O Papão tem assombrado as mentes infantis ao longo do tempo, é transversal a todas as culturas e perene em todas as épocas. Sob diferentes formas e em diversos contextos, encarna as mais fantasiosas e míticas personagens. Todas estas figuras sobrenaturais são de uso recorrente quando queremos impor a adulta vontade, sem ter que recorrer a métodos menos diplomáticos. No entanto, apesar da eficácia comprovada, esta alegoria tem as suas limitações, mesmo as mentes mais susceptíveis apenas podem vislumbrar o objecto dos seus temores através da imaginação. O Papão não tem rosto, é um ser abstracto, esbatido numa amálgama de lendas e estórias ancestrais.
Mas, na Gralheira, o Papão ganhava forma, materializava-se na figura bizarra e grotesca do “Mudo da Panchorra”. Com uma fealdade digna de Vulcano, andrajosamente remendado, conspurcado por uma sujidade congénita, infligia um medo indizível mesmo aos petizes mais afoitos. Guardo cada traço da sua fisionomia, sentado no último degrau das escadas da minha avó materna, enquanto mastigava pedaços de toucinho por entre duas fileiras irregulares de ameias e merlões amarelecidos pelo tempo. Da soleira, pela porta entreaberta, observava a forma avantajada, untuosa e disforme do seu corpo, o cabelo besuntado, os olhos de gárgula de um branco inexpressivo, absortos em pensamentos insondáveis que adensavam o misto de curiosidade e de receio que sentia. Para além do aspeto invulgar, estava ao seu lado o objeto que completava o quadro intimidatório. O saco, gasto e sórdido, onde guardava as parcas esmolas que a miséria lhe ia ofertando. Era nessa alcofa que diziam esconder os meninos que apanhava, levando-os para um lugar longínquo, onde os vendia a ciganos itinerantes, desterrando-os para sempre do seu pequeno mundo.
O “Mudo da Panchorra”, esse ser hediondo que atemorizava os mais temerários, nunca fez jus ao anátema que lhe imputavam. Era um pobre coitado que vivia esmolando a pobreza alheia, imerso na mentalidade de um país insensível às diferenças. Proscrito, vivia à margem da sociedade que, instada pela misericórdia divina, o sustentava, mas não partilhava os valores que permitem uma integração plena e condigna na comunidade.
Ainda hoje, apesar da consciencialização crescente, estamos aquém de atingir a plenitude nesta matéria. As pessoas com limitações esbarram diariamente com barreiras físicas e morais, reflexos de uma política imatura incapaz de promover a integração e a auto estima. Não basta suprir as necessidades básicas, é necessário dar à vida uma razão e um sentido, minimizar as deficiências e potenciar as suas capacidades.
Embora haja caminho a percorrer, se olharmos para trás, estamos muito distantes da realidade em que viveu o”Mudo da Panchorra”. Hoje: Não mendigaria de terra em terra, estaria mais limpo e asseado, não sentiria a solidão da indiferença, viveria de forma mais digna e não seria cognominado como o Papão da minha infância.
Vítor Silvestre
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