quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A demanda da lenha



Desde a utilização do fogo, a humanidade busca fontes de combustível que supram as carências energéticas, constantes e crescentes, das suas sociedades. Hoje, existe uma panóplia de alternativas, mas nenhuma se assume como a solução definitiva para colmatar esta dependência inalienável do progresso, garantindo a sustentabilidade do planeta. Renováveis ou findáveis, todas se assumem como indispensáveis, desde os primórdios, para assegurar necessidades básicas à nossa sobrevivência e conforto.
A Biomassa, por estar “à mão de semear”, foi, e continua a ser, o ancestral recurso de uma fração significativa da população mundial. Embora se encare como uma alternativa para produzir, em centrais modernas, energia resultante dos resíduos florestais, em locais remotos, ou desfavorecidos é o recurso primaz dessas franjas da civilização.
Dito isto, é de espantar, para os menos informados, que na Gralheira e afins, na segunda metade do Séc. XX, a madeira continuasse a ser o único combustível disponível paral acender a lareira, onde cozinhavam todo o ano e se aqueciam do longo frio invernal. Essa necessidade incontornável transformava-a num produto muito procurado e ciosamente guardado pelos proprietários rurais. Os que não possuíam terras viam-se obrigados a arrebanhar o que podiam pelas rebuscadas bordas dos caminhos, ou surripiar as propriedades alheias. As “Molheiras”, diariamente, vasculhavam os montes baldios na esperança de recolher um feixe de chamiços que, atados por um vencilho, transportavam à cabeça. Algumas, em desespero de causa, arriscavam-se a suportar a ira dos donos das giestas furtadas, vitais à sua subsistência.
Na Gralheira, entre conterrâneos, os roubos eram esporádicos. Quem não tinha: podia sempre contar com a solidariedade do vizinho, em troca de algum trabalho braçal; ou comprar umas carradas em Vale de Papas, onde os matos eram abundantes e os cavadores de boa cepa. O produto excedentário dos papenses era arrematado à saída da missa, na Gralheira, pela módica quantia de vinte e cinco tostões a carrada. Não era um bom negócio para quem vendia, pois os gralheirenses tinham engenho e vacas para transportar numa viagem mais do que os vendedores podiam imaginar.
Contou-me o “Peixe”, que num desses negócios, dizia uma das partes:
-São quatro carradas, quanto queira carregar!
Ao que a outra, depois de avaliar as rimas, disse pensativo:
- É uma…
Começou a tarefa e, perante o espanto do dono da lenha, quando terminou, tinha as piornas negrais todas “encarreoladas”, comentando para consigo:
- Ainda “botava” mais algumas…
Perante tal desfaçatez, o homem despiu o casaco e, como que possuído por uma força sobre-humana, arrancou à mão umas quantas e disse sentencioso:
- Carregue à vontade!.. Comigo não faz mais negócio!
Os da Panchorra eram a principal ameaça às reservas lenhosas da freguesia vizinha. Os seus escassos e mal repartidos recursos, obrigavam-nos a delapidar a fronteira de tudo o que pudesse arder, quer estivesse em pé ou arrancado. Quando faziam alguma cavada nessa zona, se lá deixassem a lenha, ao abrigo da noite, nem as “firmas” escapavam. Mesmo durante o dia não se coibiam de fazer incursões de rapina, desafiando quem os repreende-se.
Numa ocasião, na lameira do “Bague” do vale, estava o “Bravo” a esgalhar-lhe um carvalho, quando este o surpreendeu e, com propriedade, interpelou-o:
- “Bague”!...Então isso não tem dono?
O meliante, atrevido e destemido, sem proferir uma palavra, arremeteu contra o adversário de cutelo em riste, julgando que este se acobardaria. Mas, o “Bague” era forte e valente e, confiando nas suas capacidades, aguardou o ataque do inimigo sem pestanejar. Quando este tentava desferir-lhe uma cutilada, saltou para o interior do raio de ação do cutelo e, com uma chave de braço, derrubou-o, pressionando-lhe o diafragma com um joelho. O agressor revirou os olhos e, soltando um urro agonizante, prostrou-se inerte no solo. O “Bague”, depois de refeito da descarga de adrenalina, comentou preocupado:
- Aí, se calhar, matei o raio do “home”
E foi para a Fraga da Roçadas até ele se reanimar, pegar no cutelo e deixar a ramagem cortada, para levar noutro dia.
Atualmente, com a introdução dos fogões a gás e do aquecimento a fuel, este recurso perdeu importância, mas não deve ser descartado. Quando vejo venderem-se lotes de árvores por um punhado de euros, que pouco acrescentam à bolsa de quem vende, e oiço argumentos como:
-Não serviam para nada!
Assiste-me o direito de discordar. Uma árvore serve muito mais que os interesses de senso comum. Mas, pensando nesses, num futuro de valores energéticos crescentes, poderemos ter que retornar:
À demanda da lenha…
Vitor Silvestre

