terça-feira, 20 de março de 2012

A caça


A caça é uma das atividades mais ancestrais da humanidade. Mesmo não sendo, na maioria das sociedades contemporâneas, necessária à sobrevivência dos indivíduos que as constituem, este instinto predatório permanece enraizado no seu âmago e converteu-se num setor económico relevante.
Na Gralheira, indubitavelmente, caça-se desde que o primeiro homiziado se refugiou naquelas fragas altaneiras. A serra era vasta e farta em espécies cinegéticas, assegurando uma fonte de alimento complementar aos magos recursos que extraiam daquelas encostas escalvadas e agrestes. Todos caçavam, mas poucos se licenciavam ou cumpriam “à risca” todas as imposições legais. Por isso, eram assíduas as fiscalizações venatórias, percorrendo os seus apeados elementos aqueles ermos assolados pela neve e fustigados pelo vento. Numa época em que a falta de acessibilidades e a escassez de meios aumentavam as distâncias, não era fácil consumar o transporte de um detido, resumindo-se a intervenção à identificação dos prevaricadores e posterior aplicação de uma coima. Como distavam várias décadas da informatização dos sistemas e do advento das telecomunicações globais, não era difícil para as mentes mais astutas usarem a inexistência do cartão de cidadão para debelar o pagamento de uma multa, forjando uma falsa identidade. Desse estratagema se valeu o Germano quando foi apanhado em flagrante delito numa caçada ilegal. Perante a hesitação do companheiro em se identificar, assumiu uma postura resignada e cooperante, dizendo:
-Não vale a pena negar quem somos… “Albano Cesário” e “Avelino Barbedo”.
Depois de registados e espoliados dos coelhos e sachos que traziam, regressaram a casa confiantes na resposta que seria enviada pelo regedor quando não conseguisse notificar os faltosos constantes do auto que iria receber.
Os fiscais, investidos de uma autoridade ingrata, estavam unidos pela carência àqueles que lhes competia fiscalizar. Por conseguinte, não era invulgar fazerem “vista grossa” às infrações ou aceitarem desculpas toscas, como as do “Terronha” que ao ser questionado pelas redes que trazia, respondeu:
-Foram para levar umas galinhas à feira.
Obviamente, esta condescendência era gratificada com uma parte dos proventos da caçada e, de vez em quando, faziam uma apreensão ou aplicavam uma multa para mostrar serviço e tranquilizar a hipocrisia institucional. Mas, nem todos comungavam deste pacto de conveniência e fosse por serem mais susceptíveis à retórica da corporação ou por medo de perderem um emprego mal pago, mas garantido pelo estado, exerciam as suas funções com um zelo implacável e digno de louvor.
O “Peito de Aço” e o “Baceslau” eram dessa têmpera e, por serem exemplares, eram jurados de morte por incumpridores ressentidos, alvos destes tenazes e destemidos agentes que descoravam a sua segurança em prol do cumprimento do dever.
Uma das maiores demandas que enfrentaram foi com o Alberto de Vale de Papas que, por ser meio “atoleimado”, pouco se importava com a legislação vigente e caçava a seu belo prazer sem respeitar o defeso ou as restrições ao uso de artefactos proibidos. Há semelhança, do Sr. José da Costa Russo que era caçador de profissão e todo o ano caçava com arma, rede, cão e furão, também o Alberto se viu ladeado por dois “manatas” a prestar contas à justiça.
Relatava de forma enfática a sua captura pouco ortodoxa pois, como ele salientava com a emoção espelhada no rosto “escaveirado”:
