O “Tiu Domingos”,
natural de Alhões, foi uma das figuras mais carismáticas que conheci. A fronte morena,
encimada por espessa e hirsuta cabeleira, dava à sua robusta figura, bem
provida de membros e meã de altura, a imponência necessária para fazer
respeitar a incontinência urinária que o titulava. A mútua amizade que
partilhávamos alicerçava-se na vontade de ouvir e no prazer de contar. Recordo
os momentos passados na sua tasca, onde recebi um manancial de sabedoria
inteligível, emanada da experiência e da esperteza inata a todos os
preguiçosos.
Adverso à lavoura, desde cedo, procurou outra forma de vida.
Sentindo-se tentado pelo “negócio” e
animado por uma experiência bem-sucedida, enveredou pelo ofício de almocreve.
Era uma vida dura. Os Km percorridos através de montes e vales, ao rigor do
tempo, exigiam homens curtidos de pernas e de vontade, mas era mais lucrativa
que os calos da enxada e proporcionava uma existência livre, recheada de
peripécias e aventuras variadas.
A sua primeira iniciativa
saldou-se com um ganho inesperado, não só pelas circunstâncias favoráveis, mas
também pelo partido que delas soube tirar. Fez render um odre de vinho,
comprado a dois tostões o litro, para o dobro dessa quantidade e inflacionou
doze vezes e meia o preço. A multiplicação do vinho não foi obra da divina
providência, mas fruto de um calor abrasador e da água das corgas de Pena Cova.
Uma luta de bois levou grande multidão ao planalto da serra. O dia estava
quente e a assistência sedenta. A pipa, que o Zé do Belchior levara num carro
de vacas, passou a “São Gulão” em menos de um ámen. Só restava o odre que
parecia não ter fundo, por mais bocas que saciasse, não dava mostras de secar.
Calor, sede e água fresca congregaram-se para originar e encobrir a trampolinice.
Quando, anos mais tarde, contou o sucedido, numa das passagens pela Gralheira,
dizia-lhe o “Tiu Lucas” regozijado
com a revelação:
-Ah Domingos!... Estás no inferno… Se fosse água limpa…agora suja,
daqueles atoleiros.
Esta prática de “batizar”
o vinho manteve-a durante toda a vida, como me revelou o meu tio Amadeu, seu
companheiro de “arrearia” e,
casualmente, parceiro de negócio. Uma fonte que havia em Melcões acrescentava
um almude a cada três cargas compradas em Lamego. Como o vinho era forte e carregado,
a mistura tornava-o mais aberto à vista e fluido na garganta, granjeando
apreciadores e potenciais clientes.
Nas suas azeméis andanças, conheceu a Cesaltina da Panchorra, com
quem viria a casar e a estabelecer-se nessa freguesia com uma pequena taberna,
na casa; como ela dizia ao Sr. Alfredo da gralheira que, por cortesia, elogiava
a exígua vista desfrutada pelo janelo do imóvel:
-Ó Sr. “Alferdinho”!...
Isto é a casa dos nossos “interpassados”.
A sua união não foi pacífica, pois a senhora era casada com o “Carreira” de Alhões que, apesar de já
não ser novo, possuía uns “fígados”
capazes de ocultar o cadáver da primeira mulher, durante três dias, para que os
seus herdeiros não pudessem reclamar o feno que, apressadamente, metia no
palheiro. Foi essa índole, aliada há impotência física para defender a honra,
que o motivaram a envenenar a comida com que os diversos pretendentes se
banqueteavam em sua casa. A ideia era matar, pois a estricnina utilizada não
deixa margem para dúvidas, valendo-lhes ter sido colocada na panela enquanto se
dava o processo de cozedura, neutralizando, parcialmente, o seu potencial.
Mesmo assim, não ficaram livres de perigo, alertados por um mal-estar
crescente, ingeriram azeite para induzir o vómito e evitar a absorção do químico
pelo organismo. Uns por cima, outros por baixo, lá extirparam o mal que os
atormentava, exceto o “Tiu Domingos”
que, de bucho cheio, teimava em não regurgitar o arroz de coelho. Para o
efeito, foi necessária a longa trança de Cesaltina ser-lhe inserida goela
abaixo, a fim de evacuar o quimo estomacal. Não morreu do mal, mas não sei como
sobreviveu à cura. Uma trança que nunca viu sabão, crivada de lêndeas e água só
em dias de trovoada, parece-me mais letal que a comprovada estricnina!
Viveu vários anos na Panchorra, mas dois terços dessa estada foram
passados na Gralheira, pois costumava dizer:
- Prefiro o mal da Gralheira, ao bom da “champorra”.
Nos primeiros anos, manteve relações tensas com os vizinhos.
Várias seriam as causas, mas a principal estava relacionada com o Zé Porfírio
de roças, que já estava estabelecido naquele lugar. A clientela não dava para
um, quanto mais para dois. Por isso, começou por arregimentar aliados, minando
a confiança no concorrente. Não era invulgar, pela madrugada, dispararem-lhe um
tiro contra a porta, ou outro tipo de provocações. Só que o “Tiu Domingos” era duro de roer. Além de
forte e destemido, não baixava a guarda, mantinha-se alerta, prevendo as
jogadas dos adversários. Foi esta cautela instintiva, que lhe permitiu
vislumbrar o movimento de umas giestas e antecipar-se às intenções do Eusébio,
no lugar da Jagunda. Quando este se preparava para o agredir, esquivou-se ao
golpe e, sem o efeito surpresa, dominou-o facilmente. Ao ver-se maniatado,
suplicou por misericórdia:
-Ó “Tiu Domingos”!...Não
me mate!
