quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O desejo da carne



Quando intitulo esta crónica, faço-o no sentido literal da expressão, qualquer conotação bíblica é uma mera coincidência. Este desejo proteico, para a minha geração, só fará sentido se recordamos o bife com batatas fritas da nossa infância. Mas, para as que nos antecederam, nem vulgarização do seu consumo consegue olvidar a abstinência passada.
 Ainda sou do tempo, em que os meus conterrâneos davam valor ao frango assado e à marrã que, ocasionalmente, comiam nas feiras e romarias. Porque em casa, o bacorito mal cevado tinha de ser regrado com parcimónia, para que não sobrasse muito ano ao vazio da salgadeira. Os mimos do suíno, enchidos e presuntos, eram guardados para a força do trabalho, cabendo às talhadinhas de suã, enquanto as houvesse, o papel de adubar as batatas com “carne frita”. Galináceos eram reservados para convalescer uma parturiente, ou um enfermo, como o meu avô António: quando o seu corpo roliço, que lhe valia a alcunha de “Sapo”, pedia melhoria de rancho, dava parte de doente. “Carne fresca”, caprina ou ovina, só em dias de festa, assada no forno a lenha e acompanhada com arroz tostado no alguidar. Outras reses, vacas e bezerros, desempenhavam um papel económico que ia além da alimentação dos seus proprietários; apenas lhe “passavam pelo estreito” se fossem vítimas de algum acidente mortal, ou incapacitante que força-se o abate.
Repastos desse género ficaram nas memórias infantis daqueles, já septuagenários, que, por providência divina, desfrutaram da morte de duas vacas do “Escudela”, fulminadas por um raio. Como foram sangradas em tempo útil, as carcaças foram retalhadas e vendidas na freguesia e arredores, para mitigar o prejuízo. Não que, na Gralheira, houvesse falta de bocas para devorar os dois bovídeos e mais que fosse, mas as bolsas era inversamente proporcionais ao apetite dos consumidores.  
Apetite que, embora voraz, era escrupuloso ao ponto de enjeitar o consumo de uma vaca e uma cabra, também vítimas da trovoada, por não terem sido sangradas, retendo a carne os fluídos corporais. Quem apascentava os animais era o “Mistoso”, também afetado pela descarga elétrica, tendo dificuldades em regressar para contar o sucedido. Ao retornar para enterrar os cadáveres, depois de indagar-lhe a localização, dizia o seu tio arreliado:
- Ora porra!..Tinham, logo, que morrer naquelas fragas...vamo-nos ver “cozidos” para arrastar a vaca.
Qual não foi o espanto, quando chegaram ao local, só lá encontrarem pele e cornos, todo o resto tinha desaparecido. Incrédulos, retrocederam ao caminho, mas quando chegaram à portela de Tejosa, avistaram uma fila de pessoas que subia a Costa Carreira carregados que nem azeméis, desfazendo as dúvidas quanto ao destino das carcaças. Os da Panchorra pouco se importaram com rubor ensanguentado da carne não purgada, como formigas recolectoras transportaram o que podiam para encher panelas e estômagos vazios.
Mais recentemente, já em época mais farta, ainda perduravam os resquícios passados. Estava eu com o meu primo “chinês” no alto do Portal Mafala, quando me apercebi da proximidade das suas vacas com as do Alcindo de Cotelo. Como o confronto parecia iminente, alertei-o de para o facto:
“Chinês”!...Vai lá, que as tuas vacas vão lutar com as do Alcindo!
Para meu espanto, o rapaz, mais novo alguns anos, reagiu com uma calma que desafiava a sua imaturidade:
-Não faz mal…eu até queria que elas lutassem e uma das dele morresse.
Surpreendido, perguntei-lhe, franzindo o senho:
-Para quê?
Ao que ele, calmamente, esclareceu:
- É que depois, o meu pai, par ajudar o Alcindo, comprava muita carne para comermos em casa; como aconteceu: quando, a minha “Cabana”, no Portaporca, matou, com uma marrada, uma da Panchorra.
Soltei uma gargalhada, e ripostei com o triunfo de quem iria desarmar-lhe o raciocínio:
- Então, se morre uma das tuas?
Ao que aquele pirralho, frio e calculista, concluiu:
-Se fosse a minha…ainda comia mais.
Na ocasião, este diálogo apenas me divertiu, mas refletindo um pouco no assunto, podemos extrapola-lo para conclusões mais abrangentes sobre as condições económicas e sociais das gerações dos hidratos de carbono. Com a melhoria per capita dos rendimentos, a alimentação tornou-se mais variada e rica em proteínas animais, o que contribuiu para uma alteração fisionómica relevante nas gerações mais recentes. Somos mais altos, aproximamo-nos das médias do centro-norte da europa, mas também somos mais gordos. A globalização do fast-food, aliada a hábitos mais sedentários, transformou a obesidade num problema crescente das sociedades ocidentais. Segundo um estudo recente, os excessos alimentares do mundo desenvolvido causam mais óbitos que a insuficiência alimentar dos povos carenciados.
Portugal não possui recursos bastantes, nem uma política agrícola que promova diminuição da dependência externa. As nossas reservas são os cargueiros que estão atracados nos nossos portos. Beneficiamos de uma posição geográfica que nos insere num contexto alimentar excedentário, mas se for interrompido por alterações que restrinjam a produção ou a logística mundial, ver-nos-emos confrontados com necessidades alimentares, muito para além:
Do desejo da carne…
Vitor Silvestre

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