sexta-feira, 27 de julho de 2012

O “Mijado”


O “Tiu Domingos”, natural de Alhões, foi uma das figuras mais carismáticas que conheci. A fronte morena, encimada por espessa e hirsuta cabeleira, dava à sua robusta figura, bem provida de membros e meã de altura, a imponência necessária para fazer respeitar a incontinência urinária que o titulava. A mútua amizade que partilhávamos alicerçava-se na vontade de ouvir e no prazer de contar. Recordo os momentos passados na sua tasca, onde recebi um manancial de sabedoria inteligível, emanada da experiência e da esperteza inata a todos os preguiçosos.
Adverso à lavoura, desde cedo, procurou outra forma de vida. Sentindo-se tentado pelo “negócio” e animado por uma experiência bem-sucedida, enveredou pelo ofício de almocreve. Era uma vida dura. Os Km percorridos através de montes e vales, ao rigor do tempo, exigiam homens curtidos de pernas e de vontade, mas era mais lucrativa que os calos da enxada e proporcionava uma existência livre, recheada de peripécias e aventuras variadas.
 A sua primeira iniciativa saldou-se com um ganho inesperado, não só pelas circunstâncias favoráveis, mas também pelo partido que delas soube tirar. Fez render um odre de vinho, comprado a dois tostões o litro, para o dobro dessa quantidade e inflacionou doze vezes e meia o preço. A multiplicação do vinho não foi obra da divina providência, mas fruto de um calor abrasador e da água das corgas de Pena Cova. Uma luta de bois levou grande multidão ao planalto da serra. O dia estava quente e a assistência sedenta. A pipa, que o Zé do Belchior levara num carro de vacas, passou a “São Gulão” em menos de um ámen. Só restava o odre que parecia não ter fundo, por mais bocas que saciasse, não dava mostras de secar. Calor, sede e água fresca congregaram-se para originar e encobrir a trampolinice. Quando, anos mais tarde, contou o sucedido, numa das passagens pela Gralheira, dizia-lhe o “Tiu Lucas” regozijado com a revelação:
-Ah Domingos!... Estás no inferno… Se fosse água limpa…agora suja, daqueles atoleiros.
Esta prática de “batizar” o vinho manteve-a durante toda a vida, como me revelou o meu tio Amadeu, seu companheiro de “arrearia” e, casualmente, parceiro de negócio. Uma fonte que havia em Melcões acrescentava um almude a cada três cargas compradas em Lamego. Como o vinho era forte e carregado, a mistura tornava-o mais aberto à vista e fluido na garganta, granjeando apreciadores e potenciais clientes.
Nas suas azeméis andanças, conheceu a Cesaltina da Panchorra, com quem viria a casar e a estabelecer-se nessa freguesia com uma pequena taberna, na casa; como ela dizia ao Sr. Alfredo da gralheira que, por cortesia, elogiava a exígua vista desfrutada pelo janelo do imóvel:
-Ó Sr. “Alferdinho”!... Isto é a casa dos nossos “interpassados”.
A sua união não foi pacífica, pois a senhora era casada com o “Carreira” de Alhões que, apesar de já não ser novo, possuía uns “fígados” capazes de ocultar o cadáver da primeira mulher, durante três dias, para que os seus herdeiros não pudessem reclamar o feno que, apressadamente, metia no palheiro. Foi essa índole, aliada há impotência física para defender a honra, que o motivaram a envenenar a comida com que os diversos pretendentes se banqueteavam em sua casa. A ideia era matar, pois a estricnina utilizada não deixa margem para dúvidas, valendo-lhes ter sido colocada na panela enquanto se dava o processo de cozedura, neutralizando, parcialmente, o seu potencial. Mesmo assim, não ficaram livres de perigo, alertados por um mal-estar crescente, ingeriram azeite para induzir o vómito e evitar a absorção do químico pelo organismo. Uns por cima, outros por baixo, lá extirparam o mal que os atormentava, exceto o “Tiu Domingos” que, de bucho cheio, teimava em não regurgitar o arroz de coelho. Para o efeito, foi necessária a longa trança de Cesaltina ser-lhe inserida goela abaixo, a fim de evacuar o quimo estomacal. Não morreu do mal, mas não sei como sobreviveu à cura. Uma trança que nunca viu sabão, crivada de lêndeas e água só em dias de trovoada, parece-me mais letal que a comprovada estricnina!
