Num país tradicionalmente católico, a Igreja, enquanto instituição,
desempenhou um papel primordial na condução do nosso percurso histórico. Desde
a reconquista, ao desastre da Alcácer-Quibir ou impressa nas páginas negras do
índex, foi sempre a mão obscura do poder por detrás do trono. Ainda hoje, a
laicismo crescente da sociedade não impede que os portugueses se assumem,
maioritariamente, como católicos, embora cada vez menos praticantes. A prática
religiosa, em particular nas pequenas localidades, desempenha um papel social
que vai muito além espiritualidade do culto. É um factor estruturante,
agregador de valores comuns e tradições seculares que as consolidam enquanto
comunidades. A reunião pós- eucarística, no adro, é tão importante como a
liturgia dominical. Aí se confraterniza com conterrâneos e vizinhos; trocam-se
cumprimentos e novidades; discute-se futebol e outras desnecessidades,
necessárias à socialização. No passado, também se arrendava o monte à
transumância; leiloavam-se propriedades e, no domingo gordo, o fumeiro ofertado
a Santo António; assim como se combinada o preço da carrada de lenha com os
vizinhos de Vale de Papas. Mas, mais importante que a espiritualidade da
instituição é o edifício que lhe dá forma. A Igreja materializada na pedra
cinzelada das cornijas e torres sineiras, onde altaneiros sinos tanto chamam os
fiéis às obrigações da alma, como tocam a rebate para acudir a um incêndio ou
reunir o gado na vigia. A arte de repenicar os sinos não está ao alcance de
todos, apenas os mais coordenados e de bom ouvido dão bons executantes. Dizem
que o cego Amílcar era o melhor neste mester. A ausência da visão apurou-lhe os
outros sentidos, dotando-o de uma sensibilidade invulgar para tocar a melodia
ritmada e diatónica dos baptizados, assim como destrinçar os ingredientes
impressos nos odores do caldo do jantar, permitindo-lhe afirmar indignado:
Nos primórdios da fundação da Gralheira, provavelmente, terá sido
erguida uma pequena ermida que foi crescendo em paralelo com o lugar. A igreja
velha, de que há memória, remonta até 1950, ano em que foram terminadas as obras
de ampliação. Elevou-se o pé direito e aumentaram o comprimento, anexando-lhe
uma torre contígua que substituiria o antigo campanário. Lamento, que este
histórico monumento não tivesse sido preservado, pois tinha muito mais valor
arquitectónico que este novo estilo incaracterístico, embora bem talhado, que
pretendia rivalizar, em tese, com a abobadada cúpula românica da vizinha
Panchorra.
Esta obra foi possível devido ao empenho do “Sr. Cailo”, emigrante de sucesso no Brasil, que supriu os parcos
recursos angariados na povoação com a doação de trinta contos. Munido desta
quantia pôde o presidente da junta, o “Tiu
Artur”, contratar os serviços de três pedreiros reputados: Mestre Espada,
que arquitectou e desenhou, numa parede caiada, a planta da construção;
Gaudêncio, artífice experimentado e Maurício, jovem destemido que causava
espanto pela agilidade e o à-vontade com que se movia nas alturas.
No povo recaiu a penosa tarefa de transportar as pedras necessárias
para a construção do projeto. Estas eram cortadas nas fragas do Fojo e,
toscamente aparelhadas, levadas em carros de vacas para a obra. Para o efeito,
foram construídos dois robustos carros em sólida madeira de carvalho, maiores
que o padrão habitual e com a inclusão de um travão manual para facilitar o
esforço dos animais nas calçadas mais íngremes. Embora houvesse muitas vacas,
era com demasiada periodicidade que os lavradores se viam intimados a cumprir a
escala do transporte da pedra. Quando viam o presidente bater-lhes à porta,
murmuravam entre dentes:
- Lá vem o “Leão de Roças” …
Mas, como era uma autoridade daquele tempo, lá tinham que comparecer à
chamada. Apenas o “Tiu Manelzinho”,
farto de tanta carretada, e como sabia, pelo desenho do Espada, que a torre
terminava num pináculo semelhante à corucha de uma meda, achou que já tinha
altura suficiente, apesar de pouco passar do arco que dá passagem pelo adro, e
disse resoluto:
- ”Incruche”!...”Incruche!”
Mas só “incruchou” catorze
metro acima do solo, rematada por uma esfera bem lavrada, tornando-a em obra
acabada que valeu os três anos de trabalhos compelidos.
Quanto à distribuição dos fiéis esta obedecia a um preceito baseado no
sexo dos indivíduos. Os homens ocupavam o coro e a parte junto ao altar-mor,
enquanto as mulheres ficavam o espaço compreendido entre a porta lateral e a
entrada principal. Como as senhoras não respeitavam religiosamente este acordo
tácito, resolveram colocar uma grade para delimitar as duas zonas. Grade essa
que foi protagonista de um episódio caricato, quando o “Encravelhado”, ainda criança, meteu a cabeça entre as barras de
madeira e criou o dilema de serrarem a grade ou cortarem-lhe a respectiva. Por
sorte, esta saiu e ainda hoje a conserva entre os ombros.
Mais tarde, a separação sexista foi abolida e foram colocados bancos
que substituíram as cadeiras particulares, democratizando o conforto e
permitindo aos homens do coro, cansados das vessadas, assistirem ao terço
dormindo a sono solto, encobertos pela muralha de rapazes que ficavam de pé
encostados ao varandim, para apreciarem as raparigas e fazerem algumas picardias. Lembro-me, num domingo de ramos, estarem a
assistir à celebração da missa quatro antropólogas que faziam uma investigação
de mestrado e que foram constantemente bombardeadas com pedaços de madeira de loureiro.
Se o “Escudela” fosse vivo seria mais
difícil, pois enquanto rezava ia distribuindo “mosquetes” e cotoveladas aos que não estavam com o devido respeito
na casa Deus. Era devoto fervoroso que rezava algumas ladainhas muito à sua
maneira, pois como tinha dificuldade em pronunciar o verbo dar, em vez de
repetir, como os demais – seja para vós- dizia por conta própria:
-Seja para nós!
Fazia-o com tal veemência que, certa ocasião, cuspiu a dentadura
postiça. Ao vê-la cair junto dos pés das mulheres que estavam por baixo, gritou
alarmado:
- Cuidado mulheres, que me pisais a “dantuça”!
Mas esta foi-lhe entregue sã e salva e de imediato recolocada no
lugar.
A última grande intervenção foi efectuada já neste século,
restaurou-se o telhado e a bela talha dourada, muito maltratada por
intervenções anteriores. Desta vez, foram chamados mestres douradores que lhe
devolveram o esplendor original.
Todas as comunidades sentem orgulho na sua Igreja e os gralheirenses
não são exceção. Mesmo alguns incréus nos dogmas das escrituras se coíbem de
assistir, pontualmente, à missa de domingo e entoar cânticos com um prazer
divinamente humano. Porque a ideia de Deus que existe dentro de cada um de nós,
ultrapassa a personificação cristã que o criou à nossa imagem e semelhança.
Os templos, de todas as religiões, perduram e perdurarão muito para
além dos seus construtores e do culto que lhes deu forma. Não é por acaso, que
são:
“Velhos como as igrejas” !
Vitor Silvestre
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