quinta-feira, 23 de maio de 2013

A “Zargata” com os de Alhões


O bairrismo exacerbado, aliado à pobreza e suas associadas, sempres despoletaram pequenas guerrilhas entre os diversos povoados que ponteiam a paisagem de Montemuro. A maioria não passava de incidentes menores, que não ia além de orgulho ferido, mas também existiram casos mais graves, até de morte.
Os da Gralheira não eram dos mais afoutos nesse mester, embora haja relatos de uma ou outra desavença, por norma, não era gente que provocasse deliberadamente o confronto. Apenas há a salientar uma cena de agressão, com laivos de covardia, ao Sr. Abílio de Bustelo, no rescaldo de uma cena de pancadaria ocorrida na vinda da Feira do Fojo. Para além deste incidente, o confronto com os de Alhões, no dia da padroeira, foi a maior contenda em que os meus conterrâneos se viram envolvidos.
Na origem deste incidente esteve uma troca de palavras mais azedas entre o Zé do Belchior e dois indivíduos daquela freguesia, nas antevésperas da festa da Sra. da Graça. O caso foi de pouca monta, mas os fulanos despeitados acirraram os comparsas e, no dia da celebração do orago, a Gralheira foi invadida por quatro dezenas de pauliteiros, com intenções pouco amistosas. Enquanto se celebrava a eucaristia, aquela trupe ruidosa dava arruadas ao povo, numa total falta de respeito para com a celebração em curso. Mas, durante a procissão, a presença do regedor e dos cabos de ordens, inibiu-os de cometer qualquer desacato. No entanto as suas atitudes não passaram despercebidas, como prova o comentário do “tiu Davide”, durante o almoço, para os seus sobrinhos “Crioilo” e “Pontes”:
- Hoje, nesta terra, vai haver uma grande “zargata”
Ao que o avô dos rapazes, na sua ingenuidade, retorquiu:
-Isso está bem!...Ia haver “zargata” no dia de festa!
 Ao que o “Alicate” reafirmou pensativo:
- É como vos digo, ou então…não há homens na Gralheira…
A conversa ficou por ali. O arraial prosseguiu normalmente, pois os arruaceiros, depois de terem feito a arruaça e saídos impunes, deram-se por satisfeitos com a demostração de ousadia e retiraram-se para o Cantinho, onde o “Vila Maior” tinha uma tasca improvisada na loja das mulas. Aí bebiam e cantavam, mas como era desviado do local das festividades, não incomodavam, nem eram incomodados. No entanto, quis o destino que o dia não terminasse sem incidentes.
 O “Tiu António Regedor”, para lá da meia-tarde, entrou na tasca do “Gabirú”; um dos atrevidos, que lá tinha ido comprar cigarros, começou a insulta-lo e a proferir ameaças. O regedor, por precaução, quando chegou ao arraial convocou as suas ordenanças, ordenando-lhes que fossem buscar as armas. A ordem foi sendo desvirtuada de boca em boca, até se transformar num rumor que dizia haver barulho no Cantinho. Aos poucos, algumas pessoas foram-se aproximando do local para averiguar o dito.
Um dos primeiros a chegar foi o “Tiu Isaías”, homem destemido, apreciador de provas de força e rasgos de valentia; outro foi o “Tiu Amadeu do Maximiano”; Seguidos pelo “Crioilo”, um rapaz já espigado, e o irmão “Pontes” que pouco mais era que um adolescente e tentava demover o irmão de se meter no potencial conflito. Ao chegarem ao local, um tal “Campeão” deu ordem de comando:
-Formai roda!
A falange dispôs-se num semicírculo com as costas protegidas pela casa do “Lixandre” e a frente, de maus eriçados, voltada para o largo.(Quem me contou a cena foi o “Pontes”, que tinha subido a um pátio e podia ver com clareza o desenrolar da cena).  A partir daí os acontecimentos precipitaram-se, enquanto o diabo esfrega um olho, já o Isaías; que estava armado de um estadulho curto e afiado, retirado de um carro de vacas; tinha saltado para o meio das ostes inimigas. Quando entrou no âmago da formação, todos os porretes lhe caíram em cima, mas as pauladas entrechocaram, evitando que fosse atingido pela maioria e amortecendo parte do impacto das que lhe bateram. No combate corpo a corpo, a proximidade torna pouco manejável uma arma de maiores dimensões, enquanto o pequeno estadulho era usado como um gládio para espichar o ventre aos inimigos.
