Toninho”.
O caso foi para tribunal, foram ouvidas as testemunhas, em particular o do “Tiu António Francisco” que resumiu o pensamento vigente na época:
-Sr. Dr. Juiz, ela é um bocado ríspida, mas com esta canalha não pode ser de outro jeito.

Também foi lançado um programa de alfabetização de adulto, em horário pós laboral, com incentivos pecuniários por cada aluno que  concluísse com aproveitamento. Para uma regente que ganhava quinhentos escudos mensais, apenas nos meses que leccionava, aquele dinheiro extra era muito bem-vindo. De conluio com o professor delegado para inspeccionar os exames, todos os alunos propostos saíam diplomados.
O “Fira” foi um desses estudantes maduros que, apesar de lhe terem facultado o texto do ditado na véspera, errou a escrita das três primeiras palavras. O inspector, perdido de riso, gracejava:
-Ó Sr. Porfírio, então eu dei-lhe uma cópia do ditado e o Sr. começa desta maneira!
 Ao que o das “ Veias” respondia tremelicando.
-Ó Sr. Professor, eu estou cá com um nervoso.
Mas, nervosismos à parte, tal como nas novas oportunidades, também o examinado conseguiu os seus intentos.
 A “Ruça” não era benquista pela rapaziada que, quando podia, não perdia uma oportunidade para se vingar. Uma das coisas que mais a acirrava era irem roubar ovos aos ninhos, se fosse algum aluno a tareia era certa, mas o “Bamburra”, já passado da idade de frequentar a escola, não estava debaixo da sua alçada. Certa ocasião, resolveu rapinar um ninho e foi bater à porta da professora, quando esta a abriu, estrelou-lhe os ovos na cara. De imediato, o marido da senhora, alertado pelos gritos da consorte, deu caça ao atrevido, mas os pés descalços do fugitivo faziam rasos muros e socalcos, enquanto os sapatos polidos do perseguidor escabreavam-se por bordas e arribadas, mal lhe pondo a vista em cima.
Era assim, o ensino naquele tempo, não seria o melhor, mas tinha as suas virtudes. As regentes supriam as suas limitações com empenho, trabalho e dedicação a um emprego precário, mas que era muito mais do que teriam almejado. O estado pagava mal, mas conferia aos seus funcionários um respaldo de respeito e autoridade inquestionáveis.
 Actualmente, quando vejo profissionais do ensino trabalharem anos sem vínculo efectivo, mal pagos e desrespeitados por educadores e educados, com a conivência de uma política eleitoralista que trabalha para a estatística, não vejo futuro nesta nação de neo-analfabetos.
No entanto, se quisermos fazer uma análise séria, 30% dos nossos docentes tinham de ser banidos do ensino. Não basta ter conhecimentos técnicos do que se lecciona, é necessário ter competências pedagógicas e, acima de tudo, gosto pela profissão.
Chego a esta conclusão através da experiência com o meu filho que frequentou o 5º ano: em que vi incompetência, laxismo e a falta de vontade enraizada no horário zero e no conforto dos escalões da antiguidade.
 Mas, também vi gente capaz, com valências firmadas, que impõem respeito e obtêm resultados, sem se escudar na retórica veiculada pelos sindicatos.
É urgente requalificar e reabilitar uma classe que deve ter orgulho do serviço que presta à sociedade, para que lhe devamos a consideração merecida, o respeito necessário e a retribuição justa.
 Mal está o país que não dignificar os seus dignos formadores.
Com vontade política, um pouquinho de “Ruça” e uma pitada da velha máxima dos antigos educadores- chegue-lhe para baixo- talvez, não fosse difícil meter o ensino nos eixos.
Vítor Silvestre