sábado, 6 de outubro de 2012

Os Manga de alpaca



Esta expressão, estatutária dos burocratas do funcionalismo público, tem caído em desuso ao longo do tempo. Era usada no sentido pejorativo, por aqueles que se viam enredados no marasmo de um sistema complexo e moroso; agravado pela sobranceria e incompetência de muitos funcionários, ensoberbados na importância de um cargo mal pago, mas respaldado pelo edifício do estado.
 Todos estes predicados funcionavam na razão inversa à dimensão do meio em que se inseriam. Por conseguinte, nos concelhos do interior, onde a bitola era nivelada por baixo, o Manga-de-Alpaca ascendia a um estrato social desfasado das suas reais possibilidade. Mas, o que lhe escasseava em recursos, sobejava-lhe em influência. Os pobres e simples munícipes viam-se coagidos a bater com os pés às portas dos gabinetes para verem satisfeitas as suas legítimas pretensões. Bater da forma habitual, era sinal que vinham de mãos a abanar e, sem peita, não havia serviço. Comunicavam com enfado, depois de indagarem de onde vinham, como se estivessem muito atarefados:
- Há… é da Gralheira, há lá bom fumeiro!... Venha cá amanhã, que talvez se consiga tratar do assunto.
Por norma, era assim que as coisas se passavam, mas nem sempre se deparavam com simplórios fáceis de convencer, alguns tiveram arte para contornar o sistema organizado.
O meu tio Amadeu estava colocado na base aérea do Negaje, em angola, a cumprir o serviço militar. Quando veio de licença, foi a Cinfães tratar do subsídio que o estado concedia aos pais dos militares no ultramar, para agregados de baixos rendimentos. Porque a farda branca era a melhor roupa que possuía, ou por julgar que lhe daria algum estatuto, foi uniformizado. A sua entrada da Câmara gerou algum alvoroço, pois foi confundido com um qualquer fiscal da administração central. Os mais jarretas soergueram-se de óculos na ponta do nariz, para avaliar o recém-chegado. Quando perceberam o engano, aliviados, deixaram-se cair nas cadeiras de braçais, transmitindo aos colegas o que tinham constatado:
-Não é nada!...é só um tropa a requerer uma coisa qualquer…
O meu tio foi ignorado, até que, por curiosidade, lhe perguntaram onde estava colocado. Naquela altura, o comandante da base angolana era o Sr. General Garcia de Resende, cinfanense de elite, influente e respeitado. Então, quase de improviso, teve esta resposta:
- Estou na Base do Negaje. Sou o impedido do comandante.
Ao ouvirem isto, disseram quase em uníssono:
-Está aqui o impedido do Sr. General!... Vão chamar o irmão!...Faça favor de entrar!..
Todas as portas se abriram, desvaneceram-se entraves e mordomias, sendo o pedido despachado a toque de caixa.
O meu tio não era o impedido, mas conhecia bem o comandante, devido às funções sacristas de coadjuvar o capelão da unidade. Não foi difícil satisfazer a curiosidade daqueles lambe-botas e regressar a casa com o assunto resolvido.
Este episódio foi um exceção à regra, mas o que vou narrar de seguida assume um aspeto extradimensional. Quem o contou foi o protagonista, jurando por tudo que foi real. Vou relata-lo, porque se não foi verdade, pelo menos parece-me verosímil.
O “Necas” foi criado pelo avô materno, o Carriço, proprietário e homem de negócios. Como tal, tinha que pagar a décima dos bens que possuía. Contava o neto a idade de catorze anos, mandou-o a Cinfães pagar o imposto que era devido. O rapaz montou-se na égua e foi à sede do concelho cumprir a incumbência que lhe foi confiada. Dirigiu-se à respetiva repartição da câmara, aguardou durante todo o dia, mas a passividade dos funcionários não permitiu saldar a dívida. Retornou na semana seguinte e, pelo andar da carruagem, as coisas encaminhavam-se para o desfecho de há oito dias: a lassitude do jornal, o bocejar indolente, o torpor das conversas monocórdias e a fila que esperasse pela sua vez. Estava o “Necas “ neste impasse, quando dele se abeirou um senhor de certa idade, tão discreto, sóbrio e cinzento como o sobretudo que trajava, e perguntou-lhe com voz de velha:
-Ó meu menino, o que fazes por aqui?
O rapazote lá contou a sua história, lamentando-se que já era a segunda vez que ali estava e, pelos jeitos, não seria a última.
O homem escutou, e, sem dar resposta, dirigiu-se ao interior do balcão, de onde foi escorraçado sem delongas, por um funcionário que nem se dignou a levantar os olhos do pasquim, com uma mal-humorada advertência:
-O senhor ponha-se na fila e aguarde pela sua vez!
O enigmático desconhecido retirou-se, mas, para espanto dos utentes e infortúnio dos amanuenses, regressou acompanhado pelo cabo da guarda, mandatado para prender todos os responsáveis pelo serviço, inclusive o presidente. Perante o olhar incrédulo e estarrecido dos Manga- de- Alpaca e a estupefação dos contribuintes, disse com autoridade:
- Podem ir embora, por este ano a contribuição está paga!
Ainda aturdidos pelo desenrolar dos acontecimentos, ninguém tugiu, nem mugiu. Apenas o “Necas ”,movido pelo verdor dos anos, ousou perguntar:
- Então, se o meu avô quiser saber quem assume essa responsabilidade, o que lhe digo?
Pondo-lhe a mão no ombro, disse de forma calma e pausada, em jeito paternal:
- Meu menino…diz ao teu avô que foi o Salazar.
Posso imaginar o assombro que provocou esta revelação. Não sei as sequelas administrativas deste acontecimento. O “Carriço”, tal como nós, teve dificuldade em aceita-la de ânimo leve. Na primeira oportunidade, foi pessoalmente confirmar a versão que lhe foi contada, vindo plenamente esclarecido.
Não sei se haverá alguém, para além do “Necas”, que tenha conhecimento desta história e possa corrobora-la, mas a ser verdadeira, podemos concluir:
Ainda hoje, para muitos Manga-de-alpaca, era cá preciso um Salazar.
Vítor Silvestre