Na tentativa de derrubarem aquele temerário adversário que irrompia pelas suas fileiras insensível aos golpes, desferindo chuçadas certeiras; aliada a uma parte que persegui o “Tiu Amadeu” até ao fudo da rua, rematada por uma quelha, onde se entrincheirou; mais uns quantos que encurralaram o “Crioilo”; desviou-lhes atenção dos outros combatentes que foram chegando à refrega. Um dos que entrou em cena foi o “Bombo”, cuja ajuda foi providencial para safar o “Tiu Armando” que, já com duas brechas na cabeça, defendia-se a custo dos ataques de que era alvo. Vindo pela retaguarda, retesou o seu corpo rechonchudo, fincou as pernas curtas e com a firmeza que os pequenos e papudos dedos lhe permitiam, acertou “à mão tenta” nos que o assediavam. Quase em simultâneo apareceram os cabos de ordens de armas em punho, o que fez debandar o que restava da formação inicial. Desorganizados e dispersos, eram alvos fáceis da perseguição levada a cabo por toda a freguesia. Fugiam os fracos e soçobravam os valentes perante o número crescente de opositores. O denominado “campeão” era merecedor da fama que o precedia, nunca virou a cara à luta, apenas sendo derrubado pela falta de apoio dos seus camaradas e pela desproporção numérica que isso originara. Mesmo caído por terra, o seu espirito indómito não se rendia e tentava teimosamente levantar-se, foi necessário a “Pássara” deitar-se sobre o seu corpo, para impedir que as agressões continuassem. Pela sua bravura, foram-lhe prestados os primeiros socorros, o que contribuiu para que não guardasse mágoa dos adversários, mas dos companheiros. Mais tarde, ouviram-no dizer diversas vezes:
-Naquele dia, não devia ter batido nos da Gralheira, mas nos da minha terra.
Na retirada aconteceram várias escaramuças, pois perante um adversário ferido e desnorteado não faltam valentões de ocasião como o “Malaio”, que ao chegar aos Carvalhos disse para o “Manquito”:
- Moço!... Dá-me cá esse pau, que eu quero bater!
O rapaz, como tinha dificuldade em deslocar-se sem a ajuda do bordão resistiu a dar-lhe o que ele pedia. Entretendo, ouviram um burburinho que se dirigia na sua direção e, de imediato, disse o valente “Cá Ramalha”:
- Fugimos!
Foram-se enfiar na loja de uma vaca até passar o perigo. Quando saíram do esconderijo ainda viram um dos fugitivos saltar uma vedação de arame farpado e ficar preso pelas calças. Enquanto o homem tentava libertar-se, apareceu o Gregório, que também não primava pela valentia, mas ao ver o oponente indefeso, afincou-lhe, à falsa fé, uma vigorosa paulada que o deixou inanimado.
O último incidente digno de registo ocorreu já à saída da povoação, quando nas fragas do Penedo da Saúde um dos da retaguarda disparou um revolver contra os perseguidores. O “Mistoso”, investido de cabo de ordens, não hesitou e desfechou um tiro de caçadeira na sua direção, sendo o alvo atingido por alguns bagos numa perna, mas que não o impediu de acompanhar a retirada.
Terminada a peleja, era tempo de tratar dos feridos. O “Crioilo ”apresentava as brechas já referidas, alguns arranhões e nódoas negras nos demais, mas o “Bezarra”, ainda de estadulho em punho, tinha a cabeça numa “roca”. Só a vontade estoica de resistir, aliada há dureza intrínseca do cárneo impediram que perecesse perante a violência de tantas cacetadas. Ainda me lembro do velho Isaías estar a relatar o sucedido e indicar na careca as ténues linhas das antigas feridas.