Viveu vários anos na Panchorra, mas dois terços dessa estada foram passados na Gralheira, pois costumava dizer:
- Prefiro o mal da Gralheira, ao bom da “champorra”.
Nos primeiros anos, manteve relações tensas com os vizinhos. Várias seriam as causas, mas a principal estava relacionada com o Zé Porfírio de roças, que já estava estabelecido naquele lugar. A clientela não dava para um, quanto mais para dois. Por isso, começou por arregimentar aliados, minando a confiança no concorrente. Não era invulgar, pela madrugada, dispararem-lhe um tiro contra a porta, ou outro tipo de provocações. Só que o “Tiu Domingos” era duro de roer. Além de forte e destemido, não baixava a guarda, mantinha-se alerta, prevendo as jogadas dos adversários. Foi esta cautela instintiva, que lhe permitiu vislumbrar o movimento de umas giestas e antecipar-se às intenções do Eusébio, no lugar da Jagunda. Quando este se preparava para o agredir, esquivou-se ao golpe e, sem o efeito surpresa, dominou-o facilmente. Ao ver-se maniatado, suplicou por misericórdia:
“Tiu Domingos”!...Não me mate!
Ao que o “Fumegar”, no seu jeito calmo e pausado, mostrando-lhe o chicote com que tocava as mulas, respondeu:
- Não te aflijas…isto não mata…só mói!
Deu-lhe rédea solta e, na passada, estendeu-lhe o azorrague na ossada do lombo, ficando a vê-lo, de alpergatas aladas, esfumar-se por entre os penedos.
Com o passar dos anos, devido há partida do Porfírio e por não terem remédio, tornaram-se mais tolerantes, até seus “amigos”. Mas, teriam de esperar que a Cesaltina se finasse, para se verem livres deste intruso, homem bastante para lhes impor a sua presença.
Como já referi, o meu tio Amadeu era seu confrade de mester. Amiúde, irmanavam-se nas jornadas e no negócio, sendo o ponto de encontro na Panchorra. Pouco madrugador, quando o meu tio, que também nunca o foi, chegava a sua casa, invariavelmente, ainda estava na cama. Levantava-se e, sem fazer uso do lavatório que não tinha, dirigia-se ao “almário” para um “mata-bicho” de torresmos, batatas, pão e “derretudo coalhado”, aquecido com meio “cortilho” de aguardente. Depois de desjejuado, estava “enfarnado” para beber cinco litros de vinho, sem fazer outra refeição.
 Tinha amigas e uma amante, com quem contrairia segundas núpcias, o que, para uma adúltera experimentada como a Cesaltina, era intolerável. Nas uniões anteriores fora o elemento dominante do casal, chegando, nas línguas viperinas, a deitar o marido de um lado e o amante do outro. Quando, o “vicente” se apercebia do número invulgar de pés, perguntava admirado:
-Um pé, dois pés, três pés!…De quem é tanto pé Cesaltina!?
Com o “Tiu Domingos”, embora não tenha abandonado as velhas práticas, sentia-se ofendida na honra. Por isso, numa ocasião, resolveu acompanhar o marido para, como ela dizia:
-Hoje vou conhecer a puta!
Sem nada dizer, perante o constrangimento do meu tio, pôs-se em marcha, com a cegarrega a matraquear-lhe os ouvidos. Quando, entendeu distar o suficiente da povoação, mandou-lhe, sem aviso, duas “juncadas” nas ancas e, perante os gritos de:
 -Aqui-del-rei Sr. Regedor!
Disse em surdina:
-Anda lá Amadeu, não faças caso.
Quando enviuvou, regressou à terra natal e continuou com o mesmo modo de vida, adaptado a uma nova realidade. A era dos almocreves estava acabada, os muares deram lugar à camioneta. Podiam ir mais rápido e mais longe, aumentando as perspetivas de negócio. Começaram a transportar anhos, Comprados em Trás-os-Montes, para o Porto, por alturas do São João. Numa dessas andanças, depois de terem fechado negócio, o vendedor ofereceu-lhes jantar e guarida. Durante a noite, o meu tio foi assolado por uma comichão insuportável, levantou-se e verificou que a cama estava infestada de percevejos. Não se tornou a deitar, indo para a janela fumar um cigarro, intrigado por o companheiro de leito não ser atacado. Passados uns instantes, o volumoso corpo do “Tiu Domingos“ começou a ficar irrequieto, coçando-se sem parar. De repente, acorda e diz espavorido:
Ó Amadeu!... Eu não sei que tenho!...A ceia fez-me mal!
