quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Todo Mundo e Ninguém



“Os portugueses descobriram a maior parte do mundo”. Já todos ouvimos este chavão da história universal, mas pouco refletem sobre as consequências da nossa demanda por mares nunca dantes navegados. Os descobrimentos portugueses vão-se esbatendo com o passar dos séculos e, para uma larga maioria, pouco mais não são que uma nota de rodapé nos alfarrábios da história.
Longínquos são os tempos em que apregoávamos, a autóctones estupefactos, que éramos senhores de todos os mares da terra, e a cinco mil léguas de distância impusemos a nossa vontade a reinos que facilmente superavam os maiores da Europa.
Embora esses feitos espantem os historiadores e exacerbem o orgulho nacional, o nosso maior legado à humanidade foi o conhecimento dos mares.
 Nós não fomos os únicos navegantes que se aventuraram pelo desconhecido. Os vikings navegaram até á Gronelândia e, provavelmente, até à Península do Lavrador, sendo os primeiros europeus a pisarem a América do Norte. O que nos distingue desses e de outros navegadores foi que, regidos pela batuta do Infante, fizermos uma exploração metódica, fundamentada em ciências como a matemática e a astrologia, que nos permitiram cartografar terras, ventos e correntes, registando esse conhecimento, para que outros, na nossa esteira, firmassem o processo da globalização, do qual fomos precursores.
Então, porque não ocupamos o lugar que nos é devido?
O estado espanhol, em 2009, encarregou a universidade de Granada de uma investigação para tentar esclarecer a nacionalidade de Cristóvão Colombo. Era remota a hipótese de ser castelhano, mas, ainda assim, os nossos vizinhos depositaram oito milhões de euros do erário público numa esperança que viram gorada.
E nós, com indícios muito mais fortes quanto à sua ascendência portuguesa, para além de nada fazermos, ainda vimos negada, pelo ministério da cultura, o pedido de exumação, para teste de ADN, de D. Fernando duque de Beja, irmão de D. Afonso V e provável pai de Cristofõn Colon, pseudónimo de Salvador Fernandes Zarco, erradamente conhecido por Cristóvão Colombo, pretenso primeiro europeu a chegar ao continente americano.
Pretenso, porque vinte anos antes, João Vaz Corte Real tinha ido dar à Terra Nova, quando procurava as águas dos bacalhaus.
Também foi preciso um australiano meter mãos à obra para reafirmar a tese que esta ilha continente não foi aportada pela primeira vez pelo capitão Cook, mas sim pelo navegador português Cristóvão de Mendonça duzentos anos antes.

     A resposta à pergunta supra efectuada é óbvia, o estado Português nunca se empenhou minimamente em aprofundar estes indícios que em muito contribuiriam para a promoção do nosso país, redefinindo a nossa importância no mundo. Não é coisa que a mim me espante, pois parece que os estrangeiros têm mais interesse pela nossa história que nós próprios. Dos melhores livros de história que li, não desprestigiando alguns nacionais, foram escritos por personalidades como boxer, Elaine Sanceau e o luso alemão Rainer Daehnhardt, que recentemente adquiriu o elmo que D. Sebastião usou em Alcácer Quibir e que lança uma série de novas pistas sobre o desaparecimento do Desejado.

Hoje, não somos ninguém, mas, como concluiu o Dr. Manuel Luciano Silva:
Nós não descobrimos a maior parte do mundo…
Nós descobrimos o mundo todo!
Nelo Montemuro