Felizmente, aquele combate deixou pouco mais que algumas cicatrizes, ficando a questão sanada sem sequelas futuras. Aos da gralheira foi reconhecido o direito legítimo de responder a uma provocação; aos de Alhões imputada a responsabilidade pela insensatez de, sem motivo de monta, terem lançado desafios em terrenos alheios.
 Como dizia o Marquês de Pombal, quando se falava na iminência dos espanhóis nos invadirem: “Eles que venham, porque, mesmo depois de morto, são precisos quatro para retirar um homem da sua casa”.
Vítor Silvestre

sábado, 4 de maio de 2013

Tolos legítimos



O dos Terços”, meu tio-avô, foi uma das mentes mais perturbadas que existiram na Gralheira. Sofria de um tipo de psicose em que acreditava estar possuído pelo diabo, e só através da oração e sacrifícios flagelativos podia extirpar o espirito demoníaco que o atormentava. Para o efeito, ia a desoras para a Igreja: onde em novenas e rezas constantes, com vários terços enrolados na cabeça, penitenciava as faltas imaginárias.
Certa ocasião, o “Tiu Tobias” levantou-se de madrugada para ir a uma feira, quando passava pelo adro, ouviu um restolhar próximo de uma das esquinas da igreja, nesse instante, as nuvens descobriram o céu e a luz do luar projetou no campanário uma imagem fantasmagórica, acompanhada de um aviso gutural:
-Fugiiii!...Que eu aí vouuu!
O homem, estarrecido pelo medo, deu meia volta e tornou para “Valdemantas”.
Para evitar tais sustos e pela cautela de ele não atear algum incêndio no templo, resolveram retirar, durante a noite, a chave do habitual postigo onde era depositada. Mas o meu parente, não era tão tolo como parecia, conseguiu tirar o molde à fechadura e reproduzir uma cópia em pau de urgueira, contornando o impedimento de expiar os pecados.
Apesar da vida quase monástica que levava, o espetro do mafarrico era uma constante. Quando chegava a um serão, se ia com algum companheiro, pedia sempre licença para três, sendo que o terceiro era o “Tal Amigo”. Como tal, vivia obcecado com a ideia de se submeter a um exorcismo. Como não havia padre que reconsiderasse tal ato, a rapaziada, de conluio com a família, disseram-lhe que estava de passagem um sacerdote e estaria disposto a exorciza-lo. Então, no dia combinado, o Isidro vestiu uma combinação, pegou num velho missal e em “porlatim”; perante o olhar devoto e submisso do pertenço possuído, prostrado de joelhos e de mãos erguidas; libertou-lhe a alma do tormento satânico que padecia. Finda a prática, perguntaram-lhe:
-Já te sentes melhor?
Ao que o recém- exorcizado respondeu confiante:
- Muito melhor!...Sinto uma grande força dentro de mim.
Para testar essa potência súbita, puseram-lhe às costas a porta do forno, que era de pedra e pesava bem duas arrobas, mais dois companheiros saltaram-lhe para o cangote e o homem não dava sinais de fraqueza.
Mas, quem tolo nasce, tolo morre. Cismou que tinha de finar-se aos trinta e três anos, idade com que morreu Cristo. Para o efeito, foi para a o ribeiro na Varzeada e lancetou um braço. Enquanto o sangue fluía, dizia para consigo:
- Olha como a água vai vermelha, com o sangue do rapaz…
Acudiram a tempo, antes de se esvair. Mas, nada podiam fazer quando decidiu deixar de comer e perecer por inanição. Morreu, imitando o redentor, em ano marcado, mas a imitação ficou por aí, pois não creio que tenha ressuscitado.
Outro tolo emblemático, também meu parente afastado, foi o “Tolo da Fonte Torno”. Passou assim à história, por ser maluco e por viver no lugar que lhe deu o nome. Era de família abastada, o que lhe permitia não trabalhar e passar o tempo a observar os seus conterrâneos, para, tal como os malucos, dizer tudo o que entendia, expondo publicamente os seus segredos e fraquezas.
