domingo, 25 de novembro de 2012

As minhas origens



Embora tenha nascido no Porto e aí residido o primeiro quartel da minha vida, não estando em causa os laços afetivos que me unem ao cinzento granítico daquelas ruas e fachadas, é na alcantilada e agreste Gralheira que se encontra a essência da minha naturalidade.
A cidade, qual companheira fiel, proporcionava experiência e saber, abrindo-me os horizontes da modernidade, mas a aldeia era a saudosa amante que me arrebatava a alma, num indizível deleite libertino. A minha infância e juventude foram vividas num mundo de dois hemisférios, que me proporcionaram uma ambivalência de vida inalienável da minha personalidade.
Podemos ser de onde nascemos e vivemos, mas, acima de tudo, somos de onde são as nossas raízes. Como as minhas, até ao limite da memória, são gralheirenses, um apelo ancestral percorria atento o calendário, numa ânsia desmedida para retornar ao pó das suas origens.
Quando terminava a escola, um dia antes, viajava de autocarro até Cinfães e, para não ter que aguardar pela ligação às Portas, apanhava boleia nos camiões de areia até à Carvalhosa, fazendo os restantes sete km a pé. A chegada era sempre efusiva, com os abraços saudosos da família e a árdua tarefa de cumprimentar uma freguesia inteira, antes de poder desfrutar da companhia dos amigos e companheiros de travessuras. Embora fosse benquisto pela maioria, apreciadora do meu carater jovial e traquina, havia vozes dissonantes que, sem me pronunciarem o nome, diziam apreensivas:
-Já cá está o do Carlos…
O Nelo, como sou conhecido, era o suspeito crónico de todas as anomalias ocorridas no povoado. Algumas vezes, fui responsabilizado pelo que não fiz, mas, na maioria dos casos, era culpado e nem a defesa acérrima da minha tia Maria “Sapa ”conseguia um alibi credível, capaz de me ilibar do delito cometido. As “judiarias” eram mitigadas pela maneira como comungava com comunidade: partilhava a sua forma de vida, comunicávamos na mesma língua; não me olhavam como um elemento estranho, era diferente entre iguais. Os “lisboetas”; como denominavam os filhos do êxodo rural, ainda que não residissem na capital; com os “chês” do seu linguajar, os arrivistas modos citadinos e o ócio estival, eram mal aceites pelos autóctones de falar áspero e rude, que mourejavam à torreira do Sol e não compreendiam o direito às merecidas férias, intitulando-os como malandros. Esta visão dicotómica originava, ao nível da juventude, uma clivagem entre os da terra e os de Lisboa. Eles apenas nos ignoravam, passavam os dias na “piscina” de papo para o ar, na companhia de raparigas de estética mais cuidada, que não cheiravam a feno e, supostamente, permitiam liberdades mais ousadas do que as “nossas”. Por isso, assediávamos os bailes à porta fechada e apedrejávamos o vazio da noite, não só com o intuito de destabilizar essa vivência idílica, mas pelo prazer emotivo da rebeldia adolescente.   
 Logo à chegada, apresentava-me ao meu tio Herculano e acompanhava-o, diariamente, no amanho das terras e no trato das vacas, convertendo-me no filho que nunca teve. Embora fosse meu padrinho, nunca o tratei dessa forma, mas foi o único homem da família, pra além do meu pai, a quem sempre beijei a face. Esse cumprimento emanava de um afeto que não carecia ser dito, estava impresso em cada palavra, em cada gesto, numa simbiose inquebrantável. Tudo fazia para satisfazer as minhas vontades, mesmo que fossem um pouco precoces para um miúdo de seis anos. Para o efeito, deslocou-se ao Porto e comprou uma gadanha nº20 que encabou no cabo feito por medida, para que eu pudesse cortar erva. Dirigiu-se à rua do Almada e, numa das múltiplas casa de ferragens, perguntou ao ferrageiro:
-Quanto custa esta gadanha?
- Mil escudos.
Ao escutar a cifra, arremessou o objeto pra o balcão e, perante a estupefação do caixeiro, disse convicto:
- Tome-a lá, que não presta!
 Confuso, o homem questionou indignado:
-Não presta!...Então porquê?
-Porque é muito barata!
Um destes utensílios, na Gralheira e arredores, andava pelo dobro desse valor, como tal, achou ser de qualidade inferior. O experiente comerciante teve de explicar-lhe os trâmites da infanção que o produto sofria desde que era ali comprado, até ser vendido pelo intermediário na sua loja do interior.
Assim fui crescendo por entre fragas e penedos, desfrutando de uma liberdade periódica que nunca sucumbiu às tentações citadinas da juventude. Com outros da mesma laia, passávamos a aldeia a pente fino em noites de folia irreverente que, não raras vezes, com o amanhecer causavam celeuma no largo dos Carvalhos, onde vozes ressentidas comentavam:
- Banaboias...
Nem sempre as noitadas eram desse teor, também eram adornadas por arruadas canoras e serenatas românticas a donzelas de recolher obrigatório ao toque das trindades.
Hoje, passo menos tempo na Gralheira: a pacatez bucólica do passado foi substituída pelo ruido dos motores e a azáfama sazonal de forasteiros; quase não há vacas e a agricultura é residual; os amigos de infância dispersaram-se pelos caminhos da vida e os reencontros são esporádicos; o meu filho e os amigos, infetados com a doença do ecrã, não aproveitam o potencial que aquela natureza lhes oferece; muitos, já nem sabemos quem são, antes de perguntar como é hábito por lá:
-Tu de quem és?
 Quase me sinto um estrangeiro dentro da minha própria terra.
A evolução tecnológica transformou o planeta numa aldeia global, somos cidadãos do mundo, podemos pertencer a toda a parte, mas quem reconhecer as suas origens, saberá sempre onde é o seu lugar.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O desejo da carne



