domingo, 17 de março de 2013

Esperteza serrana

Os Serranos, sempre foram depreciados pelos da “ribeira”, ou seja, por aqueles que viviam nas encostas do Douro e não no planalto da serra. Todos se queriam demarcar do clima frio e do chão agreste que não deixavam vingar pomar ou videira. Até os da Panchorra, por viverem poucos metros abaixo, consideravam-se mais afortunados que os da Gralheira, a freguesia mais alta de Portugal.
Estigmatizados por ribeirinhos pés descalços que subiam ao ostracizado desterro para trocar fruta por batatas e vender sardinha, os “pacóvios “da serra desenvolveram um saber imprevisível, que inúmeras vezes desconcertou espíritos mais esclarecidos.
Mandava a tradição que o cura, por cada funeral, recebesse, da família do defunto, sete varas de linho e uma cabra. Quanto ao linho não havia problema, a medida estava esclarecida; em relação ao animal, o caso era mais complexo, para ser aceite apenas tinha que se segurar de pé. Como é óbvio, os paroquianos escolhiam a rês mais fraca do rebanho para efetuar o pagamento. Uma ocasião, o “Russito” apresentou um caprino velho, escanzelado e com uma galha partida. O padre, ao analisar o espécime, desclassificou-o quanto à idade e ao trapio, acrescentando com desdém:
- Ainda por cima… só tem um corno!
Ao que o “Foiradas”, no seu jeito habitual, respondeu:
-Pois, pois…Sr. Abade, o outro ainda “háde” nascer.
Os sacerdotes, por conhecerem o breviário, julgavam estar em vantagem perante a iliteracia do povo, inculto em letras, mas doutorado em manha, não se deixava levar com duas cantigas.
Certo pároco, contrariando o celibato, mantinha pacto carnal com uma das ovelhas do seu rebanho. O pai da moça, ao saber das “barbas borradas”, foi ter com o pastor e comprou-lhe cinquenta alqueires do cereal da côngrua. Centeio na caixa e conta no rol, nunca mais deu satisfações ao credor até este o interpelar, no sentido de liquidar a compra. O homem retorceu o bigode e disse-lhe discretamente ao ouvido:
- Quanto é que o senhor acha que vale a honra da minha filha?
O clérigo afitou as orelhas e dando um “desande” no calcanhar da bota, retirou-se em silêncio dando o devido pelo “donzelio” perdido.
A vida no campo era dura, trabalhar terras que mal davam para patrões, quanto mais para caseiros, era ver o espetro da fome sentado no preguiceiro. A maioria destes modestos proprietários estavam à espera do leite da mungidura para merendar, se a vaca escouceasse o canado, lá ficava em jejum. Poucos eram abastados o bastante para emprestarem dinheiro ao parceiro subalterno. Não era o caso da viúva do Sr. Pinto que, para além das propriedades do casal, tinha “na burra” avultada quantia em dinheiro; fruto do engenho empreendedor do falecido para o negócio e de um viver comedido, sem gastos supérfluos, que o tornaram, para os padrões da época, num homem rico. Por conseguinte, adiantou determinada verba a um dos seus caseiros, sendo reembolsada aquando da venda de um bezerro prestes a ir para a feira. O vitelo era de boa raça e foi vendido por soma avultada, mas a patroa continuava sem ser ressarcida. Até que um dia, tomou a iniciativa de puxar por contas ao amnésico devedor, abordando o assunto com diplomacia:
- Ó Sr. António, o bezerro deu bom dinheiro.
- Deu!.. Sim senhora, foi bem vendido.
- Então, se calhar, já podia pagar o que me deve?
Ao que o “Toninho”, movido por necessidades primárias mais prementes, respondeu com a simplicidade de um leigo:
- 0h!...Mulherzinha de Deus, está a senhora a preocupar-se com coisas que a mim nem me lembram.
A serra sempre foi farta em pastagens, as corgas altaneiras fervilhavam de manadas e rebanhos, providenciando a principal fonte de rendimento aos seus proprietários. O gado era vendido a intermediários curtidos na arte que, invariavelmente, levavam a “parte de leão” do negócio. Porem, alguns autóctones tentavam inverter este ciclo de ganhos assimétricos e faziam incursões pelo mester, sem terem os cabedais necessários para ombrear com os parceiros. Como tal, a necessidade aguçava o engenho, inventavam todo o tipo de manobras para resistirem à concorrência.
 O “Tiu Álvaro” era dos mais empreendedores e astutos negociantes de ocasião. Quando vendia cabritos e cordeiros, mal o comprador erguia a rés para lhe “apolegar” o peso, imediatamente, de maneira sub-reptícia, puxava-lhe por uma pata traseira para confundir o calculo da “balança”. Noutra ocasião, comprou e vendeu a mesma cabra a um fulano de Cetos. Como ardil, quando o enviado responsável pela compra notou a semelhança com a que tinham vendido, disse convicto:
- É neta!... É parecida, porque é neta.