Numa ocasião, quando o sacristão acendia as velas do altar, reparou num ligeiro tremor ao realizar a tarefa. Para espanto dos presentes, em plena eucaristia, ouviu-se uma voz que emergia do coro da igreja:
-Treme-te a mão para acender a cera?...mas não te tremeu para comer sete talhadas de carne, na minha cavada da Varzeada...e cavar...  cavassem os outros!
A missa era um local propício a este tipo de comentários, pois todas aquelas pessoas, crentes por vocação, não falhavam às celebrações litúrgicas. Logo no adro estavam sujeitas aos comentários cáusticos do da Fonte Torno, que ao ver as Cardosas de chapéu novo e afidalgado, achou que era mais aparência do que substância e disse, sem papas na língua:
- Olha as Cardosas!.. De chapéu…e com a barriga a tocar viola…
Não sei se foi por causa destes e doutros episódios que, na Gralheira, costuma ouvir-se dizer:
- Com tolos?...Nem prá missa!
O último amalucado a ter assento no pódio é o Serafim da Portela. Tal como o segundo, também incorporou no nome o lugar onde habitava.
Contou-me o “Peixe”, que tinha duas manias muito peculiares. Não podia ouvir burros a zurrar e não admitia que lhe dissessem a palavra rilha.
A rapaziada, sempre há procura de divertimento, entretinha-se acirrar o pobre Serafim com a conjugação do verbo rilhar. Ele perseguia-os que nem cão de fila, de navalha em punho, mas o vigor da mocidade impedia que fossem alcançados. No entanto, numa ocasião, não se distanciaram o suficiente e foram vistos a esconderem-se num palheiro. Vendo-se descobertos e encurralados, a maioria aninhou-se debaixo da palha, apenas um tal “Pinante” teve agilidade para se empoleirar na tesoura que reforçava o cume. Numa fúria tresloucada, o Serafim começou a distribuir navalhadas na forragem macia, enquanto o empoleirado continuava acicata-lo com a palavra maldita:
-Rilha!   
Na tentativa de silenciar a voz que o atormentava, redobrava esforços para enterrar a lâmina nos corpos que se contorciam na tentativa de se furtarem aos golpes. Quando fazia uma penetração mais profunda, dizia triunfante:
- Este já está!
Assim continuaram, até que o “Pinante”, para livrar os companheiros daquele aperto, deu um salto para a porta e pronunciou um estridente:
- Riiilha!
O Serafim, ao vê-lo entre as ombreiras, largou atrás dele, dando aos outros uma oportunidade para se escapulirem.
 Alguns mais haveria para serem mencionados nesta crónica, mas estes, são aqueles em que o tempo já se encarregou de fazer história.
Bem vistas as coisas, muitos dos tolos não são mais insanos que os demais, apenas se diferenciam da maioria…
Vítor Silvestre

domingo, 17 de março de 2013

Esperteza serrana

Os Serranos, sempre foram depreciados pelos da “ribeira”, ou seja, por aqueles que viviam nas encostas do Douro e não no planalto da serra. Todos se queriam demarcar do clima frio e do chão agreste que não deixavam vingar pomar ou videira. Até os da Panchorra, por viverem poucos metros abaixo, consideravam-se mais afortunados que os da Gralheira, a freguesia mais alta de Portugal.
Estigmatizados por ribeirinhos pés descalços que subiam ao ostracizado desterro para trocar fruta por batatas e vender sardinha, os “pacóvios “da serra desenvolveram um saber imprevisível, que inúmeras vezes desconcertou espíritos mais esclarecidos.
Mandava a tradição que o cura, por cada funeral, recebesse, da família do defunto, sete varas de linho e uma cabra. Quanto ao linho não havia problema, a medida estava esclarecida; em relação ao animal, o caso era mais complexo, para ser aceite apenas tinha que se segurar de pé. Como é óbvio, os paroquianos escolhiam a rês mais fraca do rebanho para efetuar o pagamento. Uma ocasião, o “Russito” apresentou um caprino velho, escanzelado e com uma galha partida. O padre, ao analisar o espécime, desclassificou-o quanto à idade e ao trapio, acrescentando com desdém:
- Ainda por cima… só tem um corno!
Ao que o “Foiradas”, no seu jeito habitual, respondeu:
-Pois, pois…Sr. Abade, o outro ainda “háde” nascer.
