O Sr. abade, como era vulgo denominar-se o pároco, foi sempre uma figura fulcral na estrutura social das comunidades. Os paroquianos mantiveram sempre uma relação de respeito e de despeito para com o sacerdote, pois era comum ouvirem-se comentários como: “Isso é vida de padre” e “O padre ganha-o a cantar”, reflexos da diferença existente entre estas duas formas de vida. A culpa era de ambas as partes, pois os que ganhavam o pão com o suor do rosto invejavam aparência alva e bem nutrida do vigário, sinónimo de pouco trabalho e boa mesa. Os padres, por sua vez, teimavam em impor a sua vontade sem se preocuparem com a opinião e a conveniência dos demais. Mas, como é sabido, aturar o povo é um exercício complicado. Dirimir vontades e conciliar interesses nem sempre é possível, por vezes, os padres seguiram à letra as escrituras e, fosse por crença profunda ou porque a vida mansa que levavam lhes tinha amolecido a coragem, tiveram de “dar a outra face”.
Mas ”dos fracos não reza a História”, vamos desprezar a normalidade e dissertar sobre duas excepções que confirmam a regra: O padre Zé de Bustelo e o Padre Abel de Fornelos. Como se pode verificar não eram naturais da Gralheira, mas ambos foram seus párocos e deixaram uma marca indelével que ainda hoje perdura na memória das suas gentes. Teriam, seguramente, múltiplos defeitos, mas não eram temerosos. As suas acções denotam uma temeridade digna dos cavaleiros Templários e de toda uma estirpe de clérigos guerreiros que tanto se paramentavam com as vestes eclesiásticas e empunhavam a cruz, como envergavam armadura e pegavam em armas para rechaçar as hordas maometanas.
O padre de Bustelo ficou assim conhecido por ser natural dessa freguesia, que dista poucos km da Gralheira. Segundo a descrição que me foi feita pelo “Peixe”, que fora seu sacristão: Era de elevada estatura, seco de carnes que indiciavam músculos enérgicos e rijos tendões, nariz aquilino encimado por fartas e negras sobrancelhas, contrastantes com a alvura calva da cabeça. Detentor de uma fé que raiava o fundamentalismo, era devoto por vocação, celibatário convicto e puritano exacerbado. O único pecado que lhe foi imputado pelo “Diabo do Bernardino”, homem que exorcizou, foi ser “onzaneiro”, que, a fazer fé no diabo e no “Peixe”, tinha fundamento. Cuidava pessoalmente de receber a “congrua”, indo de porta em porta cobrar esse tributo anual de duzentos alqueires, distribuídos quantitativamente pelos habitantes da freguesia. Se alguém não cumprisse com essa imposição era-lhe suspensa a prestação de serviços religiosos.
Como supra mencionei, o padre Zé de Bustelo executou um exorcismo ao Bernardino. Foi, para os presentes, um acto de heroísmo sem precedentes. Assistirem ao braço de ferro entre o padre e o Diabo, tendo o último de ceder e, com um grito horripilante, abandonar o corpo do possuído, aumentou admiração do rebanho pelo seu pastor. Tanto mais, quando aceitou digladiar-se, num combate épico entre o bem e o mal, à meia-noite, nos matos da Tejosa, em data combinada. O clérigo compareceu, mas, segundo parece, o Diabo que sabe muito não por ser o que é, mas pela idade que tem, achou por bem confrontar-se com almas menos determinadas e mais fáceis de tentar.
Defensor acérrimo das suas convicções, não congregava uma simpatia universal e granjeava alguns descontentes. Um tal ”Carreira” de Alhões que tinha por hábito organizar animados bailes em sua casa, sentindo-se lesado pela constante intromissão em assuntos que ele achava serem do foro pessoal. Combinou, com dois comparsas, emboscar o abade numa das suas deslocações para Bustelo. A cilada foi montada e aquando da passagem do emboscado saltaram-lhe ao caminho. Pensaram que, por ser padre e usar “saia”, tivesse perdido a faculdade de ser homem e perante a sua aparição fugisse com o “rabo entre as pernas”. Mas o negócio saiu-lhes mais complicado do que tinham previsto. O padre, desembaraçando-se do varino que vestia, brandiu o cajado e arremeteu contra o triunvirato atónico perante tal rasgo de ousadia. Apenas bastaram alguns golpes para sentirem que, embora tivessem a vantagem numérica, eram menos destros no manejo do pau e, antes que sofressem danos indesejados, voltaram as costas à liça e foram para casa digerir o orgulho ferido.
Esta era a têmpera do Padre Zé de Bustelo. Homem destemido e de crença inabalável no evangelho, não retrocedia perante forças humanas ou demoníacas, cobrador do que lhe era devido e proficiente ministro da Igreja.