sábado, 7 de setembro de 2013

O Descante



Desgarradas, cantares ao desafio e outros topónimos afins denominam uma tradição popular muito enraizada no centro norte de Portugal. Ainda hoje, estes eventos são apreciados por grandes plateias de admiradores, convertendo os seus protagonistas em cantadores afamados. Nas romarias minhotas, como a de São Bartolomeu, a desgarrada é um ponto incontornável das festividades, apresentando artistas consagrados que, com as suas quadras picantes, arrebatam praças de gente.
Também nas ilhas, o cantar de improviso se manifesta, com especial destaque para as Velhas da Terceira. Esta moda da ilha açoriana foge à simplicidade das quadras, apresentando uma estrutura mais complexa de uma sextilha dividida em dois tercetos, rematados por uma quadra. Para melhor se perceber este cantar misógino, oriundo das cantigas de escarnio e maldizer medievais, transcrevo uma destas composições da autoria de Maria da Conceição Fernandes, a “Garajau”, uma das poucas cantadeiras que se imiscuiu neste mester dominado pelos homens, e outra de Henrique Teixeira de Sousa, o “Turlu”:

Meu avô e minha avó                                                                  Como sou muito casmurro,
(Aquilo foi um dia só)                                                                  Canguei uma velha e um burro
Foram brincar ao entrudo.                                                          E fui lavrar p`ra um serrado.

Minha avó de cima de uma caixa,                                              O burro atirava à velha,  
Esguichava por uma borracha;                                                  A velha atirava ao burro,
Meu avô por um canudo.                                                            Que me partiram o arado.

Disse minha avó zangada:                                                         Eu ri tanto nesse dia,
- Não deitas mais uma pinga,                                                    E ri com satisfação;
Se não dou-te uma pancada,                                                     A velha deu tanta coiçaria
Que te quebro a seringa.                                                           Que atirou com o burro ao chão.

Pelas bandas de Montemuro, este cantar ancestral é também denominado por descante. Se analisarmos a questão, o termo é apropriado, pois compete aos opositores contradizerem-se, desdizendo a ideia veiculada pelo adversário, descantado o que ele cantara. Havia cantadores “profissionais”, como o Carriço e o Diogo, que eram contratados para descantar em festas e arraiais, alguns amadores de qualidade e muitos com pouco saber, mas com grande vontade. Por norma, se houvesse vinho, não faltava pelas redondezas quem descantasse toda a noite, por vezes, o difícil era faze-los calar.
 Contou-me o “Manquito”, que numa ocasião em Alhões, freguesia da sua consorte, um desses cantadores de ocasião emperrou na seguinte quadra:

Eu fui um dia a uma feira,
Vender quatro pares de alpergatas;
Quatro pares de alpergatas
A uma feira fui vender.

Tiveram que o afastar para dar lugar a outro conterrâneo mais versado na arte, começando de improviso:

Eu nunca usei “grubata”,
Nem nunca a soube pôr;
Mas vem aí o meu primo,
Que foi por os bezerros a mamar.

Perante a aprovação geral, o “Manquito” disse admirado:
- Mas não rimou?!
Ao que os presentes retorquiram de pronto:
- Não calhou!..Não calhou…mas é verdade!
Por ser verdade, também nessa freguesia, estava o Sr. Acácio Ribeiro, da Gralheira, a cantar com o “Clino”, quando o seu vizinho Alexandrino, em virtude deste estar a levar uma lição, bateu nas costas do Ribeiro e lançou-lhe o desafio:

Não tens barba nem bigode,
Que raio de “home” és tu?
Deitas as calças abaixo,
Tens a cara da cor do cu.

O “Cuco” deu um desande no calcanhar da bota e ripostou:

Tens o focinho como um porco,
Os olhos como os dum gato;
Comeste sempre numa pia,
Nunca comeste num prato.