Os sacerdotes, por conhecerem o breviário, julgavam estar em vantagem perante a iliteracia do povo, inculto em letras, mas doutorado em manha, não se deixava levar com duas cantigas.
Certo pároco, contrariando o celibato, mantinha pacto carnal com uma das ovelhas do seu rebanho. O pai da moça, ao saber das “barbas borradas”, foi ter com o pastor e comprou-lhe cinquenta alqueires do cereal da côngrua. Centeio na caixa e conta no rol, nunca mais deu satisfações ao credor até este o interpelar, no sentido de liquidar a compra. O homem retorceu o bigode e disse-lhe discretamente ao ouvido:
- Quanto é que o senhor acha que vale a honra da minha filha?
O clérigo afitou as orelhas e dando um “desande” no calcanhar da bota, retirou-se em silêncio dando o devido pelo “donzelio” perdido.
A vida no campo era dura, trabalhar terras que mal davam para patrões, quanto mais para caseiros, era ver o espetro da fome sentado no preguiceiro. A maioria destes modestos proprietários estavam à espera do leite da mungidura para merendar, se a vaca escouceasse o canado, lá ficava em jejum. Poucos eram abastados o bastante para emprestarem dinheiro ao parceiro subalterno. Não era o caso da viúva do Sr. Pinto que, para além das propriedades do casal, tinha “na burra” avultada quantia em dinheiro; fruto do engenho empreendedor do falecido para o negócio e de um viver comedido, sem gastos supérfluos, que o tornaram, para os padrões da época, num homem rico. Por conseguinte, adiantou determinada verba a um dos seus caseiros, sendo reembolsada aquando da venda de um bezerro prestes a ir para a feira. O vitelo era de boa raça e foi vendido por soma avultada, mas a patroa continuava sem ser ressarcida. Até que um dia, tomou a iniciativa de puxar por contas ao amnésico devedor, abordando o assunto com diplomacia:
- Ó Sr. António, o bezerro deu bom dinheiro.
- Deu!.. Sim senhora, foi bem vendido.
- Então, se calhar, já podia pagar o que me deve?
Ao que o “Toninho”, movido por necessidades primárias mais prementes, respondeu com a simplicidade de um leigo:
- 0h!...Mulherzinha de Deus, está a senhora a preocupar-se com coisas que a mim nem me lembram.
A serra sempre foi farta em pastagens, as corgas altaneiras fervilhavam de manadas e rebanhos, providenciando a principal fonte de rendimento aos seus proprietários. O gado era vendido a intermediários curtidos na arte que, invariavelmente, levavam a “parte de leão” do negócio. Porem, alguns autóctones tentavam inverter este ciclo de ganhos assimétricos e faziam incursões pelo mester, sem terem os cabedais necessários para ombrear com os parceiros. Como tal, a necessidade aguçava o engenho, inventavam todo o tipo de manobras para resistirem à concorrência.
 O “Tiu Álvaro” era dos mais empreendedores e astutos negociantes de ocasião. Quando vendia cabritos e cordeiros, mal o comprador erguia a rés para lhe “apolegar” o peso, imediatamente, de maneira sub-reptícia, puxava-lhe por uma pata traseira para confundir o calculo da “balança”. Noutra ocasião, comprou e vendeu a mesma cabra a um fulano de Cetos. Como ardil, quando o enviado responsável pela compra notou a semelhança com a que tinham vendido, disse convicto:
- É neta!... É parecida, porque é neta.
