quinta-feira, 23 de maio de 2013

A “Zargata” com os de Alhões


O bairrismo exacerbado, aliado à pobreza e suas associadas, sempres despoletaram pequenas guerrilhas entre os diversos povoados que ponteiam a paisagem de Montemuro. A maioria não passava de incidentes menores, que não ia além de orgulho ferido, mas também existiram casos mais graves, até de morte.
Os da Gralheira não eram dos mais afoutos nesse mester, embora haja relatos de uma ou outra desavença, por norma, não era gente que provocasse deliberadamente o confronto. Apenas há a salientar uma cena de agressão, com laivos de covardia, ao Sr. Abílio de Bustelo, no rescaldo de uma cena de pancadaria ocorrida na vinda da Feira do Fojo. Para além deste incidente, o confronto com os de Alhões, no dia da padroeira, foi a maior contenda em que os meus conterrâneos se viram envolvidos.
Na origem deste incidente esteve uma troca de palavras mais azedas entre o Zé do Belchior e dois indivíduos daquela freguesia, nas antevésperas da festa da Sra. da Graça. O caso foi de pouca monta, mas os fulanos despeitados acirraram os comparsas e, no dia da celebração do orago, a Gralheira foi invadida por quatro dezenas de pauliteiros, com intenções pouco amistosas. Enquanto se celebrava a eucaristia, aquela trupe ruidosa dava arruadas ao povo, numa total falta de respeito para com a celebração em curso. Mas, durante a procissão, a presença do regedor e dos cabos de ordens, inibiu-os de cometer qualquer desacato. No entanto as suas atitudes não passaram despercebidas, como prova o comentário do “tiu Davide”, durante o almoço, para os seus sobrinhos “Crioilo” e “Pontes”:
- Hoje, nesta terra, vai haver uma grande “zargata”
Ao que o avô dos rapazes, na sua ingenuidade, retorquiu:
-Isso está bem!...Ia haver “zargata” no dia de festa!
 Ao que o “Alicate” reafirmou pensativo:
- É como vos digo, ou então…não há homens na Gralheira…
A conversa ficou por ali. O arraial prosseguiu normalmente, pois os arruaceiros, depois de terem feito a arruaça e saídos impunes, deram-se por satisfeitos com a demostração de ousadia e retiraram-se para o Cantinho, onde o “Vila Maior” tinha uma tasca improvisada na loja das mulas. Aí bebiam e cantavam, mas como era desviado do local das festividades, não incomodavam, nem eram incomodados. No entanto, quis o destino que o dia não terminasse sem incidentes.
 O “Tiu António Regedor”, para lá da meia-tarde, entrou na tasca do “Gabirú”; um dos atrevidos, que lá tinha ido comprar cigarros, começou a insulta-lo e a proferir ameaças. O regedor, por precaução, quando chegou ao arraial convocou as suas ordenanças, ordenando-lhes que fossem buscar as armas. A ordem foi sendo desvirtuada de boca em boca, até se transformar num rumor que dizia haver barulho no Cantinho. Aos poucos, algumas pessoas foram-se aproximando do local para averiguar o dito.
Um dos primeiros a chegar foi o “Tiu Isaías”, homem destemido, apreciador de provas de força e rasgos de valentia; outro foi o “Tiu Amadeu do Maximiano”; Seguidos pelo “Crioilo”, um rapaz já espigado, e o irmão “Pontes” que pouco mais era que um adolescente e tentava demover o irmão de se meter no potencial conflito. Ao chegarem ao local, um tal “Campeão” deu ordem de comando:
-Formai roda!
A falange dispôs-se num semicírculo com as costas protegidas pela casa do “Lixandre” e a frente, de maus eriçados, voltada para o largo.(Quem me contou a cena foi o “Pontes”, que tinha subido a um pátio e podia ver com clareza o desenrolar da cena).  A partir daí os acontecimentos precipitaram-se, enquanto o diabo esfrega um olho, já o Isaías; que estava armado de um estadulho curto e afiado, retirado de um carro de vacas; tinha saltado para o meio das ostes inimigas. Quando entrou no âmago da formação, todos os porretes lhe caíram em cima, mas as pauladas entrechocaram, evitando que fosse atingido pela maioria e amortecendo parte do impacto das que lhe bateram. No combate corpo a corpo, a proximidade torna pouco manejável uma arma de maiores dimensões, enquanto o pequeno estadulho era usado como um gládio para espichar o ventre aos inimigos.
