sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Travessos e travessuras



As travessuras nas noites de S. João e S. Pedro eram vividas com grande entusiasmo pela rapaziada. O respeito pela tradição antiga permitia-lhes estravagâncias inadmissíveis nos restantes dias do ano. Mesmo assim, não era raro existirem descontentes com os excessos da juventude. Aliás, o sucesso de umas travessuras era avaliada pelo número de críticas que despoletavam na manhã seguinte, se ninguém se ressentia, era porque a obra tinha sido de pouca monta. Mas, regra geral, havia sempre espíritos indignados por motivos insignificantes ou outros de relevo, como em tempos mais antigos, irem espolinhar-se nos campos de linho, deixando-o num vincilho difícil de manufaturar.  
Todos os que reclamavam, no ano seguinte, tinham em dobro aquilo que não desejavam. Quando o travessado não fazia caso, nunca mais era incomodado, qual era a graça de acirrar alguém que não exteriorizava o incómodo.
Assim sucedeu com o “Sereno” quando viu a rima da lenha esborralhada para o caminho. Sem se alterar, piorna por piorna, voltou a coloca-la no “solhal”. Nunca mais se meteram com o “Capa Carneiros”.
Outros passavam a noite de vigília aos carros de vacas, metiam as galinhas no forno, escondiam vasos e outros pertences suscetíveis de serem levados. O que de pouco lhes valia, pois quem se mete com moços, quase nunca leva a melhor.
Mas, para haver travessuras é necessário existirem travessos. Na Gralheira, há nota de uns quantos que ultrapassaram a mediania, encarregando-se o tempo de os consagrar como históricos neste mester. O meu tio Abílio é uma figura de proa consensual, secundado por “Rabeço”, “Fajardo” e outros da mesma laia, que em conjunto ou em separado espevitavam a pacatez bucólica da freguesia. A dupla “Abilinho” e “Fajardo” foi uma das mais prolíferas em matéria de judiarias. Um dos maiores esquemas postos em prática foi improvisaram um galinheiro na Mouta e rapinarem galinhas para terem ovos com fartura. O povo, incrédulo com tamanha razia de galináceos, alvitrava ser raposa, doninha, milhafre, mas nada justificava aquele incidente de proporções sem precedente.
Os dois pilha galinhas, indiferentes ao clamor generalizado, continuavam a deliciar-se com ovos frescos, sem serem descobertos. Até ao dia em que resolveram raptar um galo para se lançarem no negócio da criação de pintos. Usando a tática costumada, colocaram um grão de milho atado a um cordel e fisgaram um imponente galaroz do meu bisavô “Alfaiate”. O galo cativo fez o que a natureza lhe pedia, cantar todas as manhãs, o que levou à localização da origem do canto e ao desvelo do mistério das aves desaparecidas.
Uma das vítimas mais visadas por aquela dupla endiabrada era o “Tiu Lino” que, de vista já cansada pelos anos, não diferenciava o toco que lhe metiam na panela, após retirarem o salpicão. Apenas dava pela troca, quando admirado com o tempo de cozedura espetava o garfo de forma mais decidida e batia em sólido cerne de carvalho.
Outra aventura digna de registo foi protagonizada por um triunvirato de respeito. O meu tio-avô “Talassas” convenceu o “Rabeço” e o “Fajardo “a acompanharem-no até à cidade espanhola de Tui, para servirem num convento, onde já tinha estado. Por azar, decorria a guerra civil no país vivinho e os dois jovens ficaram retidos na fronteira. O meu tio pode passar e no regresso trouxe uma carta de recomendação para o seminário de Braga, onde foram acolhidos. Só que passado algum tempo, o reitor da instituição lamentava a decisão, pois o trabalho produzido pelos serviçais era muito inferior aos alimentos ingeridos e, para cúmulo da desgraça, entupiram os sanitários com pedaços de sarapilheira que usavam como papel higiénico, lançavam ao vento a fopa de milho com que deveriam encher as almofadas e uma ramada de duas pipas de vinho foi vindimada, com a ajuda de uma cana rachada na ponta, da varanda do quarto onde dormiam, não colhendo os padres mais que dois almudes. Foram demitidos, mas devidamente aforrados para as despesas de regresso.
Alguns integraram a banda da freguesia, mas como não eram muito dotados, constituíam uma segunda linha que era dispensada das ocasiões que não requeriam todo o efetivo. Uma dessas alturas era o serviço eucarístico, onde só os melhores músicos e de voz mais afinada acompanhavam a celebração da missa. Livres do serviço entretinham-se a fazer o que lhes dava na real gana. Certo dia, na freguesia de Ferreiros, enquanto o padre fazia o sermão, resolveram assaltar uma velha cerejeira carregada de frutos. Como o tronco estava caduco, o peso dos recoletores partiu uma bifurcação, ficando um pesado ramo atravessado no caminho por onde ia passar a procissão. Quando os mordomos se aperceberam, pálio, cruzes, lanternas e andores estavam imobilizados sob o sol do meio-dia. Alteraram-se os ânimos, proferiram-se ameaças, mas ninguém suspeitava dos elementos da banda que continuavam a soprar nos instrumentos a plenos pulmões ou, como o “Rabeço, quem fingisse tocar enquanto chupava uma amêndoa encaixada no bocal do instrumento.
Nem sempre as partidas acabavam a contento entre as partes. Quando a “moçarada” resolveu embebedar o criado do “Bague “e aproveitar o torpor alcoólico para lhe tosquiarem os briosos caracóis, este levou a peito as dores do servo e os “barbeiros” passaram um mau bocado. O rapaz tinha uma farta cabeleira que cuidava com esmero, exibindo-a com orgulho enquanto cantava na primeira fila da igreja. Após o sucedido, assistiu à missa entre as mulheres, com um lenço na cabeça. O patrão estranhou tal comportamento e foi inteirar-se da razão daquela anomalia. Ao sabe-la, deu um aperto aos autores da brincadeira, pois o “Tiu Pedro” não era para cócegas e disse-lhes indignado:
- Bague!.. Faze-lo ao meu criado, é o como faze-lo a mim.
Outra maroteira interessante foi a que fizeram ao ”Pilatos”. Também num dia de bebedeira, meteram-no na loja da mula do “Galhardo”, com o engodo de lá o aguardar a Ludovina da Panchorra. Na completa escuridão, foi-se guiando pelo tato, enquanto a brava muar desferia coices no vazio, indiferente aos apelos cioso do “João da Branca”:
- Sou eu Ludovina, tem calma.
Por sorte não foi colhido por uma parelha que, no mínimo, o teria deixado embaçado. Continuando o homem de saúde e tão casto como a terra o haveria de comer.
No meu tempo, as travessuras ainda estavam muito em voga e cumpria-se a tradição a preceito, não só nos dias convencionados, mas durante todo o ano. Quando nos cansávamos de jogar à bola ou das brincadeiras triviais, era sempre um bom dia para encetar uma travessura. Não era invulgar o povo acordar sobressaltado com uma noitada mais profícua nesta matéria.
Hoje, vivemos uma outra era, onde a criatividade perdeu terreno para o divertimento organizado, mas o gene dos travessos não se extingui e é com satisfação que ouvimos, aqueles que ainda se lembram da juventude, de vez enquanto, alguém reclamar contra alguma diatribe adolesceste.
Porque, de travessos e travessuras, todos temos e fizemos um pouco.
Vitor Silvestre