Quando intitulo esta crónica, faço-o no sentido literal da expressão, qualquer conotação bíblica é uma mera coincidência. Este desejo proteico, para a minha geração, só fará sentido se recordamos o bife com batatas fritas da nossa infância. Mas, para as que nos antecederam, nem vulgarização do seu consumo consegue olvidar a abstinência passada.
 Ainda sou do tempo, em que os meus conterrâneos davam valor ao frango assado e à marrã que, ocasionalmente, comiam nas feiras e romarias. Porque em casa, o bacorito mal cevado tinha de ser regrado com parcimónia, para que não sobrasse muito ano ao vazio da salgadeira. Os mimos do suíno, enchidos e presuntos, eram guardados para a força do trabalho, cabendo às talhadinhas de suã, enquanto as houvesse, o papel de adubar as batatas com “carne frita”. Galináceos eram reservados para convalescer uma parturiente, ou um enfermo, como o meu avô António: quando o seu corpo roliço, que lhe valia a alcunha de “Sapo”, pedia melhoria de rancho, dava parte de doente. “Carne fresca”, caprina ou ovina, só em dias de festa, assada no forno a lenha e acompanhada com arroz tostado no alguidar. Outras reses, vacas e bezerros, desempenhavam um papel económico que ia além da alimentação dos seus proprietários; apenas lhe “passavam pelo estreito” se fossem vítimas de algum acidente mortal, ou incapacitante que força-se o abate.
Repastos desse género ficaram nas memórias infantis daqueles, já septuagenários, que, por providência divina, desfrutaram da morte de duas vacas do “Escudela”, fulminadas por um raio. Como foram sangradas em tempo útil, as carcaças foram retalhadas e vendidas na freguesia e arredores, para mitigar o prejuízo. Não que, na Gralheira, houvesse falta de bocas para devorar os dois bovídeos e mais que fosse, mas as bolsas era inversamente proporcionais ao apetite dos consumidores.  
Apetite que, embora voraz, era escrupuloso ao ponto de enjeitar o consumo de uma vaca e uma cabra, também vítimas da trovoada, por não terem sido sangradas, retendo a carne os fluídos corporais. Quem apascentava os animais era o “Mistoso”, também afetado pela descarga elétrica, tendo dificuldades em regressar para contar o sucedido. Ao retornar para enterrar os cadáveres, depois de indagar-lhe a localização, dizia o seu tio arreliado:
- Ora porra!..Tinham, logo, que morrer naquelas fragas...vamo-nos ver “cozidos” para arrastar a vaca.
Qual não foi o espanto, quando chegaram ao local, só lá encontrarem pele e cornos, todo o resto tinha desaparecido. Incrédulos, retrocederam ao caminho, mas quando chegaram à portela de Tejosa, avistaram uma fila de pessoas que subia a Costa Carreira carregados que nem azeméis, desfazendo as dúvidas quanto ao destino das carcaças. Os da Panchorra pouco se importaram com rubor ensanguentado da carne não purgada, como formigas recolectoras transportaram o que podiam para encher panelas e estômagos vazios.
Mais recentemente, já em época mais farta, ainda perduravam os resquícios passados. Estava eu com o meu primo “chinês” no alto do Portal Mafala, quando me apercebi da proximidade das suas vacas com as do Alcindo de Cotelo. Como o confronto parecia iminente, alertei-o de para o facto:
“Chinês”!...Vai lá, que as tuas vacas vão lutar com as do Alcindo!
Para meu espanto, o rapaz, mais novo alguns anos, reagiu com uma calma que desafiava a sua imaturidade:
-Não faz mal…eu até queria que elas lutassem e uma das dele morresse.
Surpreendido, perguntei-lhe, franzindo o senho:
-Para quê?
Ao que ele, calmamente, esclareceu:
- É que depois, o meu pai, par ajudar o Alcindo, comprava muita carne para comermos em casa; como aconteceu: quando, a minha “Cabana”, no Portaporca, matou, com uma marrada, uma da Panchorra.
Soltei uma gargalhada, e ripostei com o triunfo de quem iria desarmar-lhe o raciocínio:
- Então, se morre uma das tuas?
Ao que aquele pirralho, frio e calculista, concluiu:
-Se fosse a minha…ainda comia mais.
Na ocasião, este diálogo apenas me divertiu, mas refletindo um pouco no assunto, podemos extrapola-lo para conclusões mais abrangentes sobre as condições económicas e sociais das gerações dos hidratos de carbono. Com a melhoria per capita dos rendimentos, a alimentação tornou-se mais variada e rica em proteínas animais, o que contribuiu para uma alteração fisionómica relevante nas gerações mais recentes. Somos mais altos, aproximamo-nos das médias do centro-norte da europa, mas também somos mais gordos. A globalização do fast-food, aliada a hábitos mais sedentários, transformou a obesidade num problema crescente das sociedades ocidentais. Segundo um estudo recente, os excessos alimentares do mundo desenvolvido causam mais óbitos que a insuficiência alimentar dos povos carenciados.
Portugal não possui recursos bastantes, nem uma política agrícola que promova diminuição da dependência externa. As nossas reservas são os cargueiros que estão atracados nos nossos portos. Beneficiamos de uma posição geográfica que nos insere num contexto alimentar excedentário, mas se for interrompido por alterações que restrinjam a produção ou a logística mundial, ver-nos-emos confrontados com necessidades alimentares, muito para além:
Do desejo da carne…
Vitor Silvestre