Subsistir era a palavra de ordem, a ínfima mais valia era aproveitada sem olhar a quê, nem a quem. Por isso, o “Pitadas “da Panchorra aproveitou-se do cargo de regedor para “esfumaçar” português suave sem filtro, a troco de reanimar o “Caganucho” que tinha caído sem sentidos perante as ameaças de morte do Coelho de Feirão. A cena foi passada na tasca do “Tiu Domingos”, onde, às expensas do Zé Augusto, estava armada uma súcia de vários dias que devorou um porco acabado de sair do chambaril e escouçou uma carga de vinho. Perante a morte aparente do inanimado, o “Pitadas” pediu ao tasqueiro, com a ronha espelhada no rosto:
Ó Sr. Domingos deixe cá ver um cigarro…
Com a tocha acesa, depois de umas sôfregas fumaças, arregaçou-lhe a manga da camisa e queimou a pele exposta. Imediatamente, o braço furtou-se à fonte de calor, o que levou o examinante a proferir:
-Ele bem morto ainda não está…
 Dê cá outro cigarro… vamos experimentar numa perna, não vá ele estar “esquecido do corpo”. A tortura continuou, na razão de um maço, até o homem dar sinal de vida por entre gemidos e ais, dando mostras de aparente melhoria. Aproveitando o ensejo, o “Fumegar”, na esperança de o por porta fora, inquiriu:
-Já está melhor?
Ao que o inquirido, acenando afirmativamente com a cabeça, soltou um pronunciado gemido:
- Hummm…
- Você pode ir a pé?
-Hummm… (negativo).
- Então, quer ir a cavalo?
-Hummm (afirmativo).
- Está bem, venha cá, vamos aparelhar a burra.
Quando o “Caganhucho” passou a ombreira da porta, já a botifarra do “Mijado” alçava-se para afincar-lhe um chuto no rabo, mas apenas pontapeou o vazio, por milagre, o homem recuperou a saúde e escapuliu-se, como um raio, por entre o casario.
Como diz o meu amigo Manuel Alves:
- Eu sou um homem sério!...Pago o que devo!...Se tiver dinheiro…
Por vezes, a seriedade é condiciona por fatores alheios às intenções e à natureza séria de cada um. Quando tudo é escaço, os escrúpulos desvanecem-se, mesmo perante a juvenil inocência.
O “Troquinhas”, indolente solteirão, acrescentava à pequena sorte que herdara o expediente de veterinário e esfolador necrófago de gado miúdo. Quando perecia alguma rês por moléstia, fatalidade, ou carecia de intervenção médico-cirúrgica, o “Tui António das Peis” era chamado para tomar conta da ocorrência. No seu currículo consta a realização de uma cesariana caprina e a abertura, com um fuso, do ânus de um cordeiro recém-nascido. Mas, era na arte de “peliqueiro” que os seus serviços eram mais solicitados. A troco do “fato” do defunto, providenciava enterro sanitário, para bem da salubridade pública.
Nesta condição, foi procurado por dois jovens da terra para esfolar uma raposa que encontraram morta. O “expert”, depois de analisar a peça, arrancou-lhe um tufo de pelo e sentenciou desalentado:
 - Está podre…é uma pena… tem uma pele tão linda… o melhor é enterra-la…
Os rapazes levaram-na para o Cabeço das Rolas, abriram a cova, mas quando se preparavam para o enterro o “Tonhato” interrompeu-os dizendo:
- Podeis ir embora, eu acabo o serviço, vou tirar-lhe um bocado de pelo de um “coixõn” para forrar uns tamancos.
Os moços abalaram e não pensaram mais no assunto, até ao dia de Natal quando viram o “Tui António” de samarra nova, adornada com uma magnífica gola de “raposa”.
Numa tarde quente de Agosto, estava o Sr. “Lixandre” Jorge da Silva, almocreve reformado de uma vida experimentada, sentado na sombra dos degraus da sua casa, acompanhado pela consorte “Dona Baronesa”, quando foram interpelados por duas senhoras, testemunhas de Jeová. Depois de ouvir a retórica do costume, o velho azemel tirou o lenço pataqueiro, limpou o bigode e, depois de uma breve pausa, perguntou:
- As senhoras disseram que vinham para ajudar?
Ao que elas, perante o interesse demonstrado, reiteraram com veemência:
-Com certeza, nos estamos cá para lhe prestar ajuda!
-Então calha bem, eu tenho umas batatas para arrincar…as senhoras vão lá?
-  Bem…não é a esse tipo de ajuda a que nos referíamos…
- Eu sei, eu sei… se fosse no prato, com bacalhau…
Sem esperarem mais conversa, rodaram nos calcanhares e foram profetizar para outra freguesia, ficando o “Vila Maior” a “rir-se para trás das orelhas”, rematando com malicia:
- Ó Maria, aí vão elas!
