O bairrismo exacerbado, aliado à pobreza e suas associadas, sempres despoletaram pequenas guerrilhas entre os diversos povoados que ponteiam a paisagem de Montemuro. A maioria não passava de incidentes menores, que não ia além de orgulho ferido, mas também existiram casos mais graves, até de morte.
Os da Gralheira não eram dos mais afoutos nesse mester, embora haja relatos
de uma ou outra desavença, por norma, não era gente que provocasse
deliberadamente o confronto. Apenas há a salientar uma cena de agressão, com
laivos de covardia, ao Sr. Abílio de Bustelo, no rescaldo de uma cena de
pancadaria ocorrida na vinda da Feira do Fojo. Para além deste incidente, o
confronto com os de Alhões, no dia da padroeira, foi a maior contenda em que os
meus conterrâneos se viram envolvidos.
Na origem deste incidente esteve uma troca de palavras mais azedas
entre o Zé do Belchior e dois indivíduos daquela freguesia, nas antevésperas da
festa da Sra. da Graça. O caso foi de pouca monta, mas os fulanos despeitados
acirraram os comparsas e, no dia da celebração do orago, a Gralheira foi
invadida por quatro dezenas de pauliteiros, com intenções pouco amistosas.
Enquanto se celebrava a eucaristia, aquela trupe ruidosa dava arruadas ao povo,
numa total falta de respeito para com a celebração em curso. Mas, durante a
procissão, a presença do regedor e dos cabos de ordens, inibiu-os de cometer
qualquer desacato. No entanto as suas atitudes não passaram despercebidas, como
prova o comentário do “tiu Davide”,
durante o almoço, para os seus sobrinhos “Crioilo”
e “Pontes”:
- Hoje, nesta terra, vai haver uma grande “zargata”…
Ao que o avô dos rapazes, na sua ingenuidade, retorquiu:
-Isso está bem!...Ia haver “zargata”
no dia de festa!
Ao que o “Alicate” reafirmou pensativo:
- É como vos digo, ou então…não há homens na Gralheira…
A conversa ficou por ali. O arraial prosseguiu normalmente, pois os
arruaceiros, depois de terem feito a arruaça e saídos impunes, deram-se por
satisfeitos com a demostração de ousadia e retiraram-se para o Cantinho, onde o
“Vila Maior” tinha uma tasca
improvisada na loja das mulas. Aí bebiam e cantavam, mas como era desviado do
local das festividades, não incomodavam, nem eram incomodados. No entanto, quis
o destino que o dia não terminasse sem incidentes.
O “Tiu António Regedor”, para lá da meia-tarde, entrou na tasca do “Gabirú”;
um dos atrevidos, que lá tinha ido comprar cigarros, começou a insulta-lo e
a proferir ameaças. O regedor, por precaução, quando chegou ao arraial convocou
as suas ordenanças, ordenando-lhes que fossem buscar as armas. A ordem foi
sendo desvirtuada de boca em boca, até se transformar num rumor que dizia haver
barulho no Cantinho. Aos poucos, algumas pessoas foram-se aproximando do local
para averiguar o dito.
Um dos primeiros a chegar foi o “Tiu
Isaías”, homem destemido, apreciador de provas de força e rasgos de
valentia; outro foi o “Tiu Amadeu do
Maximiano”; Seguidos pelo “Crioilo”,
um rapaz já espigado, e o irmão “Pontes”
que pouco mais era que um adolescente e tentava demover o irmão de se meter no
potencial conflito. Ao chegarem ao local, um tal “Campeão” deu ordem de comando:
-Formai roda!
A falange dispôs-se num semicírculo com as costas protegidas pela casa
do “Lixandre” e a frente, de maus
eriçados, voltada para o largo.(Quem me contou a cena foi o “Pontes”, que tinha subido a um pátio e
podia ver com clareza o desenrolar da cena). A partir daí os acontecimentos
precipitaram-se, enquanto o diabo esfrega um olho, já o Isaías; que estava
armado de um estadulho curto e afiado, retirado de um carro de vacas; tinha
saltado para o meio das ostes inimigas. Quando entrou no âmago da formação,
todos os porretes lhe caíram em cima, mas as pauladas entrechocaram, evitando
que fosse atingido pela maioria e amortecendo parte do impacto das que lhe
bateram. No combate corpo a corpo, a proximidade torna pouco manejável uma arma
de maiores dimensões, enquanto o pequeno estadulho era usado como um gládio
para espichar o ventre aos inimigos.