Perante semelhante resposta, o desfigurado Alexandrino ficou branco como a cal da parede e os tocadores, contagiados pela hilaridade geral, pararam de tocar e disseram:
- Não vale a pena continuar, ninguém se entende com o Sr. Acácio.
Existiam duas categorias de temas abordados pelos intérpretes: os eruditos, que glosavam sobre episódios relatados nas sagradas escrituras; e a matracada, versos mundanos de muita picardia. Embora os primeiros fossem admirados pelo saber, num meio de iliteracia generalizada; foram as quadras dos segundos que chegaram até nós, transmitidas pela memória das gerações.
Um dos mais destacados improvisadores analfabetos foi o “Espojeira” de Cotelo. “Compostor” de loiça, mais remendado que um saco de amostras, entre um “gato” e outro colocado nalguma travessa, este “António Aleixo” aguçava o engenho natural para se digladiar com quem o desafiasse.
Numa ocasião foi convidado pra atuar em Alhões, em parceria com a Arminda do Veado. A Arminda era das poucas cantadeiras, até ao aparecimento da Antónia de Guimarães na romaria dos remédios, que figurava no rol dos cantadores. Por casualidade, os dois artistas encontraram-se com antecedência nas Portas de Montemuro; como era tempo de cieiro e o sol convidava à soalheira, puseram-se à conversa encostada a um penedo. Fosse pelo cálido reposteiro ou porque a natureza o pedisse, descambaram para a vias de facto. A Arminda, tão repentina nos atos como nas cantigas, sem espartidos interiores que a estorvasse, depressa ficou em posição, mas o “Espojeira” abraços com o nagalho que lhe servia de cinto, levou mais tempo que o recomendado, o que fez fenecer a vontade da parceira, deixando-o em jejum. Mas bravatas à parte, o compromisso tinha de ser honrado e, na hora marcada, compareceram à cantoria.
A ressabiada Arminda tentou retaliar com o episódio, usando com metáfora uma cena de caça:

Estava a lebre na cama
E o caçador de joelhos,
Mas deixou fugir a lebre,
Por culpa dos aparelhos.

O experimentado cantador não se atrapalhou e, como de costume, saiu-se com obra acabada:

Estava a lebre na cama,
É verdade, não o nego;
Mas a culpa não foi da espingarda,
A culpa foi do nó cego.
        
Da minha lembrança, o maior furor causado neste universo foi, como já referi, a entrada em cena da Antónia. Desde a sua aparição na dita romaria, era presença assídua em toda a parte. Tenho uma vaga ideia de a ter visto na feira da Cruz a cantar com o Diogo, de lenço na cabeça e postura erguida, debelada as arremetidas do adversário com o mesmo à-vontade com que emborcava “cortilhos” de bagaço.
Ainda hoje, o descante mantem-se firme e hirto na cultura do povo. É popular, mas não é pimba, pois advém de uma tradição genuína, forjada na garganta de homens simples, de espirito arguto e humor sagaz; verdadeiros poetas populares que possuem o dom inato do improviso.
Vitor Silvestre