Haveria mais a contar, mas penso ter dado uma amostra da dita “esperteza serrana”. Talvez, não divergisse muito da saloia, pois era uma esperteza efémera que carecia de substância para ter um efeito efetivo na melhoria das condições de vida dos seus detentores, mas dava para desenrascar.   
Vítor Silvestre

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Companheiro e Campeão

Decorreu neste fim de semana, 16 e 17 de fevereiro, o Campeonato Nacional de Boccia, Individual BC3 Zona Norte no pavilhão multiusos de Guimarães.
Pouco passava das 8h da manhã de sábado quando recebo uma mensagem no telemóvel.
- Quem será que me acorda a esta hora da manhã num dia de descanso?
Resmunguei eu pensando que seria uma daquelas mensagens que nos prometem tudo em troca de quase nada.
Estava completamente enganado, era uma mensagem do meu amigo Armando, que sem me prometer nada, deu-me dois dias de fortes emoções.
-“Olá amigo, estou no multiusos de Guimarães a disputar o campeonato da zona Norte. Se puderes vem cá.”
Foi a primeira vez(!!!!) que assisti a um jogo do meu amigo  e talvez por isso tenha relembrado muitos dos momentos que passamos juntos desde a nossa infância.
Estava eu sentado na bancada a vê-lo jogar, quando dei por mim com as emoções à flor da pele.
 Relembrei as tardes de domingo que passei ao lado do Armando, quando tínhamos meia dúzia de anos de idade, a ouvir os relatos dos jogos do nosso Benfica. Nessa altura o Benfica vencia com grandes goleadas mas o nosso coração só descansava quando o árbitro dava o apito final.
Relembrei aquela brincadeira que fazíamos regularmente, correr com o Armando sentado na sua cadeira de rodas de um lado para o outro na venda dos meus pais mas que, naquele dia de primavera, correu mesmo muito mal. As distâncias não foram bem calculadas, os “travões” não responderam eficazmente e a cadeira tombou juntamente com o Armando do alto degrau da venda. Resultado: uma cara toda esmurrada! Mas não serviu de emenda e no outro dia lá andávamos nós novamente nas nossas correrias.
Relembrei o nosso primeiro dia de aulas na escola primária da Gralheira, que por falta de condições e de professores especializados ele teve de abandonar pouco tempo depois.
Relembrei as nossas aventuras quando nos voltamos a encontrar na escola de Cinfães muitos anos depois.
Relembrei os jogos do Benfica que fomos ver juntos, principalmente aquele em Guimarães onde ficamos ensanduichados no meio da claque dos vimaranenses.
Relembrei os momentos em que me emocionei em frente à televisão ao ver o agora campeão paralímpico.
Relembrei muitos momentos bem passados ao lado do Armando e foram todas estas recordações que me afloraram as emoções e me transportaram para um passado muito feliz que partilhámos juntos.
Mas foram as vitórias que ele foi conquistando, eliminatória após eliminatória, durante estes dois dias de competição, que me trouxeram de novo para um presente que muitos vaticinavam de penoso mas que o seu espírito de grande campeão soube fazer das fraquezas as suas forças e transformou o seu e o nosso mundo num lugar onde a felicidade da nossa infância ainda perdura.

O Armando ficou em segundo lugar neste torneio, perdendo apenas na final para o seu colega de seleção José Macedo.

Obrigado companheiro!

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O Toledo



Quando os jovens entravam na adolescência e as hormonas fervilhavam no fulgor da puberdade, obedecendo ao instinto primário da transmissão dos genes que perpetuam a espécie, diziam que andavam com o “toledo”. Porque para aquelas almas formatadas no pudor e na vergonha, esquecidas dos sonhos da juventude, obedecer às leis da atração e do desejo era estar “atoleimado”. Qualquer laivo de erotismo ou de afeto amoroso era severamente reprimido por uma sociedade de moralidade arcaica, apregoada nos púlpitos por pregadores investidos a preceito na arte de reprimir pensamentos e atos libidinosos.