Na tentativa de derrubarem aquele temerário adversário que irrompia
pelas suas fileiras insensível aos golpes, desferindo chuçadas certeiras;
aliada a uma parte que persegui o “Tiu Amadeu”
até ao fudo da rua, rematada por uma quelha, onde se entrincheirou; mais uns
quantos que encurralaram o “Crioilo”;
desviou-lhes atenção dos outros combatentes que foram chegando à refrega. Um
dos que entrou em cena foi o “Bombo”, cuja
ajuda foi providencial para safar o “Tiu Armando”
que, já com duas brechas na cabeça, defendia-se a custo dos ataques de que era
alvo. Vindo pela retaguarda, retesou o seu corpo rechonchudo, fincou as pernas
curtas e com a firmeza que os pequenos e papudos dedos lhe permitiam, acertou “à mão tenta” nos que o assediavam.
Quase em simultâneo apareceram os cabos de ordens de armas em punho, o que fez
debandar o que restava da formação inicial. Desorganizados e dispersos, eram
alvos fáceis da perseguição levada a cabo por toda a freguesia. Fugiam os
fracos e soçobravam os valentes perante o número crescente de opositores. O
denominado “campeão” era merecedor da
fama que o precedia, nunca virou a cara à luta, apenas sendo derrubado pela
falta de apoio dos seus camaradas e pela desproporção numérica que isso
originara. Mesmo caído por terra, o seu espirito indómito não se rendia e
tentava teimosamente levantar-se, foi necessário a “Pássara” deitar-se sobre o seu corpo, para impedir que as
agressões continuassem. Pela sua bravura, foram-lhe prestados os primeiros
socorros, o que contribuiu para que não guardasse mágoa dos adversários, mas
dos companheiros. Mais tarde, ouviram-no dizer diversas vezes:
-Naquele dia, não devia ter batido nos da Gralheira, mas nos da minha
terra.
Na retirada aconteceram várias escaramuças, pois perante um adversário
ferido e desnorteado não faltam valentões de ocasião como o “Malaio”, que ao chegar aos Carvalhos
disse para o “Manquito”:
- Moço!... Dá-me cá esse pau, que eu quero bater!
O rapaz, como tinha dificuldade em deslocar-se sem a ajuda do bordão
resistiu a dar-lhe o que ele pedia. Entretendo, ouviram um burburinho que se
dirigia na sua direção e, de imediato, disse o valente “Cá Ramalha”:
- Fugimos!
Foram-se enfiar na loja de uma vaca até passar o perigo. Quando saíram
do esconderijo ainda viram um dos fugitivos saltar uma vedação de arame farpado
e ficar preso pelas calças. Enquanto o homem tentava libertar-se, apareceu o
Gregório, que também não primava pela valentia, mas ao ver o oponente indefeso,
afincou-lhe, à falsa fé, uma vigorosa paulada que o deixou inanimado.
O último incidente digno de registo ocorreu já à saída da povoação,
quando nas fragas do Penedo da Saúde um dos da retaguarda disparou um revolver
contra os perseguidores. O “Mistoso”,
investido de cabo de ordens, não hesitou e desfechou um tiro de caçadeira na
sua direção, sendo o alvo atingido por alguns bagos numa perna, mas que não o
impediu de acompanhar a retirada.
Terminada a peleja, era tempo de tratar dos feridos. O “Crioilo ”apresentava as brechas já
referidas, alguns arranhões e nódoas negras nos demais, mas o “Bezarra”, ainda de estadulho em punho,
tinha a cabeça numa “roca”. Só a
vontade estoica de resistir, aliada há dureza intrínseca do cárneo impediram
que perecesse perante a violência de tantas cacetadas. Ainda me lembro do velho
Isaías estar a relatar o sucedido e indicar na careca as ténues linhas das
antigas feridas.
Felizmente, aquele combate deixou pouco mais que algumas cicatrizes,
ficando a questão sanada sem sequelas futuras. Aos da gralheira foi reconhecido
o direito legítimo de responder a uma provocação; aos de Alhões imputada a
responsabilidade pela insensatez de, sem motivo de monta, terem lançado desafios
em terrenos alheios.
Como dizia o Marquês de Pombal,
quando se falava na iminência dos espanhóis nos invadirem: “Eles que venham, porque, mesmo depois de morto, são precisos quatro
para retirar um homem da sua casa”.
Vítor Silvestre
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