-Eles apanharam-me, com licença, a “cagar”!
Não obstante estar com as calças na mão, pegou no arcabuz de um só cano e apontou ao “Peito de Aço”, mas o cartucho que tinha na câmara, calcinado pelo verdete, não despoletou, acabando por se envolver numa luta corpo a corpo com calças e “siloiras”ao fundo das pernas. Defendeu-se com unhas e dentes, como provaria a marca de uma dentada que diz ter deixado tatuada na cara do ”Baceslau”. Subjugado, foi conduzido para Cinfães sob escolta dos captores, com os quais manteve uma postura beligerante até chegar ao destino. Foi vencido, mas não rendido, atestando com orgulho:
-Pelo caminho dei mais de mil murros, mas levei três mil. Quando lá cheguei até “mijava ” sangue. Se tenho a arma carregada com os cartuchos novos que o “Pontes” me tinha dado, aqueles figurões não se ficavam a rir.
Não sei se seria verdade, pois nos matos do castelo, ao deparar-se uma criatura que era metade mulher e metade bicho, também a espingarda lhe negou fogo, apesar de ter premido três vezes o gatilho. Mas, como dizia, quando confrontado com o facto:
- A arma não disparou, porque aquilo era o Diabo.
Muitos foram os reincidentes intimados a comparecer no tribunal. Normalmente, viam a pena ser remida a uma multa pecuniária, mas se não sofriam o desconforto do cárcere, não se livravam da onerosidade de um sistema iníquo que não os deixava mitigar a miséria.
Os fiscais eram odiados e motivavam arrufos de fanfarronice avinhada por caçadores que diziam nada temer ou dever. Mas, Longe da segurança das tabernas, bastava pronunciar-se o seu nome e os caminhos de regresso a casa eram melhores de descer do que subir, como se pode constatar no relato que se segue:
Numa ocasião, andavam a bater a cumeada da serra todos os caçadores da Gralheira e alguns da Panchorra, quando o panchorrense “Pitadas”, com a sua voz de falsete, fez a seguinte observação em jeito de pergunta:
-Se aqui aparecessem os fiscais, o que fariam no meio de tanto “home”?
Ao que a maioria respondeu num tom que roçava o histerismo:
Que fariam?...Nada!...  Que haveriam de fazer!
Ainda desfrutavam da euforia do momento, quando ao “Estrugido”, que já descambava para a outra banda da encosta, aflorou a “pancada” que recebera à nascença e, freneticamente, gritou:
-Fiscais!..
Todos, excepto o autor da confusão e o “Crioilo” que estava ao seu lado, se lançaram por aquelas ladeiras numa corrida desenfreada sem olharem para trás ou ajudar o “Sr. Joãozinho” que ao passar um barroco ficara suspenso na densas “urgueiras” que o ocultavam.
Embora os caçadores continuem a estar incluídos no grupo dos mentirosos, a evolução económica e social que ditou o fim do regime livre e redefiniu o contexto em que a prática deste desporto se enquadra, remeteu os episódios supra narrados para a prateleira das memórias passadas. Actualmente, o associativismo consciencializou os caçadores para práticas de caça mais equitativas e consequente preservação da biodiversidade dos ecossistemas a fim de garantirem a sustentabilidade futura.
Os recursos naturais são uma dádiva finita. Mesmo aqueles que já não usamos por necessidade devem ser preservados, pois não é garantido que o caminho que percorremos nos leve para diante. Por mais que nos custe imaginar, à semelhança dos nossos antepassados, poderemos ter que objetivar a caça não apenas numa vertente lúdica.

