Estatisticamente
falando, somos um dos países que mais tem elevado os índices de escolaridade. O
facilitismo crescente da última década converteu-nos numa sociedade prolífera
em cursos expresse, onde a força dos números se impôs à necessidade do saber.
Passamos de uma nação de analfabetos para uma amálgama de licenciaturas,
mestrados e doutoramentos, muitos dos quais nem sabemos o que são nem para que
servem, que sustentam a aparência do “Ter”
veiculada pela vontade de quem manda.
No
início do Estado Novo, Portugal era o país com a maior taxa de analfabetismo da
Europa Ocidental, mais de 60% da população não conhecia os rudimentos da
escrita.
Com
a ascensão do Dr. Salazar a presidente do conselho, a par da reestruturação
económica, a educação foi uma das preocupações do autocrático governo. Esse
esforço titânico de inverter uma tendência profundamente enraizada num povo,
que estava mais preocupado em sobreviver à miséria que a frequentar os bancos
da escola, acabou por dar frutos e, no dealbar da liberdade, menos de 25% das
nossas almas não sabia as primeiras letras.
Era
um ensino formatado pela bitola do conhecer sem compreender, que limitava o
pensamento para além do pragmatismo do ler, escrever e contar, mas que lançou a
estrutura base para o sistema educativo pôs 25 de Abril. As mais de sete mil
escolas primárias construídas nas mais recônditas e isoladas aldeias e a
colocação de centenas de regentes escolares que supriram a carência de
professoras primárias, muitas das quais acabaram por frequentar o magistério e
ascenderem ao estatuto de professora, tornaram possível o incremento de um novo
impulso educativo que, progressivamente, tornou o acesso ao ensino mais
abrangente ao nível médio e superior.
Embora,
o ensino primário, em Portugal, seja obrigatório desde 1835, só com o
salazarismo foi cumprida a imposição legal de três anos, sendo o exame da 4ª
facultativo. Essa obrigatoriedade colidia com o interesse dos progenitores, mais
interessados no presente do que no futuro dos seus educandos. Os filhos, desde
tenra idade, contribuíam para a débil economia familiar, sendo mais úteis a
guardar cabras que a soletrar o abecedário. Por isso, as faltas eram
recorrentes, tendo os professores que aplicar coimas para convencer os mais
reticentes.
A primeira professora a ser colocada na Gralheira,
ao abrigo desta renovada imposição, foi a “Ruça”,
assim alcunhada devido ao tom aloirado do cabelo. Essa senhora tornou-se o
arquétipo das sevícias escolares, tal era a brutalidade com que admoestava os
alunos.
O terror
que infligia aos miúdos era tal, que o “Canadiana”, por não ter muda de roupa dos
“dias de fazer”, atirou-se ao tanque
do Ribeirinho para não ir à escola.
Outros
recorriam a truques mais dissimulados para mitigar as vergastadas da vara de
salgueiro que pairava ameaçadora sobre as suas cabeças, aquando das idas ao quadro.
Mesmo nos dias quentes de junho, as raparigas não dispensavam o uso de capucho
e os rapazes casaco de burel com enchumaços no antebraço, para amortecer o
ímpeto das varadas.
A
mestra batia e os pais mandavam bater. Por isso, os petizes comiam e calavam
para não levarem em dobro, caso se queixassem no lar. Apenas a “Tia Aurora” achou ser demais o seu
“Toninho” ser privado do parco almoço, só por ter dado cinquenta erros e oito
faltas, nas cinquenta palavras que compunham o ditado.
Foi
à escola e disse:
-Sr.
Professora, o meu Toninho não vem almoçar?
Ao
que a senhora respondeu de pronto:
Não!..Porque
deu muitos erros.
A
mulher deu meia volta, mas tornou a bater à porta e, quando esta foi aberta,
escachou uma piorna na cabeça da professora, libertando o seu “Toninho”.
O
caso foi para tribunal, foram ouvidas as testemunhas, em particular o do “Tiu António
Francisco” que resumiu o pensamento vigente na época:
-Sr.
Dr. Juiz, ela é um bocado ríspida, mas com esta canalha não pode ser de outro
jeito.
Também
foi lançado um programa de alfabetização de adulto, em horário pós laboral, com
incentivos pecuniários por cada aluno que concluísse com aproveitamento. Para uma
regente que ganhava quinhentos escudos mensais, apenas nos meses que
leccionava, aquele dinheiro extra era muito bem-vindo. De conluio com o
professor delegado para inspeccionar os exames, todos os alunos propostos saíam
diplomados.
O
“Fira” foi um desses estudantes maduros que, apesar de lhe terem facultado o
texto do ditado na véspera, errou a escrita das três primeiras palavras. O
inspector, perdido de riso, gracejava:
-Ó
Sr. Porfírio, então eu dei-lhe uma cópia do ditado e o Sr. começa desta
maneira!
Ao que o das “ Veias” respondia tremelicando.
-Ó
Sr. Professor, eu estou cá com um nervoso.
Mas,
nervosismos à parte, tal como nas novas oportunidades, também o examinado
conseguiu os seus intentos.
A “Ruça”
não era benquista pela rapaziada que, quando podia, não perdia uma oportunidade
para se vingar. Uma das coisas que mais a acirrava era irem roubar ovos aos ninhos,
se fosse algum aluno a tareia era certa, mas o “Bamburra”, já passado da idade de frequentar a escola, não estava
debaixo da sua alçada. Certa ocasião, resolveu rapinar um ninho e foi bater à
porta da professora, quando esta a abriu, estrelou-lhe os ovos na cara. De
imediato, o marido da senhora, alertado pelos gritos da consorte, deu caça ao
atrevido, mas os pés descalços do fugitivo faziam rasos muros e socalcos,
enquanto os sapatos polidos do perseguidor escabreavam-se por bordas e
arribadas, mal lhe pondo a vista em cima.
Era
assim, o ensino naquele tempo, não seria o melhor, mas tinha as suas virtudes.
As regentes supriam as suas limitações com empenho, trabalho e dedicação a um
emprego precário, mas que era muito mais do que teriam almejado. O estado
pagava mal, mas conferia aos seus funcionários um respaldo de respeito e
autoridade inquestionáveis.
Actualmente, quando vejo profissionais do
ensino trabalharem anos sem vínculo efectivo, mal pagos e desrespeitados por
educadores e educados, com a conivência de uma política eleitoralista que
trabalha para a estatística, não vejo futuro nesta nação de neo-analfabetos.
No
entanto, se quisermos fazer uma análise séria, 30% dos nossos docentes tinham de
ser banidos do ensino. Não basta ter conhecimentos técnicos do que se lecciona,
é necessário ter competências pedagógicas e, acima de tudo, gosto pela
profissão.
Chego
a esta conclusão através da experiência com o meu filho que frequentou o 5º
ano: em que vi incompetência, laxismo e a falta de vontade enraizada no horário
zero e no conforto dos escalões da antiguidade.
Mas, também vi gente capaz, com valências
firmadas, que impõem respeito e obtêm resultados, sem se escudar na retórica
veiculada pelos sindicatos.
É urgente
requalificar e reabilitar uma classe que deve ter orgulho do serviço que presta
à sociedade, para que lhe devamos a consideração merecida, o respeito
necessário e a retribuição justa.
Mal está o país que não dignificar os seus
dignos formadores.
Com
vontade política, um pouquinho de “Ruça”
e uma pitada da velha máxima dos antigos educadores- chegue-lhe para baixo- talvez, não fosse difícil meter o ensino
nos eixos.
Vítor Silvestre
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