Na tentativa de derrubarem aquele temerário adversário que irrompia pelas suas fileiras insensível aos golpes, desferindo chuçadas certeiras; aliada a uma parte que persegui o “Tiu Amadeu” até ao fudo da rua, rematada por uma quelha, onde se entrincheirou; mais uns quantos que encurralaram o “Crioilo”; desviou-lhes atenção dos outros combatentes que foram chegando à refrega. Um dos que entrou em cena foi o “Bombo”, cuja ajuda foi providencial para safar o “Tiu Armando” que, já com duas brechas na cabeça, defendia-se a custo dos ataques de que era alvo. Vindo pela retaguarda, retesou o seu corpo rechonchudo, fincou as pernas curtas e com a firmeza que os pequenos e papudos dedos lhe permitiam, acertou “à mão tenta” nos que o assediavam. Quase em simultâneo apareceram os cabos de ordens de armas em punho, o que fez debandar o que restava da formação inicial. Desorganizados e dispersos, eram alvos fáceis da perseguição levada a cabo por toda a freguesia. Fugiam os fracos e soçobravam os valentes perante o número crescente de opositores. O denominado “campeão” era merecedor da fama que o precedia, nunca virou a cara à luta, apenas sendo derrubado pela falta de apoio dos seus camaradas e pela desproporção numérica que isso originara. Mesmo caído por terra, o seu espirito indómito não se rendia e tentava teimosamente levantar-se, foi necessário a “Pássara” deitar-se sobre o seu corpo, para impedir que as agressões continuassem. Pela sua bravura, foram-lhe prestados os primeiros socorros, o que contribuiu para que não guardasse mágoa dos adversários, mas dos companheiros. Mais tarde, ouviram-no dizer diversas vezes:
-Naquele dia, não devia ter batido nos da Gralheira, mas nos da minha terra.
Na retirada aconteceram várias escaramuças, pois perante um adversário ferido e desnorteado não faltam valentões de ocasião como o “Malaio”, que ao chegar aos Carvalhos disse para o “Manquito”:
- Moço!... Dá-me cá esse pau, que eu quero bater!
O rapaz, como tinha dificuldade em deslocar-se sem a ajuda do bordão resistiu a dar-lhe o que ele pedia. Entretendo, ouviram um burburinho que se dirigia na sua direção e, de imediato, disse o valente “Cá Ramalha”:
- Fugimos!
Foram-se enfiar na loja de uma vaca até passar o perigo. Quando saíram do esconderijo ainda viram um dos fugitivos saltar uma vedação de arame farpado e ficar preso pelas calças. Enquanto o homem tentava libertar-se, apareceu o Gregório, que também não primava pela valentia, mas ao ver o oponente indefeso, afincou-lhe, à falsa fé, uma vigorosa paulada que o deixou inanimado.
O último incidente digno de registo ocorreu já à saída da povoação, quando nas fragas do Penedo da Saúde um dos da retaguarda disparou um revolver contra os perseguidores. O “Mistoso”, investido de cabo de ordens, não hesitou e desfechou um tiro de caçadeira na sua direção, sendo o alvo atingido por alguns bagos numa perna, mas que não o impediu de acompanhar a retirada.
Terminada a peleja, era tempo de tratar dos feridos. O “Crioilo ”apresentava as brechas já referidas, alguns arranhões e nódoas negras nos demais, mas o “Bezarra”, ainda de estadulho em punho, tinha a cabeça numa “roca”. Só a vontade estoica de resistir, aliada há dureza intrínseca do cárneo impediram que perecesse perante a violência de tantas cacetadas. Ainda me lembro do velho Isaías estar a relatar o sucedido e indicar na careca as ténues linhas das antigas feridas.
Felizmente, aquele combate deixou pouco mais que algumas cicatrizes, ficando a questão sanada sem sequelas futuras. Aos da gralheira foi reconhecido o direito legítimo de responder a uma provocação; aos de Alhões imputada a responsabilidade pela insensatez de, sem motivo de monta, terem lançado desafios em terrenos alheios.
 Como dizia o Marquês de Pombal, quando se falava na iminência dos espanhóis nos invadirem: “Eles que venham, porque, mesmo depois de morto, são precisos quatro para retirar um homem da sua casa”.
Vítor Silvestre

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