quarta-feira, 9 de outubro de 2013

De Verão nas vendas e de Invernos nas tendas



Tendas e Vendas, a par das idas semanais à missa e ao barbeiro, pautavam a vida social das gentes da Gralheira. Destes locais de socialização, o mais invulgar era a Tenda, onde à força de malho moldavam as ferramentas essenciais a uma economia de subsistência. Como o título indicia a actividade era sazonal, só quando os campos invernavam sobe o frio agreste da montanha é que o mesteiral avivava o carvão a toque de fole e batia o ferro elevado ao rubro na face maciça da bigorna.
As tendas eram pequenas, sujas e caóticas; com ferro, fuligem e pó de carvão por todo o lado, mas mantinham uma temperatura cálida, tornando-as um refúgio agradável quando o cieiro talhava frieiras em orelhas e narizes. Assim, trocavam os bancos sombreiros da taberna, pelo ambiente constrito e sórdido da oficina do ferreiro.
Na minha infância e juventude, era raro o dia que não fazia uma visita ao “Tiu Zé Gago”. Sempre fiel ao ofício, lá estava a sua macérrima figura de pernas em ogiva, peito ossudo e braços longais que, encaixados no seu metro e noventa, lhe davam a aparência de um enorme aracnídeo urdindo o seu mester.
Era pessoa extrovertida que entretinha a garotada com histórias e anedotas picantes, a troco de lhe tocarem o fole ou, os adolescentes mais espigadotes, ajudarem a bater a três martelos. Ainda consigo visualizar a ordem por que era feita uma enxada, desde a barra de metal em bruto até ao acto de caldear. Era na parte final que residia o segredo da arte, no momento de temperar a peça, fazia-se um silêncio quase sepulcral, como se o ruido pudesse distrair o artesão da sagrada ciência milenar de dosear a dureza necessária e suficiente para sair obra acabada.
O ”Tiu Zé” fazia uma imersão rápida do ferro incandescente na água e, em contraluz, mirava-a fixamente com um olhar penetrante que contracenava com o bigode esparso e o nariz aquilino, dando-lhe o aspecto de um falcão focando a presa. A operação era repetida diversas vezes, até do metal refulgir um ténue tom azul-turquesa que indicava a têmpera certa e dava mote para o arrefecimento total do artefacto.
Homem dado a pregar partidas, havia uma que não resistia, sempre que abria o “olho” de uma enxada. Para realizar esse passo era usado um ferro cónico que moldava o orifício onde encaixava o cabo. Quando terminava a operação, ao retirar, com a mão nua, a cunha que tinha estado em contacto com o ferro em brasa, deixava-a cair intencionalmente e pedia que um de nós a apanha-se, como lhe tinha pegado, qual não era o espanto do infeliz voluntário quando apanhava um valente escaldão. Ele fazia-se muito admirado e, de imediato, pegava nela com aquelas mãos calejadas de negro, dizendo:
-Ih…ih…ó…ó seus punhetas, ih… isto queima alguma coisa!
Todos riamos de vontade com a forma como as palavras eram coreografadas entre gestos e expressões típicas da personagem.
Numa ocasião, quem não achou graça foi o “Aranhão” quando, durante a pausa para o almoço, aquecemos a chegadeira com que remexia o carvão incandescente e, devido á sua súbita chegada, não tivemos tempo de o arrefecer. Quando lhe pegou, o objecto voou porta fora, acompanhado de uma imprecação:
- Ih…ih…ah carelho!
Enquanto nos escapulíamos pela estreita meia porta, a sua longa perna descrevia um semicírculo para pontapear o rabo aos retardatários.
Tal como o martelo de ferrador retiniu pela calçada, quase a morder-me os calcanhares, por lhe vergastar a égua durante a ferragem.
 Andava por volta dos dez anos e estava a observar o Tiu Zé a ferrar a “Burra”, enquanto cravava a ferradura numa dos membros anteriores, resolvi, com uma vergasta de giesta, fustigar a garupa do animal. O equídeo, que não era dos mais dóceis, reagia ao castigo, retardando a execução da tarefa. O ferrador praguejava, admoestava o animal e culpava a Tia Odete, que o ajudava a segurar na pata. Quanto mais se irritava, mais eu brandia o açoite, até que ao dobrar-se para apanhar um cravo que caíra ao chão, pelo canto do olho, vislumbrou um movimento no ângulo morto, ficou atento e ao confirmar as suspeitas, vociferou:
Ih…ih…ó…ó cara de vergalho!
A partir desse dia não passava a ombreira da porta, até que o homem chamou-me e disse:
-Ih…ih…anda cá moço, ih…eu não te faço mal, ih… tive foi medo que a égua te desse um coice.
Pazes feitas, continuei a sujar regularmente o cú das calças no tresfogueiro da forja, até ao dia em que os sinos dobraram para anunciarem uma morte prematura. Rondava os cinquenta e um acidente vascular pôs fim a uma vida de trabalho e de dedicação à arte que legou aos descendentes. Os filhos mais velhos, já homens feitos, não envergonharam os pergaminhos do progenitor, tornaram-se ferreiros hábeis e mantiveram a reputação de que eram herdeiros.
O negócio continuou pujante, pois os gumes das ferramentas industriais que começavam a despontar por aquelas bandas não estavam à altura dos tojos de Penacova e das raízes de piorna negral, até que o dealbar de uma nova era tornou a serra bravia, os matos maninhos e as enxadas gastas pela ferrugem ao invés do uso.
Aos poucos, a tenda seguiu os passos dos cavadores, agonizante e moribunda é hoje uma relíquia museológica onde, raramente, se ouve o timbrar do ferro e o resfolgar rouco do fole. Quando ecoa pela freguesia o som inconfundível do malho no metal, é o canto fúnebre de uma arte que não verá outra geração.
Por vezes, quando por lá passo, abro a porta e vejo o passado das memórias que não morrem.

Vitor Silvestre

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