Quando intitulo esta crónica, faço-o no sentido
literal da expressão, qualquer conotação bíblica é uma mera coincidência. Este
desejo proteico, para a minha geração, só fará sentido se recordamos o bife com
batatas fritas da nossa infância. Mas, para as que nos antecederam, nem vulgarização
do seu consumo consegue olvidar a abstinência passada.
Ainda sou do
tempo, em que os meus conterrâneos davam valor ao frango assado e à marrã que,
ocasionalmente, comiam nas feiras e romarias. Porque em casa, o bacorito mal
cevado tinha de ser regrado com parcimónia, para que não sobrasse muito ano ao
vazio da salgadeira. Os mimos do suíno, enchidos e presuntos, eram guardados
para a força do trabalho, cabendo às talhadinhas de suã, enquanto as houvesse,
o papel de adubar as batatas com “carne
frita”. Galináceos eram reservados para convalescer uma parturiente, ou um
enfermo, como o meu avô António: quando o seu corpo roliço, que lhe valia a
alcunha de “Sapo”, pedia melhoria de rancho, dava parte de doente. “Carne fresca”, caprina ou ovina, só em
dias de festa, assada no forno a lenha e acompanhada com arroz tostado no
alguidar. Outras reses, vacas e bezerros, desempenhavam um papel económico que
ia além da alimentação dos seus proprietários; apenas lhe “passavam pelo estreito” se fossem vítimas de algum acidente
mortal, ou incapacitante que força-se o abate.
Repastos desse género ficaram nas memórias infantis
daqueles, já septuagenários, que, por providência divina, desfrutaram da morte
de duas vacas do “Escudela”,
fulminadas por um raio. Como foram sangradas em tempo útil, as carcaças foram
retalhadas e vendidas na freguesia e arredores, para mitigar o prejuízo. Não
que, na Gralheira, houvesse falta de bocas para devorar os dois bovídeos e mais
que fosse, mas as bolsas era inversamente proporcionais ao apetite dos
consumidores.
Apetite que, embora voraz, era escrupuloso ao ponto
de enjeitar o consumo de uma vaca e uma cabra, também vítimas da trovoada, por
não terem sido sangradas, retendo a carne os fluídos corporais. Quem
apascentava os animais era o “Mistoso”,
também afetado pela descarga elétrica, tendo dificuldades em regressar para
contar o sucedido. Ao retornar para enterrar os cadáveres, depois de
indagar-lhe a localização, dizia o seu tio arreliado:
- Ora porra!..Tinham, logo, que morrer naquelas
fragas...vamo-nos ver “cozidos” para
arrastar a vaca.
Qual não foi o espanto, quando chegaram ao local, só
lá encontrarem pele e cornos, todo o resto tinha desaparecido. Incrédulos, retrocederam
ao caminho, mas quando chegaram à portela de Tejosa, avistaram uma fila de
pessoas que subia a Costa Carreira carregados que nem azeméis, desfazendo as
dúvidas quanto ao destino das carcaças. Os da Panchorra pouco se importaram com
rubor ensanguentado da carne não purgada, como formigas recolectoras
transportaram o que podiam para encher panelas e estômagos vazios.
Mais recentemente, já em época mais farta, ainda
perduravam os resquícios passados. Estava eu com o meu primo “chinês” no alto do Portal Mafala,
quando me apercebi da proximidade das suas vacas com as do Alcindo de Cotelo.
Como o confronto parecia iminente, alertei-o de para o facto:
-Ó “Chinês”!...Vai
lá, que as tuas vacas vão lutar com as do Alcindo!
Para meu espanto, o rapaz, mais novo alguns anos,
reagiu com uma calma que desafiava a sua imaturidade:
-Não faz mal…eu até queria que elas lutassem e uma
das dele morresse.
Surpreendido, perguntei-lhe, franzindo o senho:
-Para quê?
Ao que ele, calmamente, esclareceu:
- É que depois, o meu pai, par ajudar o Alcindo,
comprava muita carne para comermos em casa; como aconteceu: quando, a minha “Cabana”, no Portaporca, matou, com uma marrada, uma da
Panchorra.
Soltei uma gargalhada, e ripostei com o triunfo de
quem iria desarmar-lhe o raciocínio:
- Então, se morre uma das tuas?
Ao que aquele pirralho, frio e calculista, concluiu:
-Se fosse a minha…ainda comia mais.
Na ocasião, este diálogo apenas me divertiu, mas
refletindo um pouco no assunto, podemos extrapola-lo para conclusões mais
abrangentes sobre as condições económicas e sociais das gerações dos hidratos
de carbono. Com a melhoria per capita
dos rendimentos, a alimentação tornou-se mais variada e rica em proteínas
animais, o que contribuiu para uma alteração fisionómica relevante nas gerações
mais recentes. Somos mais altos, aproximamo-nos das médias do centro-norte da
europa, mas também somos mais gordos. A globalização do fast-food, aliada a hábitos mais sedentários, transformou a
obesidade num problema crescente das sociedades ocidentais. Segundo um estudo
recente, os excessos alimentares do mundo desenvolvido causam mais óbitos que a
insuficiência alimentar dos povos carenciados.
Portugal não possui recursos bastantes, nem uma
política agrícola que promova diminuição da dependência externa. As nossas
reservas são os cargueiros que estão atracados nos nossos portos. Beneficiamos
de uma posição geográfica que nos insere num contexto alimentar excedentário,
mas se for interrompido por alterações que restrinjam a produção ou a logística
mundial, ver-nos-emos confrontados com necessidades alimentares, muito para
além:
Do desejo da carne…
Vitor
Silvestre
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