domingo, 27 de julho de 2014

“O Bairro Chinês”



Não levem à letra o título desta crónica, pois nada tem a ver com orientais de olhos rasgados, sentados nos salões dos seus pagodes a tomarem chá, mas tem algo de análogo com as “chinatown” que este povo milenar espalhou por algumas cidades do mundo. À semelhança destas, também o denominado “bairro chinês”, implementado na Quinta Marques de Abrantes, em Marvila, era um enclave étnico distinto do meio que o envolvia.
 Quando o êxodo rural explodiu nos anos sessenta do século passado, Lisboa e arredores não tinham capacidade para acolher condignamente semelhante fluxo migratório. Nessa conjuntura, o espirito perspicaz do “Bombo” aproveitou um terreno devoluto para iniciar uma urbanização clandestina, com vista a alojar familiares, parentes, vizinhos e conterrâneos que diariamente rumavam a sul em busca de melhor sorte. Desta forma, da noite para o dia, surgiu um gueto maioritariamente beirão, fechado sobre si mesmo, criando uma réplica cultural e social das aldeias de onde provinham.  
“O Urbanista Sete Latas”- assim denominado por ser o número de peças que dizia precisar para erguer uma barraca- loteou, implementou e supervisionou as primeiras construções, cuja bitola era o rafado metro e sessenta do seu corpo roliço. Assim que a rotunda cabeça passava pela padieira, dizia satisfeito:
- Basta!... Já não há homem que não passe.
O resultado foi uma amálgama caótica de casebres de chão térreo, edificados com tábuas de caixote, forrados a cartão no interior e chapeados a ferrugem para impermeabilizar paredes e telhados. As condições eram precárias, promíscuas, sem água ou saneamento, gelavam de inverno e torravam no verão, mas a abundância de trabalho na capital permitia-lhes ganhar um sustento que não tinham na sua terra, fazendo-os suportar estoicamente as adversidades na construção de um futuro melhor.
Os recém-chegados eram instalados como podiam, havendo sempre lugar para mais um, nem que fosse, como no caso do “Fira”, num pombal reconvertido em quarto, coabitado por ratas e percevejos, onde só cabia o catre, que era montado de salto, mal se transpunha a porta de abertura para fora, por não existir espaço interior onde por um pé.
O que pretendia ser um alojamento temporário converteu-se em permanente. Embora a câmara tenha iniciado a construção de bairros sociais para realojar esta gente, as barracas persistiram. Melhoraram-nas ao nível do conforto e salubridade, transacionando-as com título moral de propriedade e direito sucessório, sem os inconvenientes do I.M.T, imposto de selo ou taxa notarial. Apenas com a implementação do Plano de Irradicação de Barracas, no final do século passado, foi possível eliminar esta verruga urbanística com mais de quarenta anos e requalificar o espaço com construções convencionais. Dos moradores e barracas originais já pouco restava, mas a génese do bairro permanecia nas suas associações e num viver comunitário à revelia do tempo, que não encontraram nas novas moradias.
O fundador do empreendimento há muito tinha sucumbido aos excessos gastronómicos que o tornaram híper diabético, agravados pelo desprezo que com que tratava a medicina. Com a doença já em estado avançado, quando o aconselhavam a ir ao médico, dizia convicto:
- O meu médico é o vinho e a aguardente.
Na fase terminal, bebia um regador de água por noite, até que a máquina colapsou, como era previsível.
A este ignoto agente imobiliário deixo uma menção honrosa, era merecedor de uma referência na nova urbanização que se ergueu da demolição do seu improvisado projeto. Ele personifica o desenrasque tipicamente português, esta capacidade invulgar de ultrapassar obstáculos que para a maioria dos europeus seriam intransponíveis sem um planeamento metodicamente organizado. Só que esta faculdade, que tem as suas virtudes, quando recorrente, converte-se num endógeno defeito contraproducente que nos condiciona a assertividade e restringe a eficácia, convertendo-nos numa massa laboral esforçada, mas pouco produtiva para gasto interno. Quando no estrangeiro, somos reconhecidos como operários de muita qualidade, apreciados, pontualmente, pela nossa capacidade de improviso.
O problema não está nos que fazem, mas naqueles que mandam fazer. E dos que nos governam, infelizmente, temos por cá muitos “Sete Latas” cujo legado é bem pior que um “Bairro Chinês”.
Vitor Silvestre

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