sábado, 20 de março de 2010

Recordar um amigo

O advento da Páscoa, com todo o seu misticismo de morte e ressurreição, é um tempo propenso à introspecção e a uma reflexão mais incisa sobre as pequenas e grandes questões da nossa existência. Este “exame de consciência” leva-nos, frequentemente, a uma retrospectiva profunda das nossas memórias que, por vezes, alcança o estrato daquelas que já se encontram fossilizadas no subconsciente. Mas não necessitei de grande prospecção para dissertar, aludindo ao período pascal, sobre as vivencias partilhadas com um amigo. Desaparecido, mas não esquecido…
O “Samba” era assim denominado pelo facto de trautear canções deste género musical, reminiscência óbvia da sua estada no Brasil. Embarcou aos 17 anos, com parte da família, para se reunirem ao pai que se encontrava emigrado naquele país. Por lá passou a juventude e os primórdios da sua vida adulta, só regressando a Portugal já na fase da meia-idade, altura em que o conheci. O seu regresso não foi voluntário, a razão que o motivou foi o excesso de zelo no cumprimento de uma missão que lhe foi confiada. Um amigo do peito, pois estas incumbências só se pedem aos amigos, tutelou-lhe a guarda da mulher enquanto cumpria pena na penitenciária estadual por tráfico de cocaína. O “Samba”levou a tarefa muito à letra e os cuidados prestados foram além do que seria recomendado. Como tal, o incauto guardião foi confrontado com uma missiva que lhe comunicava o local, data e hora da sua morte. Perante tal cenário, achou por bem mudar-se para um clima mais temperado e menos letal para sua saúde.
Apesar da nossa diferença etária a empatia foi imediata. Talvez, porque do seu jeito tropical emanava uma aura de eterno adolescente, reflexa na forma leviana, despreocupada e até irónica com que encarava a vida e as situações mais constrangedoras do seu percurso. Entusiasmava-nos com as suas experiências: falava-nos de morenas exóticas de corpos esculturais, com dúcteis e lânguidas cinturas e da luxúria que estava ao alcance de um simples “cafuné”. Estes relatos despoletavam em nós, circunscritos a um meio ainda pautado pela antiga cartilha da moral e dos bons costumes, imagens idílicas de erotismo lascivo que preenchiam as nossas fantasias não experimentadas. Boémio convicto, dado a abundantes libações e possuidor de um espírito extrovertido, converteu-se num companheiro imprescindível nas noitadas que, invariavelmente, terminavam em arruadas eufóricas e irreverentes que tanto poderiam redundar em serenatas românticas, como em cantilenas obscenas e travessuras variadas. É que naquela época não existiam os meios que, actualmente, os nossos homólogos têm ao seu alcance. Por conseguinte, sem querer ser retrógrado, invoco um saudosismo saudável para lembrar esse tempo em que comungávamos de um espírito dinâmico e irrequieto, forjado na inexistência de factores materiais que inibem a criatividade e fomentam o sedentarismo. Partilhávamos uma amizade genuína que induzia um coeso espírito de grupo, cimentada por valores comuns preservados pelo ostracismo da interioridade.
O meu relacionamento com o “Samba” manteve-se intermitente, pois nem eu nem ele vivíamos na Gralheira. Até que um dia, após um longo hiato, regressámos em simultâneo e, por algum tempo, pude desfrutar da sua companhia de forma mais assídua. Foi nessa ocasião que o rebaptizei de “Zebedeu”, não sei exactamente a que propósito. Talvez por ter notado que uma vida de excessos tinha cobrado o seu preço, envelhecendo o seu rosto numa profusão de vincadas rugas que acentuavam a sua tez morena e, quando estava “ingasolinado”, davam-lhe um aspecto disforme e grotesco. Assim sendo, deve-me ter parecido que um nome tão bizarro se coadunava a essa invulgar fisionomia. Fosse por esta ou outra razão, o que é certo, é que no seu círculo de amigos mais íntimos o nome foi adoptado e entrou em circulação.
Mas, todo este preâmbulo é a contextualização necessária para vos contar um episódio que, seguramente, permanecerá nos anais da memória. Segundo os preceitos da Igreja Católica, os fiéis têm a obrigação de se confessar pela Páscoa, a denominada “desobriga”, e, seja por devoção ou por tradição, raros são os paroquianos que não cumprem este ritual. Em 1996 resolvi lançar esse repto ao “Zebedeu”. De início a ideia pareceu-lhe descabida, pois há muito se havia desvinculado dos ensinamentos do catecismo, mas acabou por achar que não seria má ideia aliviar, mesmo pouco convicto, a panóplia de pecados acumulados durante três décadas. Dirigimo-nos à igreja, onde já se encontravam os sacerdotes recrutados para auxiliar o pároco residente, e, algum tempo depois, o “Zebedeu” fazia a genuflexão e encaminhava-se para o confessionário. Coube-lhe em sorte o Sr. Padre Acácio, de Cinfães que, se ainda estiver entre nós, poderá corroborar este episódio. Após se ter ajoelhado, segundo o relato que nos transmitiu, o diálogo terá decorrido nestes termos:
- Meu filho, há quanto tempo se confessou?