Ao que o meu tio respondeu, prontamente:
-Não é isso, são percevejos.
O “Mijado”, ainda com os olhos semicerrados, virou-se para o lado e, já descontraído, murmurou, antes de voltar a adormecer:
-Ah…são percevejos…então não tem mal nenhum…
Era um negociante nato. Fazia súcia com a clientela, pagando a primeira rodada e vendendo as várias que se seguiam. Quando, de mão em mão, o copo de litro chegava à sua vez, era escorropichado até à última gota. Esta tática, aliada à técnica da cana; que pelo batoque, volteava o vinho para que as borras não assentassem, a fim de também serem vendidas; enchia-lhe a barriga e a carteira.
Praticava uma diplomacia musculada, todos os fregueses eram bem-vindos, mas, se necessário fosse, também os punha na rua com um par de ”bufardos”.
Norteava-se pelo lema:
- O preço faz-se consoante a cara do cliente; as contas, com os amigos, são feitas de cabeça.
Queria com isto dizer, que podia pedir cem escudos, por uma taça de vinho, a uns motares de arribação, mas não mais de vinte aos “Calhordas” residentes. Quanto às contas, eram divididas de forma parcial, para que os amigos fossem beneficiados, em detrimento dos demais convivas. Das múltiplas vezes que suciei no seu estabelecimento, raras foram as que tive de pagar.
Fazia parte daquela estirpe de homens quase extintos, que viveram, à revelia do espaço e do tempo, existências duras, desregradas e plena de excessos. Quando esta conjuntura cobra o seu preço numa morte antecipada, é o tombar dos velhos bastiões de uma cultura exangue, que soçobrou ao avanço inexorável do progresso.
Resta, a vontade de ter ouvido e o prazer de poder contar.
- Oiçam!
Vítor Silvestre

domingo, 15 de julho de 2012

O “Regedor Velho”


A figura do regedor ainda está presente na memória provinciana de muitos portugueses. Este cargo administrativo, criado em 1836, esteve em vigor durante cento e quarenta anos, sendo extinto pela constituição de 1976. As suas competências sofreram várias modificações ao longo da história, datando as últimas das reformas administrativas de 1938 e 1940. A função, na generalidade, tinha a incumbência de garantir a aplicação das leis e dos regulamentos administrativos e exercer a autoridade policial na respetiva freguesia. A sua importância foi, gradualmente, sendo diminuída com a expansão das áreas de intervenção da G.N.R e P.S.P, restringindo-se a sua influência às freguesias rurais mais distantes das sedes de concelho. Eram autoridades que, servindo um estado autoritário, tinham o poder suficiente para impor a lei e a ordem, pelos meios necessários ao cumprimento das disposições legais que lhe eram confiadas. Podiam nomear Cabos de Ordens todos os que tivessem prestado serviço militar e requisitar armas a particulares, para os auxiliarem no cumprimento dos seus deveres.  
Na Gralheira durante a vigência da regedoria, muitos foram os que ocuparam o cargo, mas apenas o “Tiu António” ficou conotado com a função. Quando se referiam à sua pessoa, e por existirem muitos “Antónios” na terra, acrescentavam o cognome “Regedor Velho”. Para o facto, contribuíram a longa permanência no cargo e a respeitabilidade que granjeou durante o seu exercício. Homem dado à leitura e ao saber, os seus conhecimentos iam muito além das letras gordas da instrução primária do seu tempo. Exerceu uma magistratura equitativa, ponderada e cordata, alicerçada numa retidão moral e num comportamento cívico inquestionáveis. Ainda o conheci, e posso assegurar que daquela aparência alva e calma de septuagenário, talhada pela cadência serena de um falar grave e sério, emanava a aura inconfundível de um homem estado. Foram essas aptidões que lhe permitiram debelar situações delicadas, sem ter que redundar no autoritarismo institucional vigente.
