Esta expressão, estatutária dos burocratas do funcionalismo público,
tem caído em desuso ao longo do tempo. Era usada no sentido pejorativo, por
aqueles que se viam enredados no marasmo de um sistema complexo e moroso;
agravado pela sobranceria e incompetência de muitos funcionários, ensoberbados
na importância de um cargo mal pago, mas respaldado pelo edifício do estado.
Todos estes predicados
funcionavam na razão inversa à dimensão do meio em que se inseriam. Por conseguinte,
nos concelhos do interior, onde a bitola era nivelada por baixo, o Manga-de-Alpaca
ascendia a um estrato social desfasado das suas reais possibilidade. Mas, o que
lhe escasseava em recursos, sobejava-lhe em influência. Os pobres e simples
munícipes viam-se coagidos a bater com os pés às portas dos gabinetes para
verem satisfeitas as suas legítimas pretensões. Bater da forma habitual, era
sinal que vinham de mãos a abanar e, sem peita, não havia serviço. Comunicavam
com enfado, depois de indagarem de onde vinham, como se estivessem muito
atarefados:
- Há… é da Gralheira, há lá bom fumeiro!... Venha cá amanhã, que
talvez se consiga tratar do assunto.
Por norma, era assim que as coisas se passavam, mas nem sempre se
deparavam com simplórios fáceis de convencer, alguns tiveram arte para
contornar o sistema organizado.
O meu tio Amadeu estava colocado na base aérea do Negaje, em angola, a
cumprir o serviço militar. Quando veio de licença, foi a Cinfães tratar do subsídio
que o estado concedia aos pais dos militares no ultramar, para agregados de
baixos rendimentos. Porque a farda branca era a melhor roupa que possuía, ou
por julgar que lhe daria algum estatuto, foi uniformizado. A sua entrada da
Câmara gerou algum alvoroço, pois foi confundido com um qualquer fiscal da
administração central. Os mais jarretas soergueram-se de óculos na ponta do
nariz, para avaliar o recém-chegado. Quando perceberam o engano, aliviados,
deixaram-se cair nas cadeiras de braçais, transmitindo aos colegas o que tinham
constatado:
-Não é nada!...é só um tropa a requerer uma coisa qualquer…
O meu tio foi ignorado, até que, por curiosidade, lhe perguntaram onde
estava colocado. Naquela altura, o comandante da base angolana era o Sr.
General Garcia de Resende, cinfanense de elite, influente e respeitado. Então,
quase de improviso, teve esta resposta:
- Estou na Base do Negaje. Sou o impedido do comandante.
Ao ouvirem isto, disseram quase em uníssono:
-Está aqui o impedido do Sr. General!... Vão chamar o irmão!...Faça
favor de entrar!..
Todas as portas se abriram, desvaneceram-se entraves e mordomias,
sendo o pedido despachado a toque de caixa.
O meu tio não era o impedido, mas conhecia bem o comandante, devido às
funções sacristas de coadjuvar o capelão da unidade. Não foi difícil satisfazer
a curiosidade daqueles lambe-botas e regressar a casa com o assunto resolvido.
Este episódio foi um exceção à regra, mas o que vou narrar de seguida
assume um aspeto extradimensional. Quem o contou foi o protagonista, jurando
por tudo que foi real. Vou relata-lo, porque se não foi verdade, pelo menos
parece-me verosímil.
O “Necas” foi criado pelo avô materno, o Carriço, proprietário e homem
de negócios. Como tal, tinha que pagar a décima dos bens que possuía. Contava o
neto a idade de catorze anos, mandou-o a Cinfães pagar o imposto que era
devido. O rapaz montou-se na égua e foi à sede do concelho cumprir a
incumbência que lhe foi confiada. Dirigiu-se à respetiva repartição da câmara,
aguardou durante todo o dia, mas a passividade dos funcionários não permitiu
saldar a dívida. Retornou na semana seguinte e, pelo andar da carruagem, as coisas
encaminhavam-se para o desfecho de há oito dias: a lassitude do jornal, o
bocejar indolente, o torpor das conversas monocórdias e a fila que esperasse
pela sua vez. Estava o “Necas “ neste impasse, quando dele se abeirou um senhor
de certa idade, tão discreto, sóbrio e cinzento como o sobretudo que trajava, e
perguntou-lhe com voz de velha:
-Ó meu menino, o que fazes por aqui?
O rapazote lá contou a sua história, lamentando-se que já era a
segunda vez que ali estava e, pelos jeitos, não seria a última.
O homem escutou, e, sem dar resposta, dirigiu-se ao interior do balcão,
de onde foi escorraçado sem delongas, por um funcionário que nem se dignou a
levantar os olhos do pasquim, com uma mal-humorada advertência:
-O senhor ponha-se na fila e aguarde pela sua vez!
O enigmático desconhecido retirou-se, mas, para espanto dos utentes e
infortúnio dos amanuenses, regressou acompanhado pelo cabo da guarda, mandatado
para prender todos os responsáveis pelo serviço, inclusive o presidente.
Perante o olhar incrédulo e estarrecido dos Manga- de- Alpaca e a estupefação
dos contribuintes, disse com autoridade:
- Podem ir embora, por este ano a contribuição está paga!
Ainda aturdidos pelo desenrolar dos acontecimentos, ninguém tugiu, nem
mugiu. Apenas o “Necas ”,movido pelo verdor dos anos, ousou perguntar:
- Então, se o meu avô quiser saber quem assume essa responsabilidade,
o que lhe digo?
Pondo-lhe a mão no ombro, disse de forma calma e pausada, em jeito
paternal:
- Meu menino…diz ao teu avô que foi o Salazar.
Posso imaginar o assombro que provocou esta revelação. Não sei as
sequelas administrativas deste acontecimento. O “Carriço”, tal como nós, teve
dificuldade em aceita-la de ânimo leve. Na primeira oportunidade, foi
pessoalmente confirmar a versão que lhe foi contada, vindo plenamente
esclarecido.
Não sei se haverá alguém, para além do “Necas”, que tenha conhecimento
desta história e possa corrobora-la, mas a ser verdadeira, podemos concluir:
Ainda hoje, para muitos Manga-de-alpaca, era cá preciso um Salazar.
Vítor Silvestre
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