Ao que o “Fumegar”, no
seu jeito calmo e pausado, mostrando-lhe o chicote com que tocava as mulas,
respondeu:
- Não te aflijas…isto não mata…só mói!
Deu-lhe rédea solta e, na passada, estendeu-lhe o azorrague na
ossada do lombo, ficando a vê-lo, de alpergatas aladas, esfumar-se por entre os
penedos.
Com o passar dos anos, devido há partida do Porfírio e por não
terem remédio, tornaram-se mais tolerantes, até seus “amigos”. Mas, teriam de esperar que a Cesaltina se finasse, para
se verem livres deste intruso, homem bastante para lhes impor a sua presença.
Como já referi, o meu tio Amadeu era seu confrade de mester.
Amiúde, irmanavam-se nas jornadas e no negócio, sendo o ponto de encontro na
Panchorra. Pouco madrugador, quando o meu tio, que também nunca o foi, chegava
a sua casa, invariavelmente, ainda estava na cama. Levantava-se e, sem fazer
uso do lavatório que não tinha, dirigia-se ao “almário” para um “mata-bicho”
de torresmos, batatas, pão e “derretudo
coalhado”, aquecido com meio “cortilho”
de aguardente. Depois de desjejuado, estava “enfarnado”
para beber cinco litros de vinho, sem fazer outra refeição.
Tinha amigas e uma amante,
com quem contrairia segundas núpcias, o que, para uma adúltera experimentada
como a Cesaltina, era intolerável. Nas uniões anteriores fora o elemento
dominante do casal, chegando, nas línguas viperinas, a deitar o marido de um
lado e o amante do outro. Quando, o “vicente”
se apercebia do número invulgar de pés, perguntava admirado:
-Um pé, dois pés, três pés!…De quem é tanto pé Cesaltina!?
Com o “Tiu Domingos”,
embora não tenha abandonado as velhas práticas, sentia-se ofendida na honra.
Por isso, numa ocasião, resolveu acompanhar o marido para, como ela dizia:
-Hoje vou conhecer a puta!
Sem nada dizer, perante o constrangimento do meu tio, pôs-se em
marcha, com a cegarrega a matraquear-lhe os ouvidos. Quando, entendeu distar o
suficiente da povoação, mandou-lhe, sem aviso, duas “juncadas” nas ancas e, perante os gritos de:
-Aqui-del-rei Sr. Regedor!
Disse em surdina:
-Anda lá Amadeu, não faças caso.
Quando enviuvou, regressou à terra natal e continuou com o mesmo
modo de vida, adaptado a uma nova realidade. A era dos almocreves estava
acabada, os muares deram lugar à camioneta. Podiam ir mais rápido e mais longe,
aumentando as perspetivas de negócio. Começaram a transportar anhos, Comprados
em Trás-os-Montes, para o Porto, por alturas do São João. Numa dessas andanças,
depois de terem fechado negócio, o vendedor ofereceu-lhes jantar e guarida.
Durante a noite, o meu tio foi assolado por uma comichão insuportável,
levantou-se e verificou que a cama estava infestada de percevejos. Não se
tornou a deitar, indo para a janela fumar um cigarro, intrigado por o
companheiro de leito não ser atacado. Passados uns instantes, o volumoso corpo
do “Tiu Domingos“ começou a ficar
irrequieto, coçando-se sem parar. De repente, acorda e diz espavorido:
Ó Amadeu!... Eu não sei que tenho!...A ceia fez-me mal!
Ao que o meu tio respondeu, prontamente:
-Não é isso, são percevejos.
O “Mijado”, ainda com os olhos semicerrados, virou-se para o lado
e, já descontraído, murmurou, antes de voltar a adormecer:
-Ah…são percevejos…então não tem mal nenhum…
Era um negociante nato. Fazia súcia com a clientela, pagando a
primeira rodada e vendendo as várias que se seguiam. Quando, de mão em mão, o
copo de litro chegava à sua vez, era escorropichado até à última gota. Esta
tática, aliada à técnica da cana; que pelo batoque, volteava o vinho para que
as borras não assentassem, a fim de também serem vendidas; enchia-lhe a barriga
e a carteira.
Praticava uma diplomacia musculada, todos os fregueses eram
bem-vindos, mas, se necessário fosse, também os punha na rua com um par de ”bufardos”.
Norteava-se pelo lema:
- O preço faz-se consoante a cara do cliente; as contas, com os
amigos, são feitas de cabeça.
Queria com isto dizer, que podia pedir cem escudos, por uma taça
de vinho, a uns motares de arribação, mas não mais de vinte aos “Calhordas” residentes. Quanto às
contas, eram divididas de forma parcial, para que os amigos fossem
beneficiados, em detrimento dos demais convivas. Das múltiplas vezes que suciei
no seu estabelecimento, raras foram as que tive de pagar.
Fazia parte daquela estirpe de homens quase extintos, que viveram,
à revelia do espaço e do tempo, existências duras, desregradas e plena de
excessos. Quando esta conjuntura cobra o seu preço numa morte antecipada, é o
tombar dos velhos bastiões de uma cultura exangue, que soçobrou ao avanço
inexorável do progresso.
Resta, a vontade de ter ouvido e o prazer de poder contar.
- Oiçam!
Vítor Silvestre