“Estás
metido numa alhada, pior que a do falecido Gabirú”. Esta
expressão é comum escutar-se, na Gralheira, quando alguém está numa situação
complicada. Desde que me lembro, sempre a ouvi e refleti sobre o seu
fundamento. Todos os gralheirenses a conhecem e pronunciam, mas poucos pensarão
no motivo da sua origem, ou da conotação com a personagem evocada.
Quanto a mim, penso que a “alhada” em que o “Gabirú” se viu metido, foi ter investido num negócio sem estar
qualificado para exercer o mester. Fundou uma tasca, daquelas que tinham vinho,
cigarros e pouco mais; situada na constrita rua dos “Indígenas”, em espaço exíguo, pouco iluminado e apenas frequentado
por fregueses de baixa condição.
A rapaziada procurava-a para serandar, pois era o único local que
os acolhia até horas tardias e permitia burlar o inepto comerciante. Tinham
vários estratagemas que usavam com eficácia comprovada. Quando, por alturas do
Natal, a magra oferta de produtos era substanciada com a venda de figos, os
meliantes abeiravam-se do tosco balcão e pediam uma quantidade superior àquela
que o vendedor poderia colocar na balança num único punhado. Quando este se
baixava, para perfazer a diferença necessária a satisfazer o pedido, mãos ágeis
e ávidas subtraiam parte da mercadoria, sem que a rapina fosse notada. Mais
figos iam sendo colocados no prato, mas o fiel teimava em manter-se
desnivelado. Até que, intrigado com o caso, o marçano exteriorizava um ténue
sinal de desconfiança:
-Diabo dos figos são mais leves do que parecem…
Noutra ocasião, estava uma súcia armada, quando alguém sugeriu que
o bagaço “caía” melhor com pão de
milho. O Floriano, de imediato, ofereceu-se para ir busca-lo a casa, mas saiu pela
porta e dirigiu-se ao quelho que ficava nas traseira do estabelecimento, onde
existia um janelo de dimensão suficiente para deixar passar o seu estreito “cabide”. Entrou, furtou uma broa e
trouxe-a para partilhar com os convivas que, à luz da candeia, emborcavam o
quartilho de aguardente. Não obstante ter surripiado o pão, ainda teve a
desfaçatez de o oferecer ao “Tiu Zé”.
O convite foi aceite sem desconfiança, mas, enquanto o mastigava, notando que
tinha um gosto familiar, comentou:
- Este pão sabe igual ao meu…
Ao que o descarado ladrão, com um sorriso trocista, complementou:
-É verdade, coma!... Que come do que é seu.
Num tempo e num lugar de escassos recursos, os negócios não
prosperavam. Por isso, era com ansiedade que os negociantes viam aproximar-se
alguma festividade, esperançados no fluxo adicional de fregueses para compensar
o défice da “gaveta”.
O “Gabirú”, no dia da festa
da padroeira, resolveu transformar a taberna num restaurante improvisado. Para
o efeito, contratou um cozinheiro, comprou e abateu várias reses, apresentando
um menu de carne assada no forno para atrair a clientela. A ideia parecia ser
um sucesso, pois a casa registou um movimento sem precedentes. Mas, quando foi
feito o balanço final, ao invés do lucro esperado, o saldo apresentava um
prejuízo incompreensível face ao volume de refeições servidas. Incrédulo com o
desfecho da aposta, sem discorrer que muitos almoços ficaram por pagar e que o
cozinheiro desviara parte da carne aprovisionada, o pobre empresário lamentava
a sua sorte. Os conterrâneos, por preocupação, ou por malicia, ainda lhe
diziam:
- Ó “Tiu Zé”!... Veja se o dinheiro não está no rol.
Ao que o homem respondia de maneira resignada:
- Pois, se ao menos, estivesse no puto do rol…
A incompetência e ingenuidade, aliada a alguma mal-intencionada
clientela, ditaram a insolvência do “Gabirú”.
Para além disso, também o azar lhe bateu à porta, foi assaltado. O zé Augusto
de Feirão aproveitou o momento em que o incauto taberneiro estava ao soalheiro,
para o espoliar do pouco que guardava na gaveta dos trocos. Não o assalto em
si, mas a forma como foi executado é digna de uma menção honrosa na academia
dos larápios.
Depois de se ter certificado da ausência do proprietário, entrou
descontraidamente no estabelecimento e, para não gerar desconfiança no “tiu João carpinteiro” que soalhava uma
casa vizinha, encetou um monólogo em jeito de diálogo:
-Ó “Tiu Zé”!.. Está
bom?…Como vai isso?
-Vai-se andando… e você?
-Bem… muito obrigado…
A conversa continuou o tempo suficiente para parecer verosímil,
não faltando todas as saudações e despedidas impostas pela pragmática das boas
maneiras.
Quando o Sol começou a
declinar, o “Francamente”, ainda de
martelo em punho, foi surpreendido pelos gritos do “Gabirú” que clamava ter sido roubado. Estupefacto com o sucedido,
pois ainda há pouco tinha escutado a sua voz no interior da taberna, foi
inteirar-se da ocorrência. Conjugando o seu testemunho com o da vítima, que
avistara o autor do furto na Eira do Adro, chegaram à conclusão inequívoca que
o delito fora consumado pelo “mestre”
José Augusto.
Ainda hoje, grassam pelo nosso país muitos “Gabirús”, expressos no número de pequenas empresas que iniciam e
encerram atividade num período inferior a dois anos. É que, como costuma dizer
o “Seu Manuel”, que foi empresário
nos dois lados do atlântico:
“O negócio
é para todos, mas nem todos são para o negócio”
Vítor Silvestre.