Desde a utilização do fogo, a humanidade busca fontes de combustível
que supram as carências energéticas, constantes e crescentes, das suas
sociedades. Hoje, existe uma panóplia de alternativas, mas nenhuma se assume
como a solução definitiva para colmatar esta dependência inalienável do
progresso, garantindo a sustentabilidade do planeta. Renováveis ou findáveis,
todas se assumem como indispensáveis, desde os primórdios, para assegurar
necessidades básicas à nossa sobrevivência e conforto.
A Biomassa, por estar “à mão de
semear”, foi, e continua a ser, o ancestral recurso de uma fração significativa
da população mundial. Embora se encare como uma alternativa para produzir, em
centrais modernas, energia resultante dos resíduos florestais, em locais
remotos, ou desfavorecidos é o recurso primaz dessas franjas da civilização.
Dito isto, é de espantar, para os menos informados, que na Gralheira e
afins, na segunda metade do Séc. XX, a madeira continuasse a ser o único
combustível disponível paral acender a lareira, onde cozinhavam todo o ano e se
aqueciam do longo frio invernal. Essa necessidade incontornável transformava-a
num produto muito procurado e ciosamente guardado pelos proprietários rurais.
Os que não possuíam terras viam-se obrigados a arrebanhar o que podiam pelas
rebuscadas bordas dos caminhos, ou surripiar as propriedades alheias. As “Molheiras”, diariamente, vasculhavam os
montes baldios na esperança de recolher um feixe de chamiços que, atados por um
vencilho, transportavam à cabeça. Algumas, em desespero de causa, arriscavam-se
a suportar a ira dos donos das giestas furtadas, vitais à sua subsistência.
Na Gralheira, entre conterrâneos, os roubos eram esporádicos. Quem não
tinha: podia sempre contar com a solidariedade do vizinho, em troca de algum
trabalho braçal; ou comprar umas carradas em Vale de Papas, onde os matos eram
abundantes e os cavadores de boa cepa. O produto excedentário dos papenses era
arrematado à saída da missa, na Gralheira, pela módica quantia de vinte e cinco
tostões a carrada. Não era um bom negócio para quem vendia, pois os
gralheirenses tinham engenho e vacas para transportar numa viagem mais do que
os vendedores podiam imaginar.
Contou-me o “Peixe”, que num
desses negócios, dizia uma das partes:
-São quatro carradas, quanto queira carregar!
Ao que a outra, depois de avaliar as rimas, disse pensativo:
- É uma…
Começou a tarefa e, perante o espanto do dono da lenha, quando
terminou, tinha as piornas negrais todas “encarreoladas”,
comentando para consigo:
- Ainda “botava” mais
algumas…
Perante tal desfaçatez, o homem despiu o casaco e, como que possuído
por uma força sobre-humana, arrancou à mão umas quantas e disse sentencioso:
- Carregue à vontade!.. Comigo não faz mais negócio!
Os da Panchorra eram a principal ameaça às reservas lenhosas da
freguesia vizinha. Os seus escassos e mal repartidos recursos, obrigavam-nos a
delapidar a fronteira de tudo o que pudesse arder, quer estivesse em pé ou
arrancado. Quando faziam alguma cavada nessa zona, se lá deixassem a lenha, ao
abrigo da noite, nem as “firmas” escapavam.
Mesmo durante o dia não se coibiam de fazer incursões de rapina, desafiando
quem os repreende-se.
Numa ocasião, na lameira do “Bague”
do vale, estava o “Bravo” a
esgalhar-lhe um carvalho, quando este o surpreendeu e, com propriedade,
interpelou-o:
- “Bague”!...Então isso não tem dono?
O meliante, atrevido e destemido, sem proferir uma palavra, arremeteu
contra o adversário de cutelo em riste, julgando que este se acobardaria. Mas,
o “Bague” era forte e valente e,
confiando nas suas capacidades, aguardou o ataque do inimigo sem pestanejar.
Quando este tentava desferir-lhe uma cutilada, saltou para o interior do raio
de ação do cutelo e, com uma chave de braço, derrubou-o, pressionando-lhe o diafragma
com um joelho. O agressor revirou os olhos e, soltando um urro agonizante,
prostrou-se inerte no solo. O “Bague”, depois
de refeito da descarga de adrenalina, comentou preocupado:
- Aí, se calhar, matei o raio do “home”
E foi para a Fraga da Roçadas até ele se reanimar, pegar no cutelo e
deixar a ramagem cortada, para levar noutro dia.
Atualmente, com a introdução dos fogões a gás e do aquecimento a fuel,
este recurso perdeu importância, mas não deve ser descartado. Quando vejo
venderem-se lotes de árvores por um punhado de euros, que pouco acrescentam à
bolsa de quem vende, e oiço argumentos como:
-Não serviam para nada!
Assiste-me o direito de discordar. Uma árvore serve muito mais que os
interesses de senso comum. Mas, pensando nesses, num futuro de valores
energéticos crescentes, poderemos ter que retornar:
À demanda da lenha…
Vitor Silvestre