domingo, 16 de outubro de 2011

Os “Barbas Longas”de Feirão


 A forma como os “feirões”eram apelidados nada tinha a ver com a sua fisionomia. Não seriam imberbes, mas, certamente, as suas faces esquálidas não ostentavam barbaças que rivalizassem com as representadas nas xilogravuras de Afonso de Albuquerque ou D. João de Castro. O termo, não sei porquê, era depreciativo e conotava-os como gente de “olho vivo e pé ligeiro”. É que a necessidade aguça o engenho. Quando se tem pouco mais que a água da fonte e ferrar os dentes em cascas de carvalho não sacia as agruras da fome, até um cristão se desenvencilha como pode. De maneira geral, tentavam equilibrar a sua economia com expedientes mais ou menos ilícitos. Mas, se convergiam no objetivo, divergiam no método.
 O José Augusto ia furtando uma carteira, roubando um cordeiro, forçava a entrada numa residência, mas sem nunca recorrer à ameaça verbal ou violência física, era ladrão e cavalheiro. Representava, como direi… o papel de repartidor público que partilhava os proventos obtidos em animadas súcias. Foragido hábil e perspicaz, mas quando confrontado pelas autoridades confessava crimes e cúmplices e, se a fuga não fosse possível, entregava-se sem resistir à detenção. Outros eram de outra índole, não se coibiam de intersetar os incautos viandantes daquelas serranias, intimidavam e agrediam, espoliando-os dos seus pertences. Mas, algumas vezes, falharam os seus intentos, pois nem todos se amedrontavam ou andavam desprevenidos, tornando-se alvos difíceis de apanhar.
O Cândido, natural de Mangualde, casou na Gralheira e aí se estabeleceu no negócio de fazendas a retalho. Por imperativo da profissão fazia inúmeras viagens cujo as rotas, inevitavelmente, cruzavam alguns caminhos batidos pelos bandoleiros. Precavido, não acompanhava as duas mulas que transportavam a carga, seguia-as a alguma distância para evitar ser emboscado. Numa ocasião, ao passar na Alagoa, viu uns vultos acercarem-se do carreiro e segurarem as bestas pelo cabresto. Deitou mão à carabina de sete tiros que trazia na bandoleira e, em menos de nada, duas balas rasantes zuniram nos ouvidos dos meliantes. Estes, nem esboçaram a mínima resistência, deixaram a presa para não deixarem a pele, o autor dos disparos abatera um cão raivoso a mais de trezentos metros, sabiam que o facto de saírem ilesos não foi obra do destino.
Noutra ocasião, cavalgavam lado a lado o Pinto da Gralheira e o Zé Camilo de Cotelo quando lhe saltaram adiante meia dúzia de rufiões de paus em riste, com intenções bem esclarecidas.
Depois de refeitos do inesperado atrevimento disse, calmamente, o Zé para o companheiro:
- Como é…Desmontas tu ou desmonto eu?...Para estes “farrampelhas” não será necessário apearmo-nos os dois.
Ao aperceberem-se de quem tinham pela frente, dois homens de estatura e ombros a condizer que não atalhavam caminho perante o perigo, gritou o mais espavorido:
- “Fujide”!.... É o Pinto e o Zé Camilo!...
 Para evitar estes desaires, que podiam pôr-lhes em risco a integridade física ou leva-los a prestar contas à justiça, a maioria recorria a um estratagema mais dissimulado, mas não menos doloso para a bolsa dos que, por desconhecimento ou descuido, se aventuravam a passar pela cita freguesia. Abordavam-nos e de forma jovial, mas denunciando o firme intento de os conduzir para a taberna, onde eram coagidos a pagar o que lhes apetecesse consumir. Era um método menos arriscado e mais fiável, mas não totalmente eficaz, pelo menos não o foi na história que passo a contar:
O “tiu Tobias” regressava à Gralheira, quando, nas imediações de Feirão, notou que não tinha tabaco, o vício venceu o medo e a razão, decidindo ir lá comprar uma onça. Mal tinha chegado junto à venda, já se encontrava cercado de rapaces e, segurando as rédeas da égua que montava, disseram-lhe em tom familiar:
-Uhei!... Ó Tobias!.. Hoje, pagas um cântaro de vinho!
O homem, vendo-se encurralado, respondeu de forma entusiástica:
-Um cântaro!... Até pago dois!
Devido à imediata anuência, os detentores diminuíram a pressão no freio do animal que, embora não fosse um puro-sangue ainda guardava alguma nobreza da origem da sua linhagem, instada pelo instinto que a impelia ao movimento resfolegava e escavava no chão térreo de músculos e tendões tensos, prontos para reagirem à ordem do cavaleiro. Conhecendo a fogosidade da montada, aproveitou a desatenção generalizada para fincar os calcanhares nos seus flancos. Como uma mola, o equídeo projectou-se para diante derrubando quantos se lhe interpunham na passagem e, a toda a brida, só a viram escapar, como uma “fopa”, na curva que se seguia. Apenas tiveram tempo de lançar uma ameaça, enquanto arfavam estendidos na poeira do caminho:
-Ah!!! … “Fareleiro”!... ”Hades” cá passar!
Mais recentemente, o Alfredo, meu primo afastado, passava pela estrada que atravessa o lugar quando um cachorro veio enfiar-se debaixo da viatura. Nada pode fazer para evitar o acidente, mas, de imediato, foi abordado pelo pertenço dono, secundado por uma trupe pouco amistosa, exigindo ser compensado pela perda material e sentimental que sofrera. Por sorte, estava presente o “Clemente da Barraca” e, como anda desavindo com grande parte dos seus conterrâneos, resolveu intervir em prol do pacato Alfredo que estava prestes a ser sentenciado por aqueles juízes em causa própria. Com a tomada de posição do temperamental Clemente, os ânimos serenaram, a sua fama de pistoleiro era suficiente para garantir salvo-conduto ao réu. Mas, o meu parente, para evitar complicações futuras, resolveu oferecer cinco contos para minimizar o prejuízo causado. Perante tal oferta, dissiparam-se as hostilidades e, em ambiente de farra, esgueiraram-se para o café onde cambiaram a nota, sem demonstrarem o mínimo pesar pela vítima do sinistro.

Esta realidade é uma nebulosa memória de outros tempos, em que a pobreza não sabia quantos filhos tinha. O espetro da fome era real e pairava ameaçador sobre aquelas almas. Subsistir era uma prioridade premente que o consumismo das últimas décadas não consegue conceber. O que nos sobra em supérfluo, faltava-lhes no essencial. Por isso, estes actos têm que ser analisados no contexto histórico em que se inserem, não podemos fazer juízos de valor fundamentados na realidade dos nossos dias.
No entanto, se passarem por Feirão … Reduzam a velocidade, redobrem atenção, não vão atropelar um canídeo e dar pretexto, remanescente dos velhos hábitos, para vos extorquirem uma canada.
Vítor Silvestre

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