Vítor Silvestre.

sexta-feira, 9 de março de 2012

O “Abilinho”

O meu tio Abílio, irmão do meu avô António, é uma das personagens mais incontornáveis na memória dos gralheirenses. Mesmo os que não tiveram a sorte de terem sido seus contemporâneos conhecem aquela figura bonacheirona e de olhos proeminentes, reflexa de um carácter jovial e traquina, tangível no diminutivo pelo qual era conhecido. As suas travessuras geraram um infindável legado de histórias risíveis que amiúde vão sendo recontadas por quem teve o privilégio de as ter testemunhado, ou ouvido e assimilado como se as tivesse presenciado.
Por ser meu tio-avô e eu também ser propenso a fazer “judiarias”, fui sempre indiciado como seu direto sucessor, herdeiro legítimo daquele conceituado “jarifas”. Mas, embora tivesse a minha quota-parte de diabruras, fiquei sempre aquém do meu antecessor. Faltava-me um tudo-nada daquele dom natural que confere, apenas a alguns, o epíteto de mestre.
Desde tenra idade o seu espírito travesso deu sinais da personalidade que viria a moldar toda a sua existência. A tal ponto, que o meu Bisavô “Gaitas”, em desespero de causa, agarrou-o pelo pescoço e abeirando-se do ribeiro em “Talremouço”, exteriorizou o dilema que lhe ia na alma:
- Não sei se te mato ou não!..
A razão deste extremo deve-se ao facto do meu tio ter-lhe roubado e vendido um alqueire de centeio, obtendo assim a quantia de cinco escudos para pagar à “Faifa”o serviço de se meter na cama com o seu tio Lino: Homem velho, solteiro, devoto e celibatário. Quando, um dia pela manhã, viu entrar-lhe pela porta tão inesperada e má reputada visita com intenções bem esclarecidas de lhe macular a castidade impoluta de uma vida, o homem entrou em choque e, apelando por ajuda terrena e evocando o temor divino, gritava como um perdido:
- Ai quem me acode!....Vai-te seu estupor!... Ainda cai aqui um raio nos fulmina…
Escusado será dizer que o mandante da obra estava escondido na “loja” da vaca, situada no piso térreo da casa, a desfrutar da afição do seu parente para impedir as tentativas simuladas da meretriz.
 Devido às múltiplas travessuras, o meu bisavô decidiu alista-lo na marinha, afastando--o daquele meio demasiado restrito para albergar uma alma tão dissonante da ortodoxia generalizada.
Partiu para Lisboa e, para espanto de todos, quando veio de licença já ostentava as divisas de sargento. Esta ascensão meteórica ganhou a verosimilhança necessária a todas as mentiras quando ao entrar no estabelecimento do Sr. Moises deparou com uma patrulha da G.N.R., em serviço de rotina. Perante a entrada de um graduado, de imediato, os soldados colocaram-se em sentido e bateram continência, ao que o Abilinho, com naturalidade, correspondeu ao cumprimento e, pausadamente, ordenou:
- À vontade.
Como tinham sido apanhados com a “boca na borracha”, balbuciaram uma ténue desculpa com a intenção de se retirar, mas o impostor, com o pretexto de aplacar a sede provocada pela poeira do caminho, convidou-os a partilhar a rodada que queria ofertar a todos os presentes na taberna. Com algumas reservas, aceitaram o convite, mas, após várias canecas de vinho, o constrangimento inicial deu lugar a um convívio animado que culminou num estado pouco recomendável para agentes da autoridade e sargentos das forças armadas.
Este episódio foi presenciado pelo “Peixe” que também ficou convencido da legitimidade do posto em que o meu tio tinha sido graduado. Só algum tempo depois é que a verdade foi revelada e puderam avaliar o logro em que tinham caído, mas não foi difícil acreditar na patranha, pois como dizia o Peixe:
- O que nos convenceu foi ele perante a “guarda” manter a calma, sem nunca perder a compostura.
Devido às suas andanças pelo mundo, quando regressava à “terra” era sempre motivo de grande animação, em especial à saída da missa onde por entre meias verdades e mentiras ia distribuindo maços de cigarros americanos muito apreciados por aqueles fumadores de “mata ratos”. Fosse por empatia, curiosidade ou interesse, a assistência ouvia atentamente estórias mirabolantes, como: Macacos a jogarem à bola com cocos, no Brasil; Uma rixa em Taiwan, onde desbaratou um trio que o queria assaltar sobe a ameaça de uma navalha e muitas outras que causavam espanto àquelas mentes simples e crédulas.