terça-feira, 2 de julho de 2013

Alagoa de D. João



Alagoa é um planalto secundário do maciço de Montemuro. A sua designação advém da existência de uma considerável lagoa sazonal, resultante da saturação do aquífero durante as precipitações invernais. Na maioria dos anos, seca nos meses mais quentes, mas o enorme reservatório subterrâneo abastece as nascentes, mantendo o altiplano verdejante, proporcionando pastagem a inúmeras cabeças de gado. Por isso, as aldeias circundantes disputavam o direito de usufruto desta vasta planura. Não reclamavam a sua posse, porque não era terreno baldio. Segundo reza a história, pertencia ao tal D. João que, em data incerta, tê-la-á ganho numa aposta, ao conseguir circundar toda a sua extensão no período de uma hora. Realizou a façanha montado num fogoso cavalo que, segundo se conta, terá sucumbido, por exaustão, ao terminar a proeza.
Como o dono não dava importância àquele seu domínio, as povoações limítrofes apossaram-se daquela terra devoluta sem oposição legal, mas a demarcação do quinhão que competia a cada consorte nem sempre gerou consenso. Houve várias querelas menores, mas a mais acérrima levou os de Cutelo a apreenderam umas vacas da Panchorra e outras da Talhada por se encontrarem dentro dos limites aleatoriamente estipulados. Perante tal ocorrência os Panchorrenses tocaram o sino a rebate e armados como podiam correram para resgatar os animais. Mas, ao chegarem a Alagoa, depararam-se com uma frente bem formada, encabeçada pelos Camilos, o que fez fenecer a braveza com que vinham. Os da Talhada agiram com mais ponderação e foram apresentar queixa às autoridades a Lamego. De imediato, o comandante do destacamento enviou uma patrulha, acompanhada pelos queixosos, para resgatar os animais retidos indevidamente. Deixaram a viatura no Alto de Gosende, onde terminava a estrada, seguindo a pé em direção à Veiga, onde as vacas pastavam. Depois de identificados, os bovinos foram reunidos e postos em marcha, escoltados pelos guardas. Mal tinha iniciado a caminhada avistaram um forte contingente armado de paus, chuços, forquilhas e demais artefactos que se dirigia na sua direção para cortar-lhes a retirada. Pois, quando se aperceberam das intenções da G.N.R., foi dado toque a reunir e todo o povo se apressou a comparecer para o confronto. Apenas os mais escarmentados, como o “Ribalta”, inventaram uma desculpa para não integrar aquela missão suicida.
Contou-me o próprio, numa das vezes que veio colmar para a minha família, ter dito não poder ir, porque estava a tomar conta de um filho de colo. No entanto, confidenciou-me que o motivo nada teve a ver com as suas obrigações paternais. Embora não nutrisse nenhuma simpatia pelas autoridades, com as quais tinha várias pendências por resolver, se pudesse atirar-lhes uma pedra do vão de uma janela, ou embosca-los numa esquina não perderia o ensejo, mas enfrentar guardas armados em campo aberto, era um ato tresloucado que não estava disposto a cometer.
Assim não pensaram os demais, pois que podiam fazer três soldados e um cabo contra uma aldeia inteira. Avançaram numa correria desenfreada sobre o pequeno contingente, que se preparou para enfrentar aquela carga determinada. O comandante da patrulha deu ordem para que ninguém disparasse sem indicação sua. Pediu a espingarda a um soldado, rodou o ferrolho para introduzir uma munição na câmara, apontou calmamente e disparou. A velha Mauser, cuja precisão e fiabilidade lhe valeram presença nas duas guerras mundiais, não desiludiu o bom sniper que a manuseava, alojando um projétil na parte superior de um joelho que se adiantava da multidão. Indiferentes à queda do companheiro, não se detiveram, até que outro joelho foi atingido. Perante a infalibilidade do atirador e na iminência da próxima bala ser para matar ao invés de ferir, debandaram para a segurança do casario. A contenda ficou por ali, mas há quem diga, se o confronto se agudiza-se, haver ordens para montar uma bateria no Alto de Gosende e arrasar Cotelo. Não creio que se chegasse a tanto, mas… se atentarmos na época dos acontecimentos, o poder centralizado usava os meios necessário para fazer cumprir a lei e era pouco tolerante com altercações da ordem pública.
A refrega saldou-se em dois feridos tardiamente assistidos, quando procuraram intervenção médica já a gangrena se tinha instalado e não havia outra solução para além da amputação. Um dos atingidos não acatou as indicações clinicas e morreu orgulhosamente íntegro, o outro não esteve com tais pruridos e ficou coxo, mas vivo. Ainda o conheci, com a sua prótese de carvalho rastiço, rematada por uma rodela de pneu.
Desde então não se registaram incidente maior, até que o dealbar do evento das eólicas despertou novos interesses e fez correr alguma tinta pelos tribunais.
 Nos últimos anos viu a sua paisagem ser decorada com algumas dezenas de aerogeradores; há pouco gado e ainda menos são os pastores que o apascentam; os carreiros deram lugar a estradas e os automóveis reformaram almocreves e azémolas; já nem sei se as rãs entoam o seu canto nupcial na lagoa que lhe dá nome!...
Mas, apesar de tudo, a sua planura permanece impávida e crua ao passar do tempo, numa vastidão antiga, onde o olhar se espraia e a voz se cala.
Vítor Silvestre

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A “Zargata” com os de Alhões


