quarta-feira, 27 de junho de 2012

O “Gabirú”


“Estás metido numa alhada, pior que a do falecido Gabirú”. Esta expressão é comum escutar-se, na Gralheira, quando alguém está numa situação complicada. Desde que me lembro, sempre a ouvi e refleti sobre o seu fundamento. Todos os gralheirenses a conhecem e pronunciam, mas poucos pensarão no motivo da sua origem, ou da conotação com a personagem evocada.
 Quanto a mim, penso que a “alhada” em que o “Gabirú” se viu metido, foi ter investido num negócio sem estar qualificado para exercer o mester. Fundou uma tasca, daquelas que tinham vinho, cigarros e pouco mais; situada na constrita rua dos “Indígenas”, em espaço exíguo, pouco iluminado e apenas frequentado por fregueses de baixa condição.
A rapaziada procurava-a para serandar, pois era o único local que os acolhia até horas tardias e permitia burlar o inepto comerciante. Tinham vários estratagemas que usavam com eficácia comprovada. Quando, por alturas do Natal, a magra oferta de produtos era substanciada com a venda de figos, os meliantes abeiravam-se do tosco balcão e pediam uma quantidade superior àquela que o vendedor poderia colocar na balança num único punhado. Quando este se baixava, para perfazer a diferença necessária a satisfazer o pedido, mãos ágeis e ávidas subtraiam parte da mercadoria, sem que a rapina fosse notada. Mais figos iam sendo colocados no prato, mas o fiel teimava em manter-se desnivelado. Até que, intrigado com o caso, o marçano exteriorizava um ténue sinal de desconfiança:
-Diabo dos figos são mais leves do que parecem…
Noutra ocasião, estava uma súcia armada, quando alguém sugeriu que o bagaço “caía” melhor com pão de milho. O Floriano, de imediato, ofereceu-se para ir busca-lo a casa, mas saiu pela porta e dirigiu-se ao quelho que ficava nas traseira do estabelecimento, onde existia um janelo de dimensão suficiente para deixar passar o seu estreito “cabide”. Entrou, furtou uma broa e trouxe-a para partilhar com os convivas que, à luz da candeia, emborcavam o quartilho de aguardente. Não obstante ter surripiado o pão, ainda teve a desfaçatez de o oferecer ao “Tiu Zé”. O convite foi aceite sem desconfiança, mas, enquanto o mastigava, notando que tinha um gosto familiar, comentou:
- Este pão sabe igual ao meu…
Ao que o descarado ladrão, com um sorriso trocista, complementou:
-É verdade, coma!... Que come do que é seu.
Num tempo e num lugar de escassos recursos, os negócios não prosperavam. Por isso, era com ansiedade que os negociantes viam aproximar-se alguma festividade, esperançados no fluxo adicional de fregueses para compensar o défice da “gaveta”.
 O “Gabirú”, no dia da festa da padroeira, resolveu transformar a taberna num restaurante improvisado. Para o efeito, contratou um cozinheiro, comprou e abateu várias reses, apresentando um menu de carne assada no forno para atrair a clientela. A ideia parecia ser um sucesso, pois a casa registou um movimento sem precedentes. Mas, quando foi feito o balanço final, ao invés do lucro esperado, o saldo apresentava um prejuízo incompreensível face ao volume de refeições servidas. Incrédulo com o desfecho da aposta, sem discorrer que muitos almoços ficaram por pagar e que o cozinheiro desviara parte da carne aprovisionada, o pobre empresário lamentava a sua sorte. Os conterrâneos, por preocupação, ou por malicia, ainda lhe diziam:
- Ó “Tiu Zé”!... Veja se o dinheiro não está no rol.
Ao que o homem respondia de maneira resignada:
- Pois, se ao menos, estivesse no puto do rol…
A incompetência e ingenuidade, aliada a alguma mal-intencionada clientela, ditaram a insolvência do “Gabirú”. Para além disso, também o azar lhe bateu à porta, foi assaltado. O zé Augusto de Feirão aproveitou o momento em que o incauto taberneiro estava ao soalheiro, para o espoliar do pouco que guardava na gaveta dos trocos. Não o assalto em si, mas a forma como foi executado é digna de uma menção honrosa na academia dos larápios.
Depois de se ter certificado da ausência do proprietário, entrou descontraidamente no estabelecimento e, para não gerar desconfiança no “tiu João carpinteiro” que soalhava uma casa vizinha, encetou um monólogo em jeito de diálogo:
“Tiu Zé”!.. Está bom?…Como vai isso?
-Vai-se andando… e você?
-Bem… muito obrigado…
A conversa continuou o tempo suficiente para parecer verosímil, não faltando todas as saudações e despedidas impostas pela pragmática das boas maneiras.
 Quando o Sol começou a declinar, o “Francamente”, ainda de martelo em punho, foi surpreendido pelos gritos do “Gabirú” que clamava ter sido roubado. Estupefacto com o sucedido, pois ainda há pouco tinha escutado a sua voz no interior da taberna, foi inteirar-se da ocorrência. Conjugando o seu testemunho com o da vítima, que avistara o autor do furto na Eira do Adro, chegaram à conclusão inequívoca que o delito fora consumado pelo “mestre” José Augusto.
Ainda hoje, grassam pelo nosso país muitos “Gabirús”, expressos no número de pequenas empresas que iniciam e encerram atividade num período inferior a dois anos. É que, como costuma dizer o “Seu Manuel”, que foi empresário nos dois lados do atlântico:
“O negócio é para todos, mas nem todos são para o negócio”
Vítor Silvestre.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O “Tem que Ser”