Quando passou á reserva, período que abarcam as minhas memórias, passava longas temporadas na Gralheira e não perdida uma oportunidade para pregar boas partidas. Embora ninguém estivesse a salvo das suas tropelias, que incluíam contratar os serviços da rapaziada para lançar sacos de água sobre quem estava sentado nos bancos fronteiros à taberna ou pedregulhos para o tanque onde as mulheres lavavam, tinha alguns alvos privilegiados. O “Carbunário” era uma das vítimas mais assíduas, todos os pretextos eram válidos para atentar contra a pacatez bucólica em que vivia. Tinha especial prazer confronta-lo com a minha tia “Serôdia”, à qual se aliava a “Severa” para completar o trio da discórdia que muito animava o saudoso Ribeirinho daquele tempo. No calor da discussão eram proferidas ameaças e impropérios para todos os gostos, lançavam atoardas e as mais inusitadas represálias, como o “Carbunário” dizer à minha tia:
-Não “cago” mais na tua “arretrete”!  
Esta tomada de posição que hoje parece desprovida de qualquer nexo, não era assim tão descabida e digna de ser encarada de ânimo leve. A “arretrete” não tinha esgoto e os dejectos ficavam depositados no desnível existente na parte inferior, onde eram misturados com mato de forma a produzir estrume que, numa época em que os fertilizantes químicos não estavam em uso, era essencial para a lavoura.
Apesar das suas brincadeiras levadas ao limite, na generalidade, era pessoa bem quista e prezada pela comunidade, pois tinha uma índole bondosa e franca que facilmente gerava mais empatias que antagonismos. A mão que conspurcava com um punhado de terra a água que a tia Aninhas trazia da fonte ou lhe rebolava uma pedra em direção à lareira para lhe tombar as panelas também lhe mitigava a pobreza em que vivia, enviando-lhe um avio de mercearia ou convidando-a a partilhar um quartilho de vinho para aplacar o rosário de pragas com que era mimoseado, depois de se ter deleitado ao ouvi-las.
Infelizmente, ele e a Aninhas comungavam do gosto pelo néctar de Baco, no seu caso, demasiado excessivo e não era invulgar vê-lo “tocado pela pinga”. A D. Lurdes, sua consorte, bem tentava combater a dependência incontrolável do marido, pedindo aos taberneiros que lhe restringissem o consumo e escondendo as sucessivas mangueiras que ele usava para ferrar os pipos pelo batoque, mas sem sucesso.
O alcoolismo e a obesidade foram-lhe debilitando a saúde e as crises de fígado, volta e meia, tinham-no acamado. Numa dessa recaídas o meu avô foi visita-lo e, como irmão mais velho vinte anos, estava a admoestar-lhe uma grande reprimenda onde o aconselhava a preparar-se para entregar a alma a deus, quando ele, fitando um calendário com uma modelo semi-nua, lhe disse:
-Ó António… Ah ricas espanholas!.. Até tocavam castanholas com as unhas dos pés.
Perante tamanha insensatez, o meu avô levantou-se e saiu porta fora, exclamando:
- Tu não tens salvação!..
E não teve, pelo menos terrena, pois não chegou a septuagenário. Morreu, no hospital da marinha, no dia em que faleceu o Sá Carneiro e foi sepultado no mesmo cemitério em Lisboa. A sua chegada coincidiu poucos minutos antes do funeral do primeiro-ministro e, por conseguinte, passou pela formatura destinada a prestar as honras de estado à individualidade. Como militar, a sua urna vinha amortalhada com a bandeira nacional. Perante um dos símbolos da pátria, as forças em parada apresentaram armas, proporcionando-lhe uma partida condizente com eloquência dos episódios que criou. Como diz a minha prima Rosa Maria, acompanhante do cortejo fúnebre:
- Se ele pudesse contar, aos da Gralheira, o seu funeral, seria mais uma estória que ficaria para a história.
A esses não contou, mas tenho a certeza que, onde quer que esteja, dirá, como era costume iniciar uma narração:
- “Isto outra vida”, eram mais de quatrocentos homens perfilados a prestarem-me homenagem.
Muito haveria a dizer e ainda mais a contar, mas é impossível abarcar toda sua magnitude numa crónica mal talhada. Fica para um projecto mais abrangente, não que a sua imagem corra o risco de se desvanecer nos meandros do tempo, pois uma figura tão enraizada na oralidade de um povo, certamente, não carece de ser escrita para garantir a memória futura.    

                                                                                           Vitor Silvestre.