Embora tenha nascido no Porto e aí residido o primeiro quartel da
minha vida, não estando em causa os laços afetivos que me unem ao cinzento
granítico daquelas ruas e fachadas, é na alcantilada e agreste Gralheira que se
encontra a essência da minha naturalidade.
A cidade, qual companheira fiel, proporcionava experiência e saber,
abrindo-me os horizontes da modernidade, mas a aldeia era a saudosa amante que
me arrebatava a alma, num indizível deleite libertino. A minha infância e juventude
foram vividas num mundo de dois hemisférios, que me proporcionaram uma
ambivalência de vida inalienável da minha personalidade.
Podemos ser de onde nascemos e vivemos, mas, acima de tudo, somos de
onde são as nossas raízes. Como as minhas, até ao limite da memória, são
gralheirenses, um apelo ancestral percorria atento o calendário, numa ânsia
desmedida para retornar ao pó das suas origens.
Quando terminava a escola, um dia antes, viajava de autocarro até
Cinfães e, para não ter que aguardar pela ligação às Portas, apanhava boleia
nos camiões de areia até à Carvalhosa, fazendo os restantes sete km a pé. A
chegada era sempre efusiva, com os abraços saudosos da família e a árdua tarefa
de cumprimentar uma freguesia inteira, antes de poder desfrutar da companhia
dos amigos e companheiros de travessuras. Embora fosse benquisto pela maioria,
apreciadora do meu carater jovial e traquina, havia vozes dissonantes que, sem
me pronunciarem o nome, diziam apreensivas:
-Já cá está o do Carlos…
O Nelo, como sou conhecido, era o suspeito crónico de todas as
anomalias ocorridas no povoado. Algumas vezes, fui responsabilizado pelo que
não fiz, mas, na maioria dos casos, era culpado e nem a defesa acérrima da
minha tia Maria “Sapa ”conseguia um
alibi credível, capaz de me ilibar do delito cometido. As “judiarias” eram mitigadas pela maneira como comungava com
comunidade: partilhava a sua forma de vida, comunicávamos na mesma língua; não
me olhavam como um elemento estranho, era diferente entre iguais. Os “lisboetas”; como denominavam os filhos
do êxodo rural, ainda que não residissem na capital; com os “chês” do seu
linguajar, os arrivistas modos citadinos e o ócio estival, eram mal aceites
pelos autóctones de falar áspero e rude, que mourejavam à torreira do Sol e não
compreendiam o direito às merecidas férias, intitulando-os como malandros. Esta
visão dicotómica originava, ao nível da juventude, uma clivagem entre os da
terra e os de Lisboa. Eles apenas nos ignoravam, passavam os dias na “piscina” de papo para o ar, na
companhia de raparigas de estética mais cuidada, que não cheiravam a feno e,
supostamente, permitiam liberdades mais ousadas do que as “nossas”. Por isso, assediávamos os bailes à porta fechada e
apedrejávamos o vazio da noite, não só com o intuito de destabilizar essa
vivência idílica, mas pelo prazer emotivo da rebeldia adolescente.
Logo à chegada, apresentava-me
ao meu tio Herculano e acompanhava-o, diariamente, no amanho das terras e no
trato das vacas, convertendo-me no filho que nunca teve. Embora fosse meu
padrinho, nunca o tratei dessa forma, mas foi o único homem da família, pra
além do meu pai, a quem sempre beijei a face. Esse cumprimento emanava de um
afeto que não carecia ser dito, estava impresso em cada palavra, em cada gesto,
numa simbiose inquebrantável. Tudo fazia para satisfazer as minhas vontades,
mesmo que fossem um pouco precoces para um miúdo de seis anos. Para o efeito,
deslocou-se ao Porto e comprou uma gadanha nº20 que encabou no cabo feito por
medida, para que eu pudesse cortar erva. Dirigiu-se à rua do Almada e, numa das
múltiplas casa de ferragens, perguntou ao ferrageiro:
-Quanto custa esta gadanha?
- Mil escudos.
Ao escutar a cifra, arremessou o objeto pra o balcão e, perante a
estupefação do caixeiro, disse convicto:
- Tome-a lá, que não presta!
Confuso, o homem questionou
indignado:
-Não presta!...Então porquê?
-Porque é muito barata!
Um destes utensílios, na Gralheira e arredores, andava pelo dobro
desse valor, como tal, achou ser de qualidade inferior. O experiente comerciante
teve de explicar-lhe os trâmites da infanção que o produto sofria desde que era
ali comprado, até ser vendido pelo intermediário na sua loja do interior.
Assim fui crescendo por entre fragas e penedos, desfrutando de uma
liberdade periódica que nunca sucumbiu às tentações citadinas da juventude. Com
outros da mesma laia, passávamos a aldeia a pente fino em noites de folia
irreverente que, não raras vezes, com o amanhecer causavam celeuma no largo dos
Carvalhos, onde vozes ressentidas comentavam:
- Banaboias...
Nem sempre as noitadas eram desse teor, também eram adornadas por
arruadas canoras e serenatas românticas a donzelas de recolher obrigatório ao
toque das trindades.
Hoje, passo menos tempo na Gralheira: a pacatez bucólica do passado
foi substituída pelo ruido dos motores e a azáfama sazonal de forasteiros; quase
não há vacas e a agricultura é residual; os amigos de infância dispersaram-se
pelos caminhos da vida e os reencontros são esporádicos; o meu filho e os
amigos, infetados com a doença do ecrã, não aproveitam o potencial que aquela
natureza lhes oferece; muitos, já nem sabemos quem são, antes de perguntar como
é hábito por lá:
-Tu de quem és?
Quase me sinto um estrangeiro
dentro da minha própria terra.
A evolução tecnológica transformou o planeta numa aldeia global, somos
cidadãos do mundo, podemos pertencer a toda a parte, mas quem reconhecer as
suas origens, saberá sempre onde é o seu lugar.