terça-feira, 2 de julho de 2013

Alagoa de D. João



Alagoa é um planalto secundário do maciço de Montemuro. A sua designação advém da existência de uma considerável lagoa sazonal, resultante da saturação do aquífero durante as precipitações invernais. Na maioria dos anos, seca nos meses mais quentes, mas o enorme reservatório subterrâneo abastece as nascentes, mantendo o altiplano verdejante, proporcionando pastagem a inúmeras cabeças de gado. Por isso, as aldeias circundantes disputavam o direito de usufruto desta vasta planura. Não reclamavam a sua posse, porque não era terreno baldio. Segundo reza a história, pertencia ao tal D. João que, em data incerta, tê-la-á ganho numa aposta, ao conseguir circundar toda a sua extensão no período de uma hora. Realizou a façanha montado num fogoso cavalo que, segundo se conta, terá sucumbido, por exaustão, ao terminar a proeza.
Como o dono não dava importância àquele seu domínio, as povoações limítrofes apossaram-se daquela terra devoluta sem oposição legal, mas a demarcação do quinhão que competia a cada consorte nem sempre gerou consenso. Houve várias querelas menores, mas a mais acérrima levou os de Cutelo a apreenderam umas vacas da Panchorra e outras da Talhada por se encontrarem dentro dos limites aleatoriamente estipulados. Perante tal ocorrência os Panchorrenses tocaram o sino a rebate e armados como podiam correram para resgatar os animais. Mas, ao chegarem a Alagoa, depararam-se com uma frente bem formada, encabeçada pelos Camilos, o que fez fenecer a braveza com que vinham. Os da Talhada agiram com mais ponderação e foram apresentar queixa às autoridades a Lamego. De imediato, o comandante do destacamento enviou uma patrulha, acompanhada pelos queixosos, para resgatar os animais retidos indevidamente. Deixaram a viatura no Alto de Gosende, onde terminava a estrada, seguindo a pé em direção à Veiga, onde as vacas pastavam. Depois de identificados, os bovinos foram reunidos e postos em marcha, escoltados pelos guardas. Mal tinha iniciado a caminhada avistaram um forte contingente armado de paus, chuços, forquilhas e demais artefactos que se dirigia na sua direção para cortar-lhes a retirada. Pois, quando se aperceberam das intenções da G.N.R., foi dado toque a reunir e todo o povo se apressou a comparecer para o confronto. Apenas os mais escarmentados, como o “Ribalta”, inventaram uma desculpa para não integrar aquela missão suicida.
Contou-me o próprio, numa das vezes que veio colmar para a minha família, ter dito não poder ir, porque estava a tomar conta de um filho de colo. No entanto, confidenciou-me que o motivo nada teve a ver com as suas obrigações paternais. Embora não nutrisse nenhuma simpatia pelas autoridades, com as quais tinha várias pendências por resolver, se pudesse atirar-lhes uma pedra do vão de uma janela, ou embosca-los numa esquina não perderia o ensejo, mas enfrentar guardas armados em campo aberto, era um ato tresloucado que não estava disposto a cometer.
Assim não pensaram os demais, pois que podiam fazer três soldados e um cabo contra uma aldeia inteira. Avançaram numa correria desenfreada sobre o pequeno contingente, que se preparou para enfrentar aquela carga determinada. O comandante da patrulha deu ordem para que ninguém disparasse sem indicação sua. Pediu a espingarda a um soldado, rodou o ferrolho para introduzir uma munição na câmara, apontou calmamente e disparou. A velha Mauser, cuja precisão e fiabilidade lhe valeram presença nas duas guerras mundiais, não desiludiu o bom sniper que a manuseava, alojando um projétil na parte superior de um joelho que se adiantava da multidão. Indiferentes à queda do companheiro, não se detiveram, até que outro joelho foi atingido. Perante a infalibilidade do atirador e na iminência da próxima bala ser para matar ao invés de ferir, debandaram para a segurança do casario. A contenda ficou por ali, mas há quem diga, se o confronto se agudiza-se, haver ordens para montar uma bateria no Alto de Gosende e arrasar Cotelo. Não creio que se chegasse a tanto, mas… se atentarmos na época dos acontecimentos, o poder centralizado usava os meios necessário para fazer cumprir a lei e era pouco tolerante com altercações da ordem pública.
A refrega saldou-se em dois feridos tardiamente assistidos, quando procuraram intervenção médica já a gangrena se tinha instalado e não havia outra solução para além da amputação. Um dos atingidos não acatou as indicações clinicas e morreu orgulhosamente íntegro, o outro não esteve com tais pruridos e ficou coxo, mas vivo. Ainda o conheci, com a sua prótese de carvalho rastiço, rematada por uma rodela de pneu.
Desde então não se registaram incidente maior, até que o dealbar do evento das eólicas despertou novos interesses e fez correr alguma tinta pelos tribunais.
 Nos últimos anos viu a sua paisagem ser decorada com algumas dezenas de aerogeradores; há pouco gado e ainda menos são os pastores que o apascentam; os carreiros deram lugar a estradas e os automóveis reformaram almocreves e azémolas; já nem sei se as rãs entoam o seu canto nupcial na lagoa que lhe dá nome!...
Mas, apesar de tudo, a sua planura permanece impávida e crua ao passar do tempo, numa vastidão antiga, onde o olhar se espraia e a voz se cala.
Vítor Silvestre