Não levem à letra o título desta crónica, pois nada
tem a ver com orientais de olhos rasgados, sentados nos salões dos seus pagodes
a tomarem chá, mas tem algo de análogo com as “chinatown” que este povo milenar espalhou por algumas cidades do
mundo. À semelhança destas, também o denominado “bairro chinês”, implementado na Quinta Marques de Abrantes, em
Marvila, era um enclave étnico distinto do meio que o envolvia.
Quando o êxodo
rural explodiu nos anos sessenta do século passado, Lisboa e arredores não
tinham capacidade para acolher condignamente semelhante fluxo migratório. Nessa
conjuntura, o espirito perspicaz do “Bombo”
aproveitou um terreno devoluto para iniciar uma urbanização clandestina, com
vista a alojar familiares, parentes, vizinhos e conterrâneos que diariamente
rumavam a sul em busca de melhor sorte. Desta forma, da noite para o dia,
surgiu um gueto maioritariamente beirão, fechado sobre si mesmo, criando uma
réplica cultural e social das aldeias de onde provinham.
“O Urbanista Sete
Latas”- assim denominado por ser o número de peças que dizia precisar para
erguer uma barraca- loteou, implementou e supervisionou as primeiras
construções, cuja bitola era o rafado metro e sessenta do seu corpo roliço. Assim
que a rotunda cabeça passava pela padieira, dizia satisfeito:
- Basta!... Já não há homem que não passe.
O resultado foi uma amálgama caótica de casebres de
chão térreo, edificados com tábuas de caixote, forrados a cartão no interior e
chapeados a ferrugem para impermeabilizar paredes e telhados. As condições eram
precárias, promíscuas, sem água ou saneamento, gelavam de inverno e torravam no
verão, mas a abundância de trabalho na capital permitia-lhes ganhar um sustento
que não tinham na sua terra, fazendo-os suportar estoicamente as adversidades
na construção de um futuro melhor.
Os recém-chegados eram instalados como podiam,
havendo sempre lugar para mais um, nem que fosse, como no caso do “Fira”, num pombal reconvertido em
quarto, coabitado por ratas e percevejos, onde só cabia o catre, que era
montado de salto, mal se transpunha a porta de abertura para fora, por não
existir espaço interior onde por um pé.
O que pretendia ser um alojamento temporário
converteu-se em permanente. Embora a câmara tenha iniciado a construção de
bairros sociais para realojar esta gente, as barracas persistiram.
Melhoraram-nas ao nível do conforto e salubridade, transacionando-as com título
moral de propriedade e direito sucessório, sem os inconvenientes do I.M.T,
imposto de selo ou taxa notarial. Apenas com a implementação do Plano de
Irradicação de Barracas, no final do século passado, foi possível eliminar esta
verruga urbanística com mais de quarenta anos e requalificar o espaço com
construções convencionais. Dos moradores e barracas originais já pouco restava,
mas a génese do bairro permanecia nas suas associações e num viver comunitário
à revelia do tempo, que não encontraram nas novas moradias.
O fundador do empreendimento há muito tinha sucumbido
aos excessos gastronómicos que o tornaram híper diabético, agravados pelo
desprezo que com que tratava a medicina. Com a doença já em estado avançado,
quando o aconselhavam a ir ao médico, dizia convicto:
- O meu médico é o vinho e a aguardente.
Na fase terminal, bebia um regador de água por noite,
até que a máquina colapsou, como era previsível.
A este ignoto agente imobiliário deixo uma menção
honrosa, era merecedor de uma referência na nova urbanização que se ergueu da
demolição do seu improvisado projeto. Ele personifica o desenrasque tipicamente
português, esta capacidade invulgar de ultrapassar obstáculos que para a
maioria dos europeus seriam intransponíveis sem um planeamento metodicamente
organizado. Só que esta faculdade, que tem as suas
virtudes, quando recorrente, converte-se num endógeno defeito contraproducente
que nos condiciona a assertividade e restringe a eficácia, convertendo-nos numa
massa laboral esforçada, mas pouco produtiva para gasto interno. Quando no
estrangeiro, somos reconhecidos como operários de muita qualidade, apreciados,
pontualmente, pela nossa capacidade de improviso.
O problema não está nos que fazem, mas naqueles que
mandam fazer. E dos que nos governam, infelizmente, temos por cá muitos “Sete Latas” cujo legado é bem pior que
um “Bairro Chinês”.
Vitor
Silvestre