A minha demanda, pela preservação do património
imaterial da gralheira, foi forjada na curiosidade de um espirito inquisitivo
que se deleitava a ouvir narrativas de acontecimentos passados e pessoas
antigas. Inúmeras vezes, escutei as mesmas histórias, ficando a conhece-las
melhor que os seus contemporâneos. Frequentemente fazia pequenos reparos aos
narradores sobre as personagens, com tanto acerto, que me interrogavam
admirados:
- Mas, Tu conheceste-o!?
Ao que eu, por chalaça, respondia afirmativamente, só
sendo desmascarado quando confirmavam a minha pouca idade.
Muitos contam, mas poucos são os que têm o condão de
elevar o conto a uma forma de arte. Contar um conto é, também, acrescentar um
ponto, mas não ao ponto de torna-lo inverosímil ou desvirtuado em demasia.
Nessa matéria, a Gralheira, estava bem servida. Havia
vários “historiadores” de boa
memória, como o “Peixe” e o “Manquito”, amiúde referidos nas minhas
crónicas, mas que acho serem merecedores de uma menção mais pormenorizada.
O primeiro, um narrador factual por excelência, era
conhecido como o “jornalista” da
terra. Não havia acontecimento que não reportasse ou episódio que não
conhecesse. Tinha o condão de estar na hora certa e no local exato, aliado à
capacidade, qual coruja das neves, de ouvir em stereo. Colocava-se equidistante
de dois grupos de conversa e, com o queixo apoiado no cado do sacho e olhos
semicerrados, assimilava toda a informação captada, independentemente, por cada
ouvido.
Foi esse manancial de informação que o livrou da
“galiqueira” que a “Maria Estupor” “pregou”
no “Boia”, ao recusar os seus
préstimos carnais. Assim como, arrepelar as generosas pilosidades púbicas da
Soledade, quando estava prestes a soçobrar numa luta, corpo a corpo, pela posse
de um cajado que a moçoila lhe queria estender no cerro, por ter-lhe embaçado
uma ovelha.
O segundo, comediante inato, possuía a capacidade de
imitar fielmente as personagens que reproduzia. Além de um bom narrador, era um
reformulador de histórias. De um pequeno fundo de verdade, transformava algo
banal, numa cena cheia de graça e interessantíssima de ser ouvida.
A sua fisionomia de pernas deformadas por uma queda,
na infância, de um poste de alta tensão, acentuava-lhe o caracter cómico e o jeito natural para a pantomímica.
Lembro-me, em alhões, num dia de São Pelágio, estar a
arremedar o “Pelinho” e a representar
outras rábulas do seu repertório à porta da tasca do “Mijado”, tendo mais assistência que a banda no arraial.
Também lá contou, como uma mulher daquela freguesia,
por o marido se queixar que o pão que levava para a cavada estar cheio de ciscos
e ser mais escuro que o dos da Gralheira na merenda em Campo-de-bel, ter-se-á desnudado
e limpo a casa a preceito para amassar a fornada. Mas, quando se preparava para
formatar as broas, reparou numa teia de aranha no caniço e ao tentar retira-la,
encavalitada numa banca de três pernas, desequilibrou-se e foi aterrar com o
rabo na massa da cozedura. Sem se atrapalhar, passou a rapadoira pela
avantajada “padaria” e, só da
rapadura dos arrabaldes, fez duas bôlas fatas.
Quando se juntavam, era uma complementaridade de
caracteres, onde o jeito calmo e pausado do “Peixe” era animado pelo espirito
loquaz e jovial do “Manco”, garantindo uma tarde inteira de galhofa.
Infelizmente, já nenhum está por cá. O “Manquito”
partiu cedo demais, privando-nos de uma fonte inesgotável de divertido
conhecimento.
Resta-nos a
memória das conversas passadas e a vontade de as reproduzir àqueles que não
tiveram o privilégio ou a atenção de as ter escutado.
Um povo sem memória não tem passado, vê-se privado da
identidade telúrica que lhe lembra, no presente, a razão e o sentido do futuro.
Vitor
Silvestre
Sem comentários:
Enviar um comentário