O “Tem que Ser” há força de tanto o dizer,
acabou por ter que o ser. Não recordo o seu verdadeiro nome, apenas a alcunha
se ergue como marco da sua memória, veiculada pelas histórias que lhe dão
forma. Embora não o tenha conhecido, através dos relatos que me foram
transmitidos, guardo uma imagem bem definida da sua personalidade e fisionomia.
Homem pequeno e
de robustez mediana, compensava os dotes da natura com um ego enérgico e
resoluto. Filho ilegítimo, vivia pobre entre pobres, mas isso não o impedia de
ter um carater altivo e garboso, como veio a demonstra a sua curta carreira de
negociante de gado. Mesmo não sendo legitimado, viu-se comtemplado no
testamento do progenitor, herdando a avultada quantia de dez contos de reis. Na
posse desta pequena fortuna, resolveu enveredar pelo negócio supra referido.
Comprou um sobretudo, botas de cabedal e, de varinha aguilhada na ponta,
irrompia pelas feiras espicaçando as reses, proferindo com determinação:
-Quem vende
isto!...
Ombreava com a
elite do ramo, sentava-se na mesma mesa e quando os tendeiros, depois dos
clientes habituais terem pedido vitela, lhe perguntavam o que desejava comer,
respondia prontamente, ensoberbando as palavras e o gesto:
-Ora
essa!...Vitela para aqui, também!
Os muitos
repastos de vitela e os maus negócios realizados ditaram o fim da efémera
incursão pelo mundo dos negócios, mas não dava mostras de arrependimento por
ter fracassado nessa empresa, ao recordar os tempos em que a sua torneada
figura trajava com orgulhosa vaidade, proclamava:
- Eu parecia um “Piorrinha”!
Era casado com a “tia Isaura” e dela tinha duas enteadas.
Talvez, devido a esses frutos pré- matrimoniais, mantivesse uma conhecida e
infundada desconfiança quanto à fidelidade da consorte. Esse facto foi
aproveitado pelos companheiros, que com ele trabalhavam num lagar de azeite,
para inflamar a sua mente inquieta, lançando suspeitas, bem esclarecidas, sobre
uma hipotética traição com o dono das terras, em que era caseiro:
- Tu estás aqui a
trabalhar… e ela, se calhar, na cama com o Pinto.
O “Tem que Ser”, não obstante a distância
que o separava do lar, partiu apressadamente para os apanhar em flagrante. Chegou
de madrugada. Sem perder tempo, bateu violentamente na porta e gritou
encolerizado:
-Abre a porta
Isaura!!!...
A mulherzinha,
cansada e mal ceada, despertou estremunhada e não reagiu com a rapidez desejada,
o que agudizou o ímpeto do marido:
-Abre a porta
Isaura!!!.. Estás-lhe a dar tempo de fugir pelo janelo!
Os sentimentos,
nesta matéria, sobrepõem-se à razão. Conhecendo o Pinto e o dito janelo, se
raciocina-se, veria que era impossível um homem daquela volumetria passar por
onde mal cabia um gato.
Este fantasma
teimava em assombra-lhe a mente, pois não aceitava que lhe “tocassem o corno”, pelo carnaval. A rapaziada, conhecedora desta
implicância, fazia questão de soprar no chifre de vaca transformado em “berrante”, na soleira da porta, para
desfrutar da sua reação. Numa dessas ocasiões, estava a rezar o terço, mas isso
não o impediu de pegar numa vara de marmeleiro e, sem largar a conta do
rosário, correr atrás dos ousados foliões pelas ruas da freguesia. A
perseguição foi-se prolongando, pois os moços, sendo mais rápidos e
resistentes, cadenciavam a passada de forma a manter o perseguidor a uma
distância segura, mas próxima o suficiente para o incentivar a continuar-lhes
no encalço. Esta perseguição só terminou, quando o “Brequita”, ao transpor um muro de pedras soltas, se atrasou o
suficiente para o perseguidor, de terço numa mão e varapau na outra, o alcançar
e afincar-lhe uma enérgica vergastada ao correr da espinha. Esgotado e
ressarcido da afronta, parou para se recompor e regressar a casa, onde a
família o aguardava para terminar a oração.
Lavrador sem
terras, trabalhava arduamente para sustentar-se das “meias” estabelecidas no regime de parceria celebrado com o
proprietário. Nos meses de verão, a lida era ininterrupta e as longas jornas
quebravam o corpo e a vontade, afastando da ideia noites de romantismo
conjugal. Por isso, foi com estranheza que, meio dormente, sentiu um leve
rabiar no pescoço. Como não estava para aí virado, disse com alguma “rasquice”:
- Tá queda Isaura…
A mulher
surpresa, sem entender a advertência, retorquiu:
- Queda!...Eu não
estou a fazer nada.
Perante a
resposta, como o toque persistia, com um falar maroto, repetiu:
-Tá queda Isaura…
Ao que ela,
mostrando-se desentendida, reiterou a resposta:
-Queda!...Já te
disse que estou sossegada.
Perante a negação
da evidência e do desejo dolente de dormir, insistiu já num tom um pouco azedo:
- Tá queda
Isaura!...Tu parece que queres brincadeira!
Não sei como
continuou este desentendido oaristo, pois as cócegas não eram motivadas pela
paixão da Isaura, mas provocadas por um escaravelho em marcha.
Fumar era um dos
poucos prazeres que, quando podia, não enjeitava. O dinheiro era escasso e, por
conseguinte, não perdia uma oportunidade para cravar um cigarrito. Quando o meu
tio “Abilinho” procedia há habitual distribuição de maços no adro da igreja,
era um entre muitos a reclamar o seu quinhão. Numa destas ocasiões, estando o
distribuidor cercado por uma muralha humana e ele ser de baixa estatura, a
solução foi enfiar a mão entre as longas pernas do Gregório e apelar alto e bom
som:
-Ó Abílio!... Põe
alguma coisa na mão do teu compadre!
Desta maneira
viveu e morreu, convicto do destino que a sorte lhe confiava, dizendo:
-Tem que ser!
Vítor Silvestre
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