domingo, 15 de julho de 2012

O “Regedor Velho”


A figura do regedor ainda está presente na memória provinciana de muitos portugueses. Este cargo administrativo, criado em 1836, esteve em vigor durante cento e quarenta anos, sendo extinto pela constituição de 1976. As suas competências sofreram várias modificações ao longo da história, datando as últimas das reformas administrativas de 1938 e