O “Tem que Ser” há força de tanto o dizer, acabou por ter que o ser. Não recordo o seu verdadeiro nome, apenas a alcunha se ergue como marco da sua memória, veiculada pelas histórias que lhe dão forma. Embora não o tenha conhecido, através dos relatos que me foram transmitidos, guardo uma imagem bem definida da sua personalidade e fisionomia.
Homem pequeno e de robustez mediana, compensava os dotes da natura com um ego enérgico e resoluto. Filho ilegítimo, vivia pobre entre pobres, mas isso não o impedia de ter um carater altivo e garboso, como veio a demonstra a sua curta carreira de negociante de gado. Mesmo não sendo legitimado, viu-se comtemplado no testamento do progenitor, herdando a avultada quantia de dez contos de reis. Na posse desta pequena fortuna, resolveu enveredar pelo negócio supra referido. Comprou um sobretudo, botas de cabedal e, de varinha aguilhada na ponta, irrompia pelas feiras espicaçando as reses, proferindo com determinação:
-Quem vende isto!...
Ombreava com a elite do ramo, sentava-se na mesma mesa e quando os tendeiros, depois dos clientes habituais terem pedido vitela, lhe perguntavam o que desejava comer, respondia prontamente, ensoberbando as palavras e o gesto:
-Ora essa!...Vitela para aqui, também!
Os muitos repastos de vitela e os maus negócios realizados ditaram o fim da efémera incursão pelo mundo dos negócios, mas não dava mostras de arrependimento por ter fracassado nessa empresa, ao recordar os tempos em que a sua torneada figura trajava com orgulhosa vaidade, proclamava:
- Eu parecia um “Piorrinha”!
Era casado com a “tia Isaura” e dela tinha duas enteadas. Talvez, devido a esses frutos pré- matrimoniais, mantivesse uma conhecida e infundada desconfiança quanto à fidelidade da consorte. Esse facto foi aproveitado pelos companheiros, que com ele trabalhavam num lagar de azeite, para inflamar a sua mente inquieta, lançando suspeitas, bem esclarecidas, sobre uma hipotética traição com o dono das terras, em que era caseiro:
- Tu estás aqui a trabalhar… e ela, se calhar, na cama com o Pinto.
O “Tem que Ser”, não obstante a distância que o separava do lar, partiu apressadamente para os apanhar em flagrante. Chegou de madrugada. Sem perder tempo, bateu violentamente na porta e gritou encolerizado:
-Abre a porta Isaura!!!...
A mulherzinha, cansada e mal ceada, despertou estremunhada e não reagiu com a rapidez desejada, o que agudizou o ímpeto do marido:
-Abre a porta Isaura!!!.. Estás-lhe a dar tempo de fugir pelo janelo!
Os sentimentos, nesta matéria, sobrepõem-se à razão. Conhecendo o Pinto e o dito janelo, se raciocina-se, veria que era impossível um homem daquela volumetria passar por onde mal cabia um gato.
Este fantasma teimava em assombra-lhe a mente, pois não aceitava que lhe “tocassem o corno”, pelo carnaval. A rapaziada, conhecedora desta implicância, fazia questão de soprar no chifre de vaca transformado em “berrante”, na soleira da porta, para desfrutar da sua reação. Numa dessas ocasiões, estava a rezar o terço, mas isso não o impediu de pegar numa vara de marmeleiro e, sem largar a conta do rosário, correr atrás dos ousados foliões pelas ruas da freguesia. A perseguição foi-se prolongando, pois os moços, sendo mais rápidos e resistentes, cadenciavam a passada de forma a manter o perseguidor a uma distância segura, mas próxima o suficiente para o incentivar a continuar-lhes no encalço. Esta perseguição só terminou, quando o “Brequita”, ao transpor um muro de pedras soltas, se atrasou o suficiente para o perseguidor, de terço numa mão e varapau na outra, o alcançar e afincar-lhe uma enérgica vergastada ao correr da espinha. Esgotado e ressarcido da afronta, parou para se recompor e regressar a casa, onde a família o aguardava para terminar a oração.
Lavrador sem terras, trabalhava arduamente para sustentar-se das “meias” estabelecidas no regime de parceria celebrado com o proprietário. Nos meses de verão, a lida era ininterrupta e as longas jornas quebravam o corpo e a vontade, afastando da ideia noites de romantismo conjugal. Por isso, foi com estranheza que, meio dormente, sentiu um leve rabiar no pescoço. Como não estava para aí virado, disse com alguma “rasquice”:
- Tá queda Isaura…
A mulher surpresa, sem entender a advertência, retorquiu:
- Queda!...Eu não estou a fazer nada.
Perante a resposta, como o toque persistia, com um falar maroto, repetiu:
-Tá queda Isaura…
Ao que ela, mostrando-se desentendida, reiterou a resposta:
-Queda!...Já te disse que estou sossegada.
Perante a negação da evidência e do desejo dolente de dormir, insistiu já num tom um pouco azedo:
- Tá queda Isaura!...Tu parece que queres brincadeira!
Não sei como continuou este desentendido oaristo, pois as cócegas não eram motivadas pela paixão da Isaura, mas provocadas por um escaravelho em marcha.
Fumar era um dos poucos prazeres que, quando podia, não enjeitava. O dinheiro era escasso e, por conseguinte, não perdia uma oportunidade para cravar um cigarrito. Quando o meu tio “Abilinho” procedia há habitual distribuição de maços no adro da igreja, era um entre muitos a reclamar o seu quinhão. Numa destas ocasiões, estando o distribuidor cercado por uma muralha humana e ele ser de baixa estatura, a solução foi enfiar a mão entre as longas pernas do Gregório e apelar alto e bom som:
-Ó Abílio!... Põe alguma coisa na mão do teu compadre!
Desta maneira viveu e morreu, convicto do destino que a sorte lhe confiava, dizendo:
-Tem que ser!

Vítor Silvestre