Subsistir era a palavra de ordem, a ínfima mais valia era aproveitada sem olhar a quê, nem a quem. Por isso, o “Pitadas “da Panchorra aproveitou-se do cargo de regedor para “esfumaçar” português suave sem filtro, a troco de reanimar o “Caganucho” que tinha caído sem sentidos perante as ameaças de morte do Coelho de Feirão. A cena foi passada na tasca do “Tiu Domingos”, onde, às expensas do Zé Augusto, estava armada uma súcia de vários dias que devorou um porco acabado de sair do chambaril e escouçou uma carga de vinho. Perante a morte aparente do inanimado, o “Pitadas” pediu ao tasqueiro, com a ronha espelhada no rosto:
Ó Sr. Domingos deixe cá ver um cigarro…
Com a tocha acesa, depois de umas sôfregas fumaças, arregaçou-lhe a manga da camisa e queimou a pele exposta. Imediatamente, o braço furtou-se à fonte de calor, o que levou o examinante a proferir:
-Ele bem morto ainda não está…
 Dê cá outro cigarro… vamos experimentar numa perna, não vá ele estar “esquecido do corpo”. A tortura continuou, na razão de um maço, até o homem dar sinal de vida por entre gemidos e ais, dando mostras de aparente melhoria. Aproveitando o ensejo, o “Fumegar”, na esperança de o por porta fora, inquiriu:
-Já está melhor?
Ao que o inquirido, acenando afirmativamente com a cabeça, soltou um pronunciado gemido:
- Hummm…
- Você pode ir a pé?
-Hummm… (negativo).
- Então, quer ir a cavalo?
-Hummm (afirmativo).
- Está bem, venha cá, vamos aparelhar a burra.
Quando o “Caganhucho” passou a ombreira da porta, já a botifarra do “Mijado” alçava-se para afincar-lhe um chuto no rabo, mas apenas pontapeou o vazio, por milagre, o homem recuperou a saúde e escapuliu-se, como um raio, por entre o casario.
Como diz o meu amigo Manuel Alves:
- Eu sou um homem sério!...Pago o que devo!...Se tiver dinheiro…
Por vezes, a seriedade é condiciona por fatores alheios às intenções e à natureza séria de cada um. Quando tudo é escaço, os escrúpulos desvanecem-se, mesmo perante a juvenil inocência.
O “Troquinhas”, indolente solteirão, acrescentava à pequena sorte que herdara o expediente de veterinário e esfolador necrófago de gado miúdo. Quando perecia alguma rês por moléstia, fatalidade, ou carecia de intervenção médico-cirúrgica, o “Tui António das Peis” era chamado para tomar conta da ocorrência. No seu currículo consta a realização de uma cesariana caprina e a abertura, com um fuso, do ânus de um cordeiro recém-nascido. Mas, era na arte de “peliqueiro” que os seus serviços eram mais solicitados. A troco do “fato” do defunto, providenciava enterro sanitário, para bem da salubridade pública.
Nesta condição, foi procurado por dois jovens da terra para esfolar uma raposa que encontraram morta. O “expert”, depois de analisar a peça, arrancou-lhe um tufo de pelo e sentenciou desalentado:
 - Está podre…é uma pena… tem uma pele tão linda… o melhor é enterra-la…
Os rapazes levaram-na para o Cabeço das Rolas, abriram a cova, mas quando se preparavam para o enterro o “Tonhato” interrompeu-os dizendo:
- Podeis ir embora, eu acabo o serviço, vou tirar-lhe um bocado de pelo de um “coixõn” para forrar uns tamancos.
Os moços abalaram e não pensaram mais no assunto, até ao dia de Natal quando viram o “Tui António” de samarra nova, adornada com uma magnífica gola de “raposa”.
Numa tarde quente de Agosto, estava o Sr. “Lixandre” Jorge da Silva, almocreve reformado de uma vida experimentada, sentado na sombra dos degraus da sua casa, acompanhado pela consorte “Dona Baronesa”, quando foram interpelados por duas senhoras, testemunhas de Jeová. Depois de ouvir a retórica do costume, o velho azemel tirou o lenço pataqueiro, limpou o bigode e, depois de uma breve pausa, perguntou:
- As senhoras disseram que vinham para ajudar?
Ao que elas, perante o interesse demonstrado, reiteraram com veemência:
-Com certeza, nos estamos cá para lhe prestar ajuda!
-Então calha bem, eu tenho umas batatas para arrincar…as senhoras vão lá?
-  Bem…não é a esse tipo de ajuda a que nos referíamos…
- Eu sei, eu sei… se fosse no prato, com bacalhau…
Sem esperarem mais conversa, rodaram nos calcanhares e foram profetizar para outra freguesia, ficando o “Vila Maior” a “rir-se para trás das orelhas”, rematando com malicia:
- Ó Maria, aí vão elas!
Haveria mais a contar, mas penso ter dado uma amostra da dita “esperteza serrana”. Talvez, não divergisse muito da saloia, pois era uma esperteza efémera que carecia de substância para ter um efeito efetivo na melhoria das condições de vida dos seus detentores, mas dava para desenrascar.   
Vítor Silvestre