O padre Abel, natural de Fornelos, era dotado de uma fisionomia e de uma vocação que se adequavam mais ao uso da enxada que do cabeção. O próprio me confessou que a agricultura era a actividade pela qual nutria grande paixão e sentia-se realizado ao ver um campo de milho bem cuidado. Os actos corroboravam as palavras, pois nunca arrendou ou cedeu em regime de parceria o passal de que era usufrutuário. Agricultava-o, apenas com ajuda de um criado, nos intervalos das suas funções paroquiais. Quem o procura-se mais facilmente o encontrava agarrado à charrua que envergando o sobrepeliz. O seu destacamento, em início de carreira, para Gralheira facultou o casamento da minha tia Maria “Sapa” com o seu irmão Jerónimo. Como tal, foi sempre figura próxima da minha família, conheci-o pessoalmente e privei com ele algumas vezes.
Conjugando o meu conhecimento com o de terceiros posso inferir que era homem intrépido e temperamental, “ardia em pouca lenha”, e mais depressa resolvia as coisa por actos que por palavras. Aquando da zaragata no dia da celebração do orago da Gralheira, provocada por um grupo de Alhões, que embora o fizesse de forma subtil, não se coibiu de entrar na refrega e com denodo auxiliar o seu rebanho a reprimir a petulância daqueles arruaceiros.
Mas, o episódio mais afamado da sua longa carreira eclesiástica não foi passado na nas serranias agrestes de Montemuro, mas nas encostas ribeirinhas do Douro. Depois de fazer o tirocínio regressou à sua procedência, onde, para além da sua raiz telúrica, as perspectivas de carreira eram mais promissoras que na pobre e isolada Gralheira.
Segundo parece, a rapaziada de Fornelos, nalguns festejos profanos, tinha por costume tocar o sino. O padre, como não concordava com esta prática, advertiu-os para que a não executassem. Como é sabido, pois já fomos rapazes, este impedimento teve o efeito contrário ao desejado. Nessa noite, estava o padre em casa, que era contígua ao adro, quando ouviu soar vigorosas badaladas provenientes da torre da igreja. Surpreso com tal ousadia, saiu para descompor os atrevidos. Mas, os prevaricadores não se intimidaram com a reprimenda e, como conheciam o carácter exaltado do sacerdote, já estavam “a pau”, quando confrontados, investiram proferindo ameaças. O pároco retrocedeu para a residência, pois estava só e desarmado, para deitar mão ao seu “marmeleiro” e assim enfrentar os opositores. Quando entrou, pegou no que procurava e saiu sem responder às perguntas do seu irmão Jerónimo, que ao vê-lo tão transtornado apanhou também um cacete e partiu no seu encalço.
Quando chegaram ao adro depararam-se com uma trupe eufórica, entretanto engrossada com a chegada de mais sequazes, determinada a quebrar a prepotência e o autoritarismo do padre. Perante tal desvantagem, os dois irmãos, protegendo as costas um do outro, volteavam os varapaus e, com serenidade espartana, aguardaram o assalto iminente. O vórtice conjunto dos seus movimentos mantinha os sitiantes a uma distância relativa e impedia que soçobrassem a um ataque massivo. Quando, algum mais arrojado entrava no seu raio de acção, era colhido por golpes indefensáveis que o deixavam combalido ou inoperante. Com o decorrer do recontro, a vontade férrea dos arruaceiros se quebranta e o ânimo inicial já fenece perante a visão traumática dos companheiros feridos. As hostes dizimadas vão-se retirando, deixando sós os dois beligerantes que, ao verem a debandada geral, se apoiam nos seus bordões e, ofegantes, recobram as forças dispendidas na peleja. Foi um combate rijo e teso, em que irmãos provaram ser da mesma cepa, mas o Jerónimo sempre relativizou o seu desempenho afirmando:
- Naqueles em que eu acertava, ficavam ”tente e não cai”… Mas os que tocavam ao meu Abel, já se não levantavam.
Embora o meu tio fosse um homem imponente e detentor de uma força hercúlea, a natureza dotara o padre de um temperamento mais agressivo. As suas pauladas eram vibradas com uma força anímica suplementar, advinda da índole guerreira do seu espírito, e, em perfeita simbiose, o corpo e a mente conseguem prodígios insondáveis.
Os derrotados, não se conformando com tal desaire, resolveram “dar parte” para mitigarem a desonra sofrida. Segundo parece, o juiz da comarca era agnóstico e veiculava sentimentos ímpios para com a Igreja e o clero. Assim sendo, os queixosos depositavam grandes esperanças na parcialidade da jurisprudência que iria ao encontro das suas pretensões. Mas, como todos sabemos, naquele tempo sabia-se quem mandava, quem tinha de obedecer e da promiscuidade entre a Igreja e o estado. Na véspera do julgamento, o magistrado recebeu um emissário que lhe avivou a memória e ditou o desfecho da sentença. Por isso, ao contrário do esperado, o meritíssimo proferiu um discurso moralista, enunciando as funções do sino, dizendo:
- O sino toca-se para cerimónias religiosas: Casamentos, missas, baptizados, funerais… Não para actos profanos que desrespeitam a moral e ordem instituída.
Muitos mais episódios havia para contar sobre o Sr. Padre Abel. Alguns até fizeram as primeiras páginas de jornais diários, titulando-o de ”padre pistoleiro”, mas esses já foram relatados e escritos.
Em suma, este abade não era daqueles que se intimidavam com a faca e o alguidar da matança, postos, durante a noite, na soleira da sua porta.
Vítor Silvestre
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