Entre a Gralheira e a Panchorra sempre existiram atritos variados, mas eram mais visíveis por palavras que por atos. Poucas foram as situações de confrontação física dignas de registo e, muito menos, de consequências graves. Mas, certa ocasião, o Isidro, devido a negócios de saias, foi barbaramente agredido numa deslocação noturna àquele lugar, ficando muito maltratado e em estado considerado critico. Este ato covarde, perpetrado e executado por vários elementos munidos de paus, despoletou, nos conterrâneos do agredido, um incontido desejo de vingança.
 O panchorrense “Candeias”, que viria a casar na Gralheira, namorava a futura mulher e, inadvertidamente, veio meter-se na boca do lobo. Sem averiguarem o grau de responsabilidade que lhe competia no sucedido, de imediato, foi cercado, na casa da “Tia Conceição”, por uma trupe enraivecida, disposta a exercer represálias sangrentas. O sitiado era instado a sair, mas, perante exclamações como as do “Herói”, que era irmão da vítima:
- As maiores postas serão as das orelhas!...
Recusava-se a deixar a segurança relativa que a tosca porta de carvalho lhe conferia, para enfrentar um linchamento anunciado.
Permaneciam neste impasse, quando o “Tolas”; com o seu carater volátil que tanto se inflamava, como condescendia; gritou desalmadamente:
- Fogo à casa!...Não sai?...Fogo à casa!...
Esta sugestão demonstra o estado de espirito daquela tropilha, que, ignorando os inflamáveis telhados de colmo, estava disposta a sacrificar meia aldeia, para atingir o seu objetivo.
Perante esta ameaça, a “Tia Conceição” assomou à janela e, em pânico, gritou a plenos pulmões:
- Aqui-del-rei, senhor regedor!!!
O apelo foi atendido pelo “Tiu António Regedor” que, valendo-se da consideração que lhe dispensavam e exercendo a autoridade que possuía, lá conseguiu demover a rapaziada dos seus intentos assassinos, evitando que o “Candeias” fosse retalhado para encher moiras.
Também foi, durante o seu mandato, que aprisionaram o “Batoco” de Ovadas, sobre o qual pendia um mandato de captura por ter violado e seviciado várias mulheres. Foi apanhado por populares e entregue à custódia do regedor, que improvisou um carcere, turnos de guarda e escolta armada para, no dia seguinte, ser conduzido à cadeia concelhia de Cinfães. A condução do detido foi entregue a dois Cabos de Ordens, investidos de uma autoridade bem esclarecida. Como afirmou o “Mistoso”, que foi um dos escolhidos, quando, ao narrar a história, lhe perguntaram:
“Tiu Amadeu”, e se ele tentasse fugir?
A resposta foi perentória:
- Era, logo, um tiro!
Além de zelar pela lei e pela ordem, também; devido a reminiscências do passado, em que o cargo tinha o estatuto de magistrado judicial; a sua jurisprudência era chamada a mediar conflitos. As decisões poderiam não ter suporte legal, mas eram vinculativas e aceites de forma consensual. Uma das intervenções mais sensatas em que tomou parte, foi obrigar o “Copas” a comprar uma casa, para poder desalojar uma inquilina, residente num imóvel de que era proprietário. A “Fragata” era mãe solteira e as únicas riquezas que possuía eram os vários filhos de tenra idade. Como tal, o “Regedor Velho” achou inconcebível despejar uma família nestas circunstâncias, deixando-a sem o teto que ajudava a mitigar a fome. A moradia, embora pequena, foi adquirida pelo locador e doada à locatária a título definitivo e sucessório, onde morou até ao fim dos seus dias.
Ao escrever esta crónica, vou refletindo sobre o estado de impotência a que chegaram as autoridades e instituições deste país. É uma pena, que com a imprescindível liberdade, não tivéssemos adquirido uma responsabilidade madura, capaz de garantir as aspirações legítimas dos cidadãos, sem descambarmos no laxismo, na permissividade e numa visão assimétrica entre direitos e deveres. Quase quarenta anos de democracia, não conseguiram consolida-la em toda a sua plenitude. Enquanto tivermos uma nação burocratizada; emperrada por processos letárgicos; regida por leis ambíguas, que permitem dualidades jurídicas entre grandes e pequenos; não temos um sistema eficaz e credível, nem somos o estado de direito que almejamos ser.
Faziam cá falta, algumas qualidades, de alguns “Velhos regedores”…
Vítor Silvestre