terça-feira, 9 de novembro de 2010

Muitas Graças a Deus e Poucas Graças com Deus

“Muitas graças a Deus e poucas graças com Deus”, parafraseava o povo. A religião, para as gentes daquelas paragens, era algo de muito sério para ser alvo de qualquer gracejo ou comentário menos apropriado. Era na fé que aquelas almas, sofridas e açoitadas pelas agruras de uma existência paupérrima, encontravam refrigério e recebiam alento para superar as vicissitudes do seu quotidiano. A devoção ao divino induzia um misto de temor e respeito que continha os seus impulsos e tentações, contribuindo para a ordem social e a estruturação de um ritmo de vida pautado pelos rituais seculares da Igreja. As sagradas escrituras preenchiam as lacunas dos seus parcos conhecimentos, tranquilizavam-lhes o espírito que desconhecia o absurdo e se resignava à vontade clemente e omnipotente do criador. Mas, apesar da deferência e reverência que devotavam ao clero e à instituição que representavam, há nota de alguns casos que fogem à regra e, como tal, resistem ao passar das gerações.
Era comum, num passado não muito distante, as paróquias serem visitadas por missionários que, com encenadas pregações de eloquente oratória, exaltavam o fervor religioso e emocionavam devotas plateias. Estava um destes pregadores proferindo um inflamado sermão, batendo energicamente com os punhos no parapeito do púlpito enquanto retratava dantescamente o inferno. Alternando, para amenizar atemorização geral, com a evocação da misericórdia divina reflexa no milagre da multiplicação dos pães. Mas, com o entusiasmo do discurso, inverteu a desproporção, dizendo:
-O Senhor, com cinco mil pães, deu de comer a cinco ….
Um dos presentes, antes que o orador pudesse corrigir a gafe, comentou:
- Esse milagre também eu o fazia.
O prelado, sem se dar por achado, prosseguiu, mas não esqueceu a afronta. Quando, no ano seguinte, voltou a pregar na mesma freguesia, aludiu ao milagre, mas sem se enganar. Então, ao terminar, fixando o ousado interventor do ano transacto, interpelou assembleia:
- Digam-me agora, se algum de vós também fazia este milagre?
O ousado serrano, sem perder tempo, respondeu:
- Com o que sobrou do ano passado, ainda era bem capaz de o fazer.
Esquecendo-se do local onde se encontravam, soou uma sussurrada risada perante as rubras faces do desfeiteado pregador. Consta-se, que nunca mais pregou naquele lugar, pois compreendeu que aquelas pessoas eram simples, mas não simplórias e perspicácia daquele teor não se aprendia nas páginas do breviário.
Esta estória foi-me narrada pelo “Febra”. Não me recordo se aconteceu na Gralheira e foi por ele presenciada, ou se noutro lugar das redondezas e contada por uma memória mais antiga.

A “exemina”era feita aos paroquianos, para testar os seus conhecimentos doutrinários, aquando da confissão obrigatória pela Páscoa da ressurreição. Foi pródiga em estórias caricatas, pois era com preocupação e enfado que viam aproximar-se a data de tal imposição canónica, obrigando-os a rever a doutrina que aprenderam em crianças à custa de “mosquetes” e ameaças. Alguns, embora nada entendessem, sabiam a ladainha seguida e salteada, mas outros tinham preocupações mais prementes que os ensinamentos da catequese. Por isso, de vez em quando, aconteciam exames como os que vou contar:
O “Breca”, segundo os vários relatos que tenho ouvido, era homem de carácter irascível, de poucas palavras, de poucos amigos e não muito dado às coisas da Igreja. Contudo, uma ocasião compareceu à “desobriga”. Depois de aguardar pela sua vez e ter feito as vénias e benzeduras habituais, apresentou-se para receber o sacramento, que terá decorrido nestes termos:
- Há quanto tempo não se confessa?
Ao que o inquirido com a sua voz rouca e arrastada respondeu:
- Há dez anos!
- E que pecados cometeu?
- Todos!... Menos matar e roubar.
- Muito bem… Agora… diga-me…Tem cumprido o jejum na quaresma?
- Todo o ano!... Esse preceito cumpro à “risca”.
O padre achou por bem dar por concluída a primeira parte do oficio e passou à “exemina”. Como deve ter pensado que o “exeminado” não seria muito versado nos ensinamentos da catequese, fez-lhe uma das perguntas mais elementares da doutrina cristã:
- Diga-me, quantas são as pessoas da Santíssima Trindade?
O “Breca” sem hesitar, nem notar no prefixo “tri” que foneticamente lhe indiciava a resposta, respondeu:
-São dez!
O confessor, ao ouvir tal despautério, em tom irónico comentou:
-Ainda são poucos…. Vá estudar a doutrina e volte cá amanhã.
O Homem levantou-se a ruminar impropérios e saiu do templo determinado em saber quantos elementos tinha essa trindade. Ao chegar ao adro, encontrou alguém que lhe perguntou:
-Então, passas-te na “Exemina”?
-Não!..Não soube quantas eram as pessoas da Santíssima Trindade.
Ao que o outro, perante tamanha ignorância, respondeu:
- São três!..Seu burro!
O “Breca”, com um sorriso sarcástico, retorquiu:
-Três!...Vai lá com três!...Dez disse eu e ele achou pouco!...
Não sei se o “Breca” retornou para repetir o exame, ou se chegou a saber qual a composição da Santíssima Trindade, mas sei que a estoriografia da Gralheira, de forma recorrente, recorda esta confissão de contornos tão invulgares.

Outra resposta digna de registo foi dada pelo “Branquinho”. Quando o padre lhe perguntou:
- Onde está Deus?
Respondeu com a simplicidade dos que nada têm:
-Deve estar no mesmo sitio do ano passado, pois ele não anda, como eu, de casa arrendada.

Apôs ter terminado o período destinado à confissão obrigatória, no domingo seguinte o Sr. abade, no final da missa, chamava por todos os cabeças de casal, que respondiam pelo seu agregado familiar dizendo:
-Está tudo!
Caso não estivesse, tinham de referir o número de elementos em falta.
Uma ocasião, o meu Bisavô Amadeu, pai da minha avó materna, ao ser inquirido respondeu como a maioria:
-Está tudo!
Ao que o padre, consultando os seus apontamentos, retorqui;
-Tudo não!...Falta o senhor.
Então, perante a admiração geral, o Sr. Amadeu Cerveira teve este desabafo:
-Não ia aprender mais do que aquilo que sabia…

Essa prática da “Exemina” há muito que caiu em desuso, embora se mantenha a da “desobriga”.Mas, estou certo, que se existisse, os “exeminados” ou se remetiam ao silêncio, ou as respostas seriam ainda mais inusitadas.

Vítor Silvestre