quinta-feira, 22 de abril de 2010

O velório da "Carolina"

Ao longo da minha convivência com o “Samba”, personagem já apresentada e caracterizada anteriormente, existiram muitos episódios dignos de registo, mas um dos mais inusitados foi aquando do falecimento da sua tia Madalena. Como bom sobrinho, compareceu ao funeral, mas como o seu feitio se coadunava mais com momentos festivos que de pesar, ao invés de ficar no velório a prestar as exéquias fúnebres, resolveu fazer uma incursão ao café, “para dar de beber à dor”. Quando foi questionado sobre esta quebra de pragmática que denotava ausência de penar, aplacou a consciência dizendo que embora se sentisse pesaroso, afinal ela já estava velha e “atoleimada” e, como tal, a sua partida tinha de ser encarada como uma graça divina que lhe tinha sido concedida. A concordância foi generalizada e o assunto teria ficado por ali, não fosse a invulgar presença do “Tiu Germano”. Constava-se que o dito Germano e a “Carolina”, alcunha que apelidava a falecida, em tempos idos, teriam namorado ou tido uma fugaz aventura e, como tal, contámos essa suposta ocorrência ao “Samba”, que a desconhecia. De imediato começou acicatar o Germano, coadjuvado por um coro que em uníssono cantarolava a popular canção, "A saia da Carolina", mas com uma ligeira alteração na letra para se adequar à circunstância, sendo este o resultado:
A saia da Carolina tem um Germano pintado,
Tem cuidado carolina que o Germano dá ao rabo.
Sim Carolina...
Perante o semblante sisudo e agastado do visado, terminada a cantilena, irrompia uma hilariante gargalhada que contagiava todos os presentes. Mal esta terminava, já o “Samba” com os braços em posição similar à do louva-a-deus, perguntava:
- Ó Germano, você e a minha tia chegaram a “cobrir”?
O homem fulminando-o com o olhar e, em simultâneo, apontando para mim, insuflava a sua proeminente barbela e vociferava com veemência:
- Cala-te com essa “merda”!... Tem vergonha!... A mulherzinha “sobre terra” e tu a dares ouvidos a este bruto.
Esta reacção, tão intempestiva, ainda incendiava mais os ânimos, mas perante a percepção da sua partida era aliciado a consumir, gratuitamente, os artigos expostos no café. Foi-lhe sugerido um gelado, mas a oferta foi declinada quando foi informado que o gelado era algo frio, dizendo:
- Eu queria lá isso!... Só se fosse quente.
Como não existiam gelados quentes, pediu uma laranjada. Certamente, julgava ainda existir aquela bebida de cor e sabor a laranja fabricada pela “Schweps”, mas foi-lhe dito que de laranja só havia Fanta, ele anuiu e dirigindo-se à “barman”:
- Ò rapariga!..Dá-me aí uma “Panta”.
A bebida foi servida e, pelos vistos, agradou, pois sempre que intervalávamos no assédio à sua paciência, a dose de “Panta” era repetida. Porém, tanta bebida sintética interferiu com a dinâmica intestinal, valendo-lhe, durante a noite, o penico de serviço há várias décadas, no qual, fosse pelo longo uso ou pela falta de escova, já era indistinta a cor original.
Vítor Silvestre