domingo, 29 de abril de 2012

O Brequita


O “Brequita” era filho do “Breca”, e não foi só a origem do diminutivo que herdou do progenitor. O seu carácter irascível e instável denunciava a cepa da sua proveniência, enxertada com uns pós de psicopata para criar uma cópia “melhor” que o original. Desde cedo, demonstrou uma excentricidade maligna expressa nas animosidades latentes que caracterizaram as relações interpessoais ao longo da sua vida. Embora com os demais elementos da comunidade mantivesse um relacionamento de tensão ambivalente, comparado com o que devotava aos familiares, poderia dizer-se que era “normal”. De fraca compleição física, mas dotado da competência de um fundibulário, era à pedrada que atacava as vitimas e se defendia dos perseguidores que, amiúde, andavam no seu encalço. Solteiro e pouco dado a afetos, vivia, em comparação com os seus conterrâneos, uma estranha forma de vida. Não trabalhava, mas o engenho de que era dotado permitia-lhe subsistir de forma remediada, sem ter que mourejar de sol a sol. Empreendia incursões à boleia, a pé e a pedir pelo distrito de Viseu e mais além, chegando, algumas vezes, até Lisboa. Pelo caminho, embora possuísse uma natureza ímpia, recorria a padres e instituições religiosa com o intuito de se alimentar, albergar e, se possível, receber algum género que pudesse capitalizar. Tinha especial apreço por peças de roupa usadas que vendia a preço de saldo, em leilões muito concorridos e apreciados pelas inúmeras bolsas de posses reduzidas.
 Detentor de uma manha intuitiva, tinha uma faculdade inata para farsa e a representação melodramática. O quadro da sua vida era do mais negro que se possa imaginar. Perante uma assistência enternecida, arrastava a fala entrecortada por uma ligeira gaguez:
- Nhe…nhe…sou um desgraçadinho. Nhe…somos nove irmãosnhe… um de cada pai.
Rondava igrejas e cemitérios com a intenção necrófaga de se alimentar da dor alheia. A fragilidade emocional, devida à perda de um ente querido, era aproveitada para, com encenações requintadas, extrair algum provento generoso.
Apenas a psicanálise poderia ter obtido dados que explicassem o comportamento psicótico que dispensava aos familiares mais diretos. Os Irmãos e as primas “Lercas” eram os alvos privilegiados, em especial as últimas que, por sorte e por azar, moravam numa casa contígua à sua. Esta dicotomia faz sentido, pois ouviram-no afirmar diversas vezes:
-Nhe…só não deito o fogo à casa…nhe… por estar pegada à minha.
Por outro lado, convidava a rapaziada par ruidosos serões até altas horas da madrugada, concertando as vozes afinadas pelo vinho para cantarem de forma intermitente, a fim de não as deixar “engalhar o sono”.
As agressões eram perpetradas e continuadas e nem os laços umbilicais eram impeditivos de as infligir à própria mãe. Tal situação era intolerável e, por conseguinte, o regedor intimou-a a apresentar queixa na justiça. A infeliz senhora, contra vontade, viu-se a caminho do tribunal para justiçar o seu filho. Apesar dos atos hediondos de que tinha sido vítima, o afeto maternal ainda não se tinha desvanecido. Numa tentativa desesperada, apelou a alguma réstia de amor e respeito filial, suplicando:
-Ó Joaquim, se não me bateres mais, eu perdoo-te!
Ao que aquela mente retorcida e insondável respondeu com desdém:
-Nhe…nhe…hei-de mata-la!
Em face disto, o “Brequita” foi julgado e condenado a cumprir pena em Alcoentre, mas nem no cárcere a sua estada foi pacífica, ou passou despercebida. Conservou os instintos agressivos que o condenaram, como prova o testemunho de um guarda prisional que prestara serviço no referido estabelecimento, com o qual conversei em Santo António do Alva. Apesar de ser uma fraca figura, disse-me o meu interlocutor, foi um dos prisioneiros mais difíceis que encontrou em mais de trinta anos de serviço. O seu espírito vingativo era de tal ordem que, numa ocasião, ao apanhar um guarda desprevenido tentou agredi-lo com uma enxada, por este o ter disciplinado com umas bastonadas. Valeu ao incauto elemento a vigilância deste colega que, ao aperceber-se das intenções do recluso, apontou-lhe a arma e dando um berro de aviso  impediu-o de consumar o ato. Mas, segundo a mesma fonte, apesar de estar na mira da espingarda ainda hesitou se deveria desferir o golpe.
Cumprida a sentença, foi libertado, mas a sua conduta manteve-se inalterada e, brevemente, viu-se na situação de foragido com um mandato de captura pendente. Sem fuga possível, enviou uma missiva às autoridades:
- Nhe…se me quiserem prender…nhe… vão a Viseu…nhe…que é a terra…nhe … da mina paixão.
Assim foi que aconteceu, mas o “brequita” nunca mais foi visto desde aquela detenção. Catalogado como incorrigível, foi suprimido pelo “eficiente”sistema do estado vigente e sepultado como indigente, em campa rasa, sem nome ou epitáfio.
Não foi uma morte sentida, pois como afirmou o seu irmão Floriano:
- É pás!...Foi preciso morrer o meu irmão para vivermos sossegados.
De facto, a sua ausência deu mais sossego àqueles que tinham que espreitar por cima do ombro para acautelarem as costas. Mas, como é sabido, depois de mortos encontram-nos sempre alguma virtude envolta na póstuma condescendência. Por isso, por mais perversos que tenham sido os seus atos, há sempre quem diga:
- Oh!…Era maluquinho… Deus lhe “perdo” e o tenha em bom lugar.


                                                                                         Vítor Silvetre