Alagoa é um planalto secundário do maciço de Montemuro. A sua
designação advém da existência de uma considerável lagoa sazonal, resultante da
saturação do aquífero durante as precipitações invernais. Na maioria dos anos,
seca nos meses mais quentes, mas o enorme reservatório subterrâneo abastece as
nascentes, mantendo o altiplano verdejante, proporcionando pastagem a inúmeras
cabeças de gado. Por isso, as aldeias circundantes disputavam o direito de
usufruto desta vasta planura. Não reclamavam a sua posse, porque não era
terreno baldio. Segundo reza a história, pertencia ao tal D. João que, em data
incerta, tê-la-á ganho numa aposta, ao conseguir circundar toda a sua extensão
no período de uma hora. Realizou a façanha montado num fogoso cavalo que,
segundo se conta, terá sucumbido, por exaustão, ao terminar a proeza.
Como o dono não dava importância àquele seu domínio, as povoações limítrofes
apossaram-se daquela terra devoluta sem oposição legal, mas a demarcação do
quinhão que competia a cada consorte nem sempre gerou consenso. Houve várias
querelas menores, mas a mais acérrima levou os de Cutelo a apreenderam umas
vacas da Panchorra e outras da Talhada por se encontrarem dentro dos limites
aleatoriamente estipulados. Perante tal ocorrência os Panchorrenses tocaram o
sino a rebate e armados como podiam correram para resgatar os animais. Mas, ao
chegarem a Alagoa, depararam-se com uma frente bem formada, encabeçada pelos
Camilos, o que fez fenecer a braveza com que vinham. Os da Talhada agiram com
mais ponderação e foram apresentar queixa às autoridades a Lamego. De imediato,
o comandante do destacamento enviou uma patrulha, acompanhada pelos queixosos,
para resgatar os animais retidos indevidamente. Deixaram a viatura no Alto de
Gosende, onde terminava a estrada, seguindo a pé em direção à Veiga, onde as
vacas pastavam. Depois de identificados, os bovinos foram reunidos e postos em
marcha, escoltados pelos guardas. Mal tinha iniciado a caminhada avistaram um
forte contingente armado de paus, chuços, forquilhas e demais artefactos que se
dirigia na sua direção para cortar-lhes a retirada. Pois, quando se aperceberam
das intenções da G.N.R., foi dado toque a reunir e todo o povo se apressou a
comparecer para o confronto. Apenas os mais escarmentados, como o “Ribalta”, inventaram uma desculpa para
não integrar aquela missão suicida.
Contou-me o próprio, numa das vezes que veio colmar para a minha
família, ter dito não poder ir, porque estava a tomar conta de um filho de colo.
No entanto, confidenciou-me que o motivo nada teve a ver com as suas obrigações
paternais. Embora não nutrisse nenhuma simpatia pelas autoridades, com as quais
tinha várias pendências por resolver, se pudesse atirar-lhes uma pedra do vão
de uma janela, ou embosca-los numa esquina não perderia o ensejo, mas enfrentar
guardas armados em campo aberto, era um ato tresloucado que não estava disposto
a cometer.
Assim não pensaram os demais, pois que podiam fazer três soldados e um
cabo contra uma aldeia inteira. Avançaram numa correria desenfreada sobre o
pequeno contingente, que se preparou para enfrentar aquela carga determinada. O
comandante da patrulha deu ordem para que ninguém disparasse sem indicação sua.
Pediu a espingarda a um soldado, rodou o ferrolho para introduzir uma munição
na câmara, apontou calmamente e disparou. A velha Mauser, cuja precisão e
fiabilidade lhe valeram presença nas duas guerras mundiais, não desiludiu o bom
sniper que a manuseava, alojando um
projétil na parte superior de um joelho que se adiantava da multidão.
Indiferentes à queda do companheiro, não se detiveram, até que outro joelho foi
atingido. Perante a infalibilidade do atirador e na iminência da próxima bala
ser para matar ao invés de ferir, debandaram para a segurança do casario. A
contenda ficou por ali, mas há quem diga, se o confronto se agudiza-se, haver
ordens para montar uma bateria no Alto de Gosende e arrasar Cotelo. Não creio
que se chegasse a tanto, mas… se atentarmos na época dos acontecimentos, o
poder centralizado usava os meios necessário para fazer cumprir a lei e era
pouco tolerante com altercações da ordem pública.
A refrega saldou-se em dois feridos tardiamente assistidos, quando
procuraram intervenção médica já a gangrena se tinha instalado e não havia
outra solução para além da amputação. Um dos atingidos não acatou as indicações
clinicas e morreu orgulhosamente íntegro, o outro não esteve com tais pruridos
e ficou coxo, mas vivo. Ainda o conheci, com a sua prótese de carvalho rastiço,
rematada por uma rodela de pneu.
Desde então não se registaram incidente maior, até que o dealbar do
evento das eólicas despertou novos interesses e fez correr alguma tinta pelos
tribunais.
Nos últimos anos viu a sua
paisagem ser decorada com algumas dezenas de aerogeradores; há pouco gado e
ainda menos são os pastores que o apascentam; os carreiros deram lugar a
estradas e os automóveis reformaram almocreves e azémolas; já nem sei se as rãs
entoam o seu canto nupcial na lagoa que lhe dá nome!...
Mas, apesar de tudo, a sua planura permanece impávida e crua ao passar
do tempo, numa vastidão antiga, onde o olhar se espraia e a voz se cala.
Vítor Silvestre
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