Por isso, compreende-se a reação do “Tem que Ser” quando a sua enteada Cidália, por preguiça e não por qualquer devaneio pueril, sentava-se nas tronchudas ao invés de apanhar as batatas que ele arrancava, ameaçava com o cabo da sachola e dizia irado:
- Apanha as batatas Cidália!...Tu parece que já queres machorro!
A juventude, debaixo da alçada paterna, era contida nos seus ímpetos lascivos, mas quando o “toledo” dava fora de tempo, o caso era mais sério e diziam resignados:
- O “toledo” dos velhos é pior que o dos novos…
De facto, quando algum viúvo tinha esperanças de refazer a sua vida conjugal, era recriminado por familiares que viam o património delapidar-se em partilhas, e por vizinhos de retrograda maledicência. Esta postura recriminatória continha as aspirações de alguns, mas outros não importavam com os demais e era vê-los rejuvenescer de forma quase miraculosa. Juntavam-se à rapaziada em brincadeiras e provas de força para, qual macho celibatário, mostrar a sua pujança e virilidade, a fim de atrair alguma solteira retardatária ou viúva solitária.
Um dos casos que mais alvoroço causou ma pacatez moral da Gralheira, foi o casamento do “Tiu António ” com a minha tia-avó Margarida. Ele viúvo sexagenário e ela solteirona de meia-idade. O romance terá começado a ganhar forma em Alvarenga, onde foram trabalhar na exploração de uma mina de Volfrâmio, mas foi quando o incumbiram de a levar para um convento que terá consumado as suas intenções.
O “Tiu Antonio” não degenerou da cepa dos “Rentes”, gente literata que tiveram padres sábios na família. Como tal, era homem letrado e instruído pela leitura dos alfarrábios dos seus antepassados, ao ponto de surpreender um grupo de médicos do Hospital de São João, onde estava internado. Quando se apercebeu da dúvida em atribuírem um determinado pensamento filosófico ao seu autor, tomou a palavra e disse:
- Se os senhores doutores dão licença… foi Sócrates!
Admirados com tão inesperada sabedoria, concordaram e afirmaram:
- É verdade!...O senhor é uma pessoa muito instruída.
Ao que o homem respondeu:
-Apenas o exame da terceira classe da instrução primária.
Fruto dessa clareza de espírito, deve ter achado que moça era mal empregue para noviça, estando ele necessitado de companhia e Cristo com os conventos a abarrotar de religiosas. 
Tudo se passou em segredo, sem levantar a menor suspeita. Apenas o meu avô “António” aquando dos preparativos para a “missa nova” do Padre Tobias, Irmão da Margarida e cunhado do meu avô, comentou com a minha avó:
- Ó Maria do Carmo, o “Tiu António” anda com o “toledo” para se casar…
Ao que ela, conhecedora do carater sério daquele “homem de respeito”, exclamou admirada:
-Pode lá ser!
-É como te digo, ele está com uma força medonha: quando eu disse que só levava duas tábuas, ele insistiu que lhe “botasse” seis; depois carregou a mesa de carvalho maciço das Morgadas, apenas tive que lha por às costas…
O assuntou morreu ali, mas as suspeitas do meu avô foram confirmadas quando o “tlau” foi à Granja do Tédo buscar a Margarida, que aí vivia com o irmão Tobias, por esta já não conseguir disfarçar os sinais de gravidez.
Quando a notícia chegou à Gralheira foi a fim do mundo na Barrugéla, os filhos do homem, de idades aproximadas à da madrasta, irromperam num pranto como se o caso fosse de morte.
Mais uma vez, o “Tui António” deu mostras da sua experiência sábia, não veio para a sua terra, foi para Alvarenga para dar tempo que o tempo serenasse os ânimos, só regressando a casa alguns meses depois.
Da união vingaram quatro rapazes, todos dignos de seu pai, em particular o Dr. Simão Botelho que vencendo o infortúnio da paraplegia tornou-se um catedrático em letras, num exemplo de vida reflexa da tenacidade herdade do progenitor que, contra a vontade instituída, ousou procurar a felicidade.
Abençoado “toledo”      
Vítor Silvestre