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

De Verão nas vendas e de Invernos nas tendas



Tendas e Vendas, a par das idas semanais à missa e ao barbeiro, pautavam a vida social das gentes da Gralheira. Destes locais de socialização, o mais invulgar era a Tenda, onde à força de malho moldavam as ferramentas essenciais a uma economia de subsistência. Como o título indicia a actividade era sazonal, só quando os campos invernavam sobe o frio agreste da montanha é que o mesteiral avivava o carvão a toque de fole e batia o ferro elevado ao rubro na face maciça da bigorna.
As tendas eram pequenas, sujas e caóticas; com ferro, fuligem e pó de carvão por todo o lado, mas mantinham uma temperatura cálida, tornando-as um refúgio agradável quando o cieiro talhava frieiras em orelhas e narizes. Assim, trocavam os bancos sombreiros da taberna, pelo ambiente constrito e sórdido da oficina do ferreiro.
Na minha infância e juventude, era raro o dia que não fazia uma visita ao “Tiu Zé Gago”. Sempre fiel ao ofício, lá estava a sua macérrima figura de pernas em ogiva, peito ossudo e braços longais que, encaixados no seu metro e noventa, lhe davam a aparência de um enorme aracnídeo urdindo o seu mester.
Era pessoa extrovertida que entretinha a garotada com histórias e anedotas picantes, a troco de lhe tocarem o fole ou, os adolescentes mais espigadotes, ajudarem a bater a três martelos. Ainda consigo visualizar a ordem por que era feita uma enxada, desde a barra de metal em bruto até ao acto de caldear. Era na parte final que residia o segredo da arte, no momento de temperar a peça, fazia-se um silêncio quase sepulcral, como se o ruido pudesse distrair o artesão da sagrada ciência milenar de dosear a dureza necessária e suficiente para sair obra acabada.
O ”Tiu Zé” fazia uma imersão rápida do ferro incandescente na água e, em contraluz, mirava-a fixamente com um olhar penetrante que contracenava com o bigode esparso e o nariz aquilino, dando-lhe o aspecto de um falcão focando a presa. A operação era repetida diversas vezes, até do metal refulgir um ténue tom azul-turquesa que indicava a têmpera certa e dava mote para o arrefecimento total do artefacto.
Homem dado a pregar partidas, havia uma que não resistia, sempre que abria o “olho” de uma enxada. Para realizar esse passo era usado um ferro cónico que moldava o orifício onde encaixava o cabo. Quando terminava a operação, ao retirar, com a mão nua, a cunha que tinha estado em contacto com o ferro em brasa, deixava-a cair intencionalmente e pedia que um de nós a apanha-se, como lhe tinha pegado, qual não era o espanto do infeliz voluntário quando apanhava um valente escaldão. Ele fazia-se muito admirado e, de imediato, pegava nela com aquelas mãos calejadas de negro, dizendo:
-Ih…ih…ó…ó seus punhetas, ih… isto queima alguma coisa!
Todos riamos de vontade com a forma como as palavras eram coreografadas entre gestos e expressões típicas da personagem.
Numa ocasião, quem não achou graça foi o “Aranhão” quando, durante a pausa para o almoço, aquecemos a chegadeira com que remexia o carvão incandescente e, devido á sua súbita chegada, não tivemos tempo de o arrefecer. Quando lhe pegou, o objecto voou porta fora, acompanhado de uma imprecação:
- Ih…ih…ah carelho!
Enquanto nos escapulíamos pela estreita meia porta, a sua longa perna descrevia um semicírculo para pontapear o rabo aos retardatários.
Tal como o martelo de ferrador retiniu pela calçada, quase a morder-me os calcanhares, por lhe vergastar a égua durante a ferragem.
 Andava por volta dos dez anos e estava a observar o Tiu Zé a ferrar a “Burra”, enquanto cravava a ferradura numa dos membros anteriores, resolvi, com uma vergasta de giesta, fustigar a garupa do animal. O equídeo, que não era dos mais dóceis, reagia ao castigo, retardando a execução da tarefa. O ferrador praguejava, admoestava o animal e culpava a Tia Odete, que o ajudava a segurar na pata. Quanto mais se irritava, mais eu brandia o açoite, até que ao dobrar-se para apanhar um cravo que caíra ao chão, pelo canto do olho, vislumbrou um movimento no ângulo morto, ficou atento e ao confirmar as suspeitas, vociferou:
Ih…ih…ó…ó cara de vergalho!
A partir desse dia não passava a ombreira da porta, até que o homem chamou-me e disse:
-Ih…ih…anda cá moço, ih…eu não te faço mal, ih… tive foi medo que a égua te desse um coice.
Pazes feitas, continuei a sujar regularmente o cú das calças no tresfogueiro da forja, até ao dia em que os sinos dobraram para anunciarem uma morte prematura. Rondava os cinquenta e um acidente vascular pôs fim a uma vida de trabalho e de dedicação à arte que legou aos descendentes. Os filhos mais velhos, já homens feitos, não envergonharam os pergaminhos do progenitor, tornaram-se ferreiros hábeis e mantiveram a reputação de que eram herdeiros.
O negócio continuou pujante, pois os gumes das ferramentas industriais que começavam a despontar por aquelas bandas não estavam à altura dos tojos de Penacova e das raízes de piorna negral, até que o dealbar de uma nova era tornou a serra bravia, os matos maninhos e as enxadas gastas pela ferrugem ao invés do uso.
Aos poucos, a tenda seguiu os passos dos cavadores, agonizante e moribunda é hoje uma relíquia museológica onde, raramente, se ouve o timbrar do ferro e o resfolgar rouco do fole. Quando ecoa pela freguesia o som inconfundível do malho no metal, é o canto fúnebre de uma arte que não verá outra geração.
Por vezes, quando por lá passo, abro a porta e vejo o passado das memórias que não morrem.

Vitor Silvestre