As gentes da Gralheira sempre manifestaram interesses culturais que iam muito além das condições sócio económicas em que viviam. Como dizia o professor Agostinho da Silva, a principal prioridade do ser humano não é a cultura, mas o sustento, e só depois de asseguradas as necessidades primárias é que tendemos a desenvolver actividades de carácter menos premente. Por isso, é quase contranatura que numa aldeia desterrada nas encostas agrestes de Montemuro, com uma subsistência paupérrima, habitada por espíritos afeitos a uma racionalidade empírica, despontassem tendências reflexas de meios mais cosmopolitas.
A corroborar estas afirmações temos a banda de música da Gralheira, fundada no início dos anos vinte do século passado. É certo que foi efémera, não durou duas décadas, mas isso pouco importa, o admirável é que tenha existido. Esta empresa só foi possível devido ao empenho de alguns melómanos que, com uma vontade férrea, reuniram o capital necessário para adquirirem uniformes e instrumentos, seguindo-se a tarefa estóica de iniciar mentes musicalmente obtusas nos trâmites do solfejo. Com abnegação e perseverança tudo é possível e, contra as probabilidades, a banda emergiu num meio ávido de eventos que mitigassem as vicissitudes de uma existência marcada pelo isolamento e pela pobreza. Talvez por isso, os seus contemporâneos a achassem de grande qualidade, em contraponto com a apreciação do mestre que num universo de vinte e cinco elementos apenas considerava ter quatro músicos dignos desse nome.
Naquela época existiam poucas estradas e, quando as havia, a cache que recebiam não permitia pagar o frete de um meio de transporte alternativo às longas caminhadas feitas pelos carreiros da serra. A partida iniciava-se muito antes de raiar o dia e a chegada já com noite cerrada. As poucas horas de sono, aliadas à lonjura do caminho, depois de uma semana de seis dias de labuta intensa, levavam ao limite a resistência física daqueles homens que, enrijecidos por uma vida espartana, abordavam uma marcha de cinco horas com a naturalidade de um passeio matinal. Apenas há memória de um episódio em que o cansaço levou de vencida a têmpera dos serranos. O “Anunciou” adormeceu enquanto tocava o bombo, caindo com grande estrondo, e, de imediato, toda a banda parou a compasso como se a batuta do maestro o tivesse ordenado. Foi uma cena hilariante para toda a assistência e um dos presentes deixou no ar uma exclamação em jeito de pergunta:
- Ele, se calhar, não ceou!?...
Como a dicção não foi muito boa, o “não ceou”, soou a ”Anunciou” e, como tal, assim ficou apelidado o sonolento percussionista.
Noutra ocasião, foram convidados para irem tocar nas festas da freguesia do Touro, onde iriam competir com outra banda. Como o evento era de relevo e não queriam comprometer o início das festividades, desta vez, alugaram uma camioneta de careira para os transportar, mas, depois de se deslocarem a pé até Bigorne e terem aguardado um período de tempo mais que o desejado, o transporte não apareceu e tiveram de fazer o resto do percurso como o tinham iniciado. Devido a este percalço chegaram para além da hora combinada, o que enfureceu os mordomos e os demais presentes que esperavam ver o despique entre as “Musicas”, como tinha sido anunciado. Estava a assistir ao arraial o “Chinela”, negociante de gado, figura conhecida e estimada pelas gentes da Gralheira que, devido à reciprocidade de afecto que sentia, ao ver os ânimos exaltados temeu pela integridade física dos retardatários músicos. Acirrar os ânimos estava um tal Mário do touro que tinha fama de valente e atrevido, valentia que não impediu que perdesse um braço por motivos passionais devido ao atrevimento, e incitando os descontentes dizia:
- Os serranos…, quando cá chegarem, … vão ver como elas lhe mordem!..
A trupe secundava as intenções e, já tocados pelo “pinga”, volteavam “juncos e marmeleiros” lançando ameaças.
Estavam as coisas neste pé, quando irrompeu pela multidão a banda a “toque de caixa” tocando uma animada marcha.
O “Chinela”, que também era conhecido e considerado por aquelas bandas, há algum tempo que apelava ao bom senso dos algozes tentando apazigua-los. Com a chegada dos retardatários, sobressaltado, preparava-se para intensificar as suas intercessões, quando, para seu espanto, ninguém proferiu uma ameaça ou sequer uma má palavra. Refeito da surpresa, interpelou a plebe em geral e o Sr. Mário em particular:
-Então, não batem nos serranos?...
Ao que responderam quase em uníssono:
- Porra!... Que homens tamanhos, tão fortes e tão feios nunca vimos na nossa vida.
Por sorte, a vanguarda era composta pelo “Pelinho”, Pinto, Florêncio, Aires, Gregório, Manuel Maria e outros que no seu conjunto apresentavam uma formatura alta, encorpada e, como diria o Aquilino, com as faces talhadas à enxó. Era um quadro que na sua maioria não primava pela valentia, mas como só foi avaliado pela aparência, os pretensos agressores acharam por bem retrair-se nas suas intenções e desculpar o atraso que foi devidamente justificado.
Os contratos das bandas não eram a “seco”, tinham a alimentação incluída. Os músicos eram distribuídos pelas casas da freguesia para comerem a fressura do “almoço” e a carne assada e o arroz do forno ao “jantar”, cabendo aos mordomos dar vinho e alguma merenda nos intervalos da atuação. Em Solgos, não seguiam este preceito, as refeições eram confecionadas pela comissão de festas e o repasto coletivo. Chegada a hora da refeição, depois da missa e da procissão, sentaram-se para degustar o cabrito que estava a ser servido, quando inalaram um odor intenso e desagradável, pois o animal era chibo velho e “inteiro”. O cheiro e sabor a bedum, mesmo para narinas e estômagos pouco exigentes, era repulsivo, intragável e quase todos se abstiveram, apenas o “Pelinho” comia com satisfação questionando admirado, com a sua fala tartamuda e nasalada, a abstinência geral:
- “Atão, não comeides?... “Tá bem bô”!...
Na sua curta história, a banda da Gralheira deixou um reportório de episódios maior que o das pautas que interpretou, enriqueceu a memória colectiva e disseminou as sementes de uma apetência e um gosto pela música que persistem no âmago da nossa cultura. Foram essas reminiscências que alavancaram, em mil novecentos e cinquenta e oito, a apresentação de um cortejo folclórico que se revelou um dos maiores eventos da região, com uma afluência sem precedentes. Também a existência e a formação de instrumentistas fomentou a fundação, nos anos oitenta do século vinte, do rancho de folclore que, apesar das carências humanas provocadas pela emigração, ainda se mantém em atividade.
Pelo legado imaterial dos nossos antepassados, devemos preservar os símbolos que dão forma à nossa identidade. Testemunhas intemporais que honrarão a sua e a nossa memória, falando por eles e por nós.
Vítor Silvestre