quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Dançava, dançava, mas já estou careca!



“Dançava, dançava, mas já estou careca!”

Ao recorda o autor desta frase, tolhido pela artrite reumática e artroses múltiplas, com dificuldade em mover o corpo maciço que fazia estremecer calçadas; quando de peito feito, afeito a erguer paredes megalíticas, arrastava uns tamancos bem providos de pau e ferrados a guilhos; é difícil imaginar um dançarino lesto e traquejado. No entanto, dizem que o velho Messias era um assíduo participante nos bailes da Povoa, onde exibia os dotes dançantes e galanteava as moças casadoiras. Foram os devaneios de galã que lhe valeram uma ”galiqueira”, pregada pela “Maria Estupor”, que o ia enviando para malvas e alcunhou de “Bóia”, segundo as más-línguas, por lhe terem enxertado um pedaço de intestino de bovino para debelar a infecção gonorreica.
Os bailes eram uma das poucas distracções que estavam ao alcance da mocidade, constrita a um universo provinciano que poucas oportunidades proporcionavam. Por isso, para os lados da Paiva, estes eventos eram frequentes e muito concorridos pela rapaziada de uma légua em redor. Os da Gralheira, devido a laços familiares, deslocavam-se amiúde a Faifa. Atravessavam a serra durante a noite iluminados por lumieiras, feixes de palha atados em archote, para se guiarem através da escuridão e contornarem os atoleiros de Penacova.
Nem todos os progenitores estavam de acordo com estas incursões dançantes pela calada da noite. Mas, os desejos da mocidade são difíceis de controlar e, certa ocasião, numa tentativa desesperada de impedir o seu Flandório de seguir na rusga, o “Cego Lagarto”, das Fragas da Ponte, lançou-lhe um derradeiro apelo:
- Volta p´ra traz Flandório!... O teu irmão Ângelo nunca foi assim e casou-se duas vezes!
Mas, nem o fraterno bis matrimonial o impediu de galgar as Barrocas, fazendo orelhas moucas à alusão do progenitor.
Os bailes da Paiva eram organizados segundo a pragmática instituída, devidamente acompanhados por pequenas orquestras de cordas, tangidas por músicos de ouvido afinado. Outros, de trazer por casa, rodados a toque de realejo, eram improvisados em qualquer eira ou terreiro para escapar à vigilância dos pais e mirones delatores. Também existiam alguns à porta fechada e luz apagada, só para convidados, onde os pares se apresentavam “descalços até ao pescoço”.
Dançar, como dizia o padre Zé de Bustelo, não era pecado, mas potenciava as hipóteses de o cometer. Numa sociedade de aparência púdica e recatada, o baile era das poucas ocasiões em que o contacto físico entre sexos era aceite em público. Assim sendo, o acto de dançar era contido por padres e pregadores para evitar que a lascívia se apossa-se daquelas almas e as levasse a ceder às tentações da luxúria.
Com a mudança de mentalidades, os bailes, livres da censura, democratizaram-se, passaram a integrar-se nas festas da padroeira e noutros eventos sociais, tanto de caris mundano como religioso.
Por todo Portugal, durante o verão, realizam-se inúmeros arraiais, onde a música popular, inaudível numa interiorização solitária, adequa-se a uma mole de gente que, alcoolicamente animada, exterioriza as suas introversões ao ritmo “pimba” de quadras e refrões de duplo sentido.
Nestas ocasiões, ninguém resiste a dar um pezinho de dança. Mesmo aqueles que, tal como eu, também já estão carecas.
Vitor Silvestre

3 comentários:

  1. Sr Nelo,
    Em vez de se preocupar em exibir o seu extenso vocabulário com palavras e frases caras, cuja maioria de nós nao tem sequer instrução para entender.
    Deveria sim, ficar contente por existirem "ruídos e azáfama sazonal de forasteiros" pois eles tem contribuído mais pela economia da nossa aldeia e para a tornar mais conhecida do que aqueles que se dizem da nossa gente...mas à muito que se foram para a cidade. Se se sente um estranho na nossa aldeia, é porque assim o fez para assim o ser.

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  2. Uma sugestão: eu entendo que queira exibir o seu vasto vocabulário, através da utilização de palavras caras nas suas crônicas. Nada contra.
    Porém, isso obriga a nossa gente, de natureza humilde, a recorrer constantemente a dicionários para entender o que escreve. E, cá entre nós, torna a leitura pesada e aborrecida.

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  3. “descalços até ao pescoço” ... isso sim, quem não gostaria de participar num baile desses!!!! Será que ainda se realizam?

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