-Há trinta e dois anos.
O confessor, que o inquiria com a fronte apoiada sobre a mão direita, elevou a cabeça e visivelmente surpreso com tão longa ausência, prosseguiu com a observação:
-Tanto tempo!?...
- É que durante esse período eu estive no Brasil.
-Hum… Esteve no Brasil… E que faltas por lá cometeu?
- Todas!...Menos matar!...
- Então também roubou!?...
-Sim, roubei!... No meu talho um kilo nunca teve mais que oitocentas e cinquenta gramas. Enquanto incentivava o cliente a olhar para o ponteiro da balança e assim verificar o peso, pressionava o prato com a ponta da faca para perfazer a diferença.
O clérigo com um misto de curiosidade e estupefacção, perante o testemunho daquele pecador tão credenciado, diametralmente diferente dos relatos monótonos e desinteressantes das “beatas”, repensou, em virtude de uma confissão tão substanciada que abrangia todos os pecados possíveis e imaginários, indagar outros aspectos desta alma pecadora. Depois de uma breve reflexão continuou:
- Qual é o seu estado civil?
- Divorciado.
- E depois do divórcio, teve mulheres?
- Muitas!..
- E actualmente?
- Nenhuma!...Pois vivo na Gralheira.
Neste ponto dos acontecimentos já o eclesiástico esboçava um contido sorriso, resignado a esta confissão tão invulgar. Considerou o inquérito satisfatório e prossegui com o protocolo instituído:
- Eu o absolvo de todas as suas faltas….Diga o acto da contrição.
- Eu só sei o antigo, que aprendi quando fui sacristão.
Perante revelação tão inesperada, colocou-lhe, afavelmente, a mão sobre a cabeça e proferiu em tom paternal:
-Bem-vindo meu filho!... É uma ovelha tresmalhada que volta ao rebanho.
Nesse momento, o “ Zebedeu” olhava o padre de soslaio e a sua aparência era mais de carneiro prestes a ser sacrificado e imolado, do que de rês gregária que torna ao redil, pois omitira que tinha sido apanhado a beber o vinho destinado à consagração e, por conseguinte, banido das funções de assessor eucarístico. Mas, talvez por este seu passado sacrista, só tenha sido penitenciado com dez padres-nosso e dez ave-marias, e, doravante, nunca mais deixou de cumprir o preceito da confissão pela Páscoa da ressurreição. Espero que este acto espontâneo e irreflectido me tenha granjeado algumas indulgências, necessárias à redenção da minha alma.
A vida do “Zebedeu” continuou calma e serena, como é apanágio das aldeias serranas, mas, como nos acontecerá um dia, o destino foi-lhe revelado. O arauto foi o relatório médico que lhe diagnosticou um tumor na laringe. A ciência fez o que pôde, mas, neste caso, foi muito pouco ou quase nada. Os sintomas agravaram-se, emudeceu, definhou e a última vez que o vi o pronuncio era de morte. Ali estava o meu amigo prostrado no seu mórbido leito, mudo e quedo, mas o olhar ainda reflectia a jovialidade do seu carácter. Como tal, não resisti a gracejar com uma estória em que projectávamos o seu casamento com uma viúva, não pelos seus atributos, mas por auferir de uma pensão razoável, que naquela fase da vida se sobrepõe às leis da atracção e do desejo. E na maneira costumada, disse-lhe:
-Então, parece que sempre vais deixar fugir a “Lebre”.
Ele sorriu, e no movimento mimético dos lábios foi perceptível o seu assentimento.
No diálogo que se seguiu, eu falei e ele escutou. Não o reconfortei com os dogmas da reencarnação e da vida eterna, os desígnios divinos, a resignação ao destino, ou a inevitabilidade da morte. Lembrei-lhe as certezas de um passado comum, em que partilhámos momentos edificantes de uma amizade que perdurará par além perecibilidade da matéria.
Passado algum tempo, recebi a notícia que o Nelson, era este o seu nome de baptismo, tinha falecido. Embora fosse uma morte anunciada, não conseguimos conter, no momento em que se une o acto ao destino, um sentimento de tristeza profunda que nos invade e nos deixa retrospectivos e nostálgicos. Mas, a sua partida não projectou um espectro de vazio e de ausência. O espírito livre e folgazão que viveu de forma intensa e adversa à ortodoxia da sociedade, perpetua a sua memória e dá forma à ideia em que o guardo.
Vítor Silvestre