O bairrismo exacerbado, aliado à pobreza e suas associadas, sempres despoletaram pequenas guerrilhas entre os diversos povoados que ponteiam a paisagem de Montemuro. A maioria não passava de incidentes menores, que não ia além de orgulho ferido, mas também existiram casos mais graves, até de morte.
Os da Gralheira não eram dos mais afoutos nesse mester, embora haja relatos de uma ou outra desavença, por norma, não era gente que provocasse deliberadamente o confronto. Apenas há a salientar uma cena de agressão, com laivos de covardia, ao Sr. Abílio de Bustelo, no rescaldo de uma cena de pancadaria ocorrida na vinda da Feira do Fojo. Para além deste incidente, o confronto com os de Alhões, no dia da padroeira, foi a maior contenda em que os meus conterrâneos se viram envolvidos.
Na origem deste incidente esteve uma troca de palavras mais azedas entre o Zé do Belchior e dois indivíduos daquela freguesia, nas antevésperas da festa da Sra. da Graça. O caso foi de pouca monta, mas os fulanos despeitados acirraram os comparsas e, no dia da celebração do orago, a Gralheira foi invadida por quatro dezenas de pauliteiros, com intenções pouco amistosas. Enquanto se celebrava a eucaristia, aquela trupe ruidosa dava arruadas ao povo, numa total falta de respeito para com a celebração em curso. Mas, durante a procissão, a presença do regedor e dos cabos de ordens, inibiu-os de cometer qualquer desacato. No entanto as suas atitudes não passaram despercebidas, como prova o comentário do “tiu Davide”, durante o almoço, para os seus sobrinhos “Crioilo” e “Pontes”:
- Hoje, nesta terra, vai haver uma grande “zargata”
Ao que o avô dos rapazes, na sua ingenuidade, retorquiu:
-Isso está bem!...Ia haver “zargata” no dia de festa!
 Ao que o “Alicate” reafirmou pensativo:
- É como vos digo, ou então…não há homens na Gralheira…
A conversa ficou por ali. O arraial prosseguiu normalmente, pois os arruaceiros, depois de terem feito a arruaça e saídos impunes, deram-se por satisfeitos com a demostração de ousadia e retiraram-se para o Cantinho, onde o “Vila Maior” tinha uma tasca improvisada na loja das mulas. Aí bebiam e cantavam, mas como era desviado do local das festividades, não incomodavam, nem eram incomodados. No entanto, quis o destino que o dia não terminasse sem incidentes.
 O “Tiu António Regedor”, para lá da meia-tarde, entrou na tasca do “Gabirú”; um dos atrevidos, que lá tinha ido comprar cigarros, começou a insulta-lo e a proferir ameaças. O regedor, por precaução, quando chegou ao arraial convocou as suas ordenanças, ordenando-lhes que fossem buscar as armas. A ordem foi sendo desvirtuada de boca em boca, até se transformar num rumor que dizia haver barulho no Cantinho. Aos poucos, algumas pessoas foram-se aproximando do local para averiguar o dito.
Um dos primeiros a chegar foi o “Tiu Isaías”, homem destemido, apreciador de provas de força e rasgos de valentia; outro foi o “Tiu Amadeu do Maximiano”; Seguidos pelo “Crioilo”, um rapaz já espigado, e o irmão “Pontes” que pouco mais era que um adolescente e tentava demover o irmão de se meter no potencial conflito. Ao chegarem ao local, um tal “Campeão” deu ordem de comando:
-Formai roda!
A falange dispôs-se num semicírculo com as costas protegidas pela casa do “Lixandre” e a frente, de maus eriçados, voltada para o largo.(Quem me contou a cena foi o “Pontes”, que tinha subido a um pátio e podia ver com clareza o desenrolar da cena).  A partir daí os acontecimentos precipitaram-se, enquanto o diabo esfrega um olho, já o Isaías; que estava armado de um estadulho curto e afiado, retirado de um carro de vacas; tinha saltado para o meio das ostes inimigas. Quando entrou no âmago da formação, todos os porretes lhe caíram em cima, mas as pauladas entrechocaram, evitando que fosse atingido pela maioria e amortecendo parte do impacto das que lhe bateram. No combate corpo a corpo, a proximidade torna pouco manejável uma arma de maiores dimensões, enquanto o pequeno estadulho era usado como um gládio para espichar o ventre aos inimigos.
