quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O “Bamburra”



O Zé Maria, que eu conheci, era adornado por uma proeminência abdominal que fazia jus ao cognome adquirido. Alto, entroncado e barrigudo, em jejum, pesava oito arrobas bem medidas, apresentando poucas parecenças com os da época em que foi alcunhado. Assim sendo, não se descortinam os fundamentos de tal desconformidade. Talvez, tivesse outro significado, muito diferente da conotação posteriormente estabelecida, em que a parte passou a denominar o todo. A estatura e o torso esbatiam-se numa magra fisionomia, indisfarçável do racionamento alimentar a que era sujeito. A única característica da sua juventude, perdurante no tempo, foi a enorme “toleima“ com que fora abençoado há nascença.
 Apesar de esfaimado, era dotado de uma força e de uma genica que, consoante a balda, o tornavam um trabalhador inconstante, mas reputado. A sua fama de segador ficou imortalizada no Mezio, não só pelo trabalho realizado, mas por ter escouçado um pipo de vinho que o patrão pusera à sua disposição. Levando o homem a comentar com os demais:
-Ele para segar é bom, mas a beber, é como um “corgo”
Quando chegava à seara, todos se afastavam para de lhe dar eito, dizendo alvoraçados:
-Aí vem o “Corgo”!... Deem-lhe espaço!… Deixem segar o “Corgo”!...
Pescava trutas à mão, durante as cheias invernais. Desnudado, sem recear as águas gélidas do ribeiro, de olho fiteiro e “gafanho” ligeiro, pedia meças a uma lontra. Essa destreza, também era usada para surripiar, em festas e feiras, as bancas das doceiras, acrescentando-lhe as lestas pernas de cabrito-montês que, de calças pela canela e pés descalços, escapavam ao próprio Demo.
Destrambelhado de todo, julgavam estar possuído por algum espirito maligno, levando a sua mãe, após ter derreado um porco num acesso de fúria, a deitar-lhe água benta no caldo, para acalmar aquele génio endemoninhado. Mas, se o suspeitavam, mais crentes ficaram na suspeita, quando recusou o jantar, dizendo em altos brados:
-Este caldo está benzido!...
Chegaram a envia-lo para um convento, em Braga, mas quando a acompanhante, que viajara de comboio, regressou a casa, ele, que retornou a pé e a pedir, foi quem abriu a porta. Para justificar a curta estada, debitava um chorrilho de mentiras, matéria em que era pródigo:
- Aqueles filhos da púcara dos frades, para fazermos penitência, obrigavam-nos a estar com os dentes ferrados numa mesa; descascar batatas com o cabo da faca; varrer a casa com o toco da vassoura…e outras que não lembravam ao diabo.
Ficou pela Gralheira, até se casar com a “Cabra “da Panchorra e ir residir naquela freguesia. Deixou para trás um historial que atestava, sem margem para dúvidas, os dois cartões de maluco com que, segundo dizia, fora agraciado pelos principais hospícios da capital. Se os tinha?... Podem crer, eram merecidos, pois alguém que se desloca de Lisboa à Panchorra para arrombar a casa onde tinha morado, por estar convertida num chiqueiro de porcos, e tê-lo feito, é digno dos títulos que dizia possuir.
Morava no “Bairro Chinês”, sendo vulgar encontra-lo nas imediações a debitar larachas e apregoar fanfarronices, em animados espetáculos de rua. Quando encontrava algum conterrâneo, ou conhecido, tinha sempre uma nova estória mais rocambolesca e hilariante que a anterior. Como ter untado o tampo de uma “arretrete”, que os vizinhos usavam abusivamente, com uma mistura de malagueta e piripiri e ter de lá saído uma trintona de saia levantada, em direção ao chafariz, com o rabo numa “brasa”.
Um Domingo, estava o “Manquito” no mercado do “Bairro Chinês”, com a sua tenda de roupas em segunda mão, quando aparece o “Bamburra” com a prosápia habitual e um asseio invulgar, mostrando-lhe um punhado de balas e dizendo convicto:
Ó Manel, “os filhos das putas” da Gralheira e da Panchorra faziam pouco de mim, mas eu agora até os fornico…
O “Manco”, trocista profissional, depois de gozar com a cena, por notar que as munições eram de vários calibres, perguntou-lhe:
 - Onde vais tão aprumado?
-Vou almoçar a casa do meu filho ao Barreiro, só estou à espera da minha Maria.
Não acabava de proferir as palavas, avistou-a junto à passagem de nível, começando a chama-la:
-Ó Maria!...Ó Maria!...
Como não dava pelo nome, perante a estupefação geral, emitiu um estridente berro:
- Mééééé!!!...
De imediato, a Maria rodou a cabeça na direção do som e, ao ver o marido e o “Manquito” a rirem de vontade, teve este desabafo:
-Os da Gralheira são todos malucos da mesma laia.
Era o animador de serviço, nas “Excursões Alberto”, contribuindo para amenizar as longas horas do caminho. Usando o sistema de som do autocarro, de micro na mão, dava aso à mente “atoleimada”, numa ocasião em que a mulher estava adoentada, dizendo:
-A “Cabra” vai doente… eu sou o homem da “Cabra”... Sou o “Cabrão”!  
 Numa dessas viagens de regresso a Lisboa, o Zé Maria foi confrontado com o destino ao atravessar a nacional nº1, na Venda das Raparigas. Numa época em que uma deslocação à província era morosa e rara, o regresso era sempre saudoso e mitigado com uma dose suplementar de bebida. O Bamburra, ao cruzar a via, no torpor dos sentidos, calculou mal as distâncias e foi colhido por um automóvel a alta velocidade. A lonjura a que foi projetado e os estragos causados na viatura não deixavam dúvidas quanto à violência do embate. Teve morte imediata, causada pelos múltiplos traumatismos que sofrera, ficando o seu volumoso corpo parcialmente desfeito. Acorreram populares e amigos, mas nada puderam fazer, além de comunicar o óbito à viúva que se encontrava no autocarro, sem se aperceber do sucedido. Quando o arauto lhe deu a notícia, ao invés da histeria orquestrada em lágrimas, a viúva reagiu com um pragmatismo pouco habitual entre os pobres de espirito:
- Se morreu enterra-se…
Enterrou-se o corpo, mas não a memória. O “Bamburra” será eternamente recordado, quanto mais não seja, pelos dois cartões de maluco.
Era maluco ao quadrado…
Vitor Silvestre.

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