Na tentativa de derrubarem aquele temerário adversário que irrompia pelas suas fileiras insensível aos golpes, desferindo chuçadas certeiras; aliada a uma parte que persegui o “Tiu Amadeu” até ao fudo da rua, rematada por uma quelha, onde se entrincheirou; mais uns quantos que encurralaram o “Crioilo”; desviou-lhes atenção dos outros combatentes que foram chegando à refrega. Um dos que entrou em cena foi o “Bombo”, cuja ajuda foi providencial para safar o “Tiu Armando” que, já com duas brechas na cabeça, defendia-se a custo dos ataques de que era alvo. Vindo pela retaguarda, retesou o seu corpo rechonchudo, fincou as pernas curtas e com a firmeza que os pequenos e papudos dedos lhe permitiam, acertou “à mão tenta” nos que o assediavam. Quase em simultâneo apareceram os cabos de ordens de armas em punho, o que fez debandar o que restava da formação inicial. Desorganizados e dispersos, eram alvos fáceis da perseguição levada a cabo por toda a freguesia. Fugiam os fracos e soçobravam os valentes perante o número crescente de opositores. O denominado “campeão” era merecedor da fama que o precedia, nunca virou a cara à luta, apenas sendo derrubado pela falta de apoio dos seus camaradas e pela desproporção numérica que isso originara. Mesmo caído por terra, o seu espirito indómito não se rendia e tentava teimosamente levantar-se, foi necessário a “Pássara” deitar-se sobre o seu corpo, para impedir que as agressões continuassem. Pela sua bravura, foram-lhe prestados os primeiros socorros, o que contribuiu para que não guardasse mágoa dos adversários, mas dos companheiros. Mais tarde, ouviram-no dizer diversas vezes:
-Naquele dia, não devia ter batido nos da Gralheira, mas nos da minha terra.
Na retirada aconteceram várias escaramuças, pois perante um adversário ferido e desnorteado não faltam valentões de ocasião como o “Malaio”, que ao chegar aos Carvalhos disse para o “Manquito”:
- Moço!... Dá-me cá esse pau, que eu quero bater!
O rapaz, como tinha dificuldade em deslocar-se sem a ajuda do bordão resistiu a dar-lhe o que ele pedia. Entretendo, ouviram um burburinho que se dirigia na sua direção e, de imediato, disse o valente “Cá Ramalha”:
- Fugimos!
Foram-se enfiar na loja de uma vaca até passar o perigo. Quando saíram do esconderijo ainda viram um dos fugitivos saltar uma vedação de arame farpado e ficar preso pelas calças. Enquanto o homem tentava libertar-se, apareceu o Gregório, que também não primava pela valentia, mas ao ver o oponente indefeso, afincou-lhe, à falsa fé, uma vigorosa paulada que o deixou inanimado.
O último incidente digno de registo ocorreu já à saída da povoação, quando nas fragas do Penedo da Saúde um dos da retaguarda disparou um revolver contra os perseguidores. O “Mistoso”, investido de cabo de ordens, não hesitou e desfechou um tiro de caçadeira na sua direção, sendo o alvo atingido por alguns bagos numa perna, mas que não o impediu de acompanhar a retirada.
Terminada a peleja, era tempo de tratar dos feridos. O “Crioilo ”apresentava as brechas já referidas, alguns arranhões e nódoas negras nos demais, mas o “Bezarra”, ainda de estadulho em punho, tinha a cabeça numa “roca”. Só a vontade estoica de resistir, aliada há dureza intrínseca do cárneo impediram que perecesse perante a violência de tantas cacetadas. Ainda me lembro do velho Isaías estar a relatar o sucedido e indicar na careca as ténues linhas das antigas feridas.
Felizmente, aquele combate deixou pouco mais que algumas cicatrizes, ficando a questão sanada sem sequelas futuras. Aos da gralheira foi reconhecido o direito legítimo de responder a uma provocação; aos de Alhões imputada a responsabilidade pela insensatez de, sem motivo de monta, terem lançado desafios em terrenos alheios.
 Como dizia o Marquês de Pombal, quando se falava na iminência dos espanhóis nos invadirem: “Eles que venham, porque, mesmo depois de morto, são precisos quatro para retirar um homem da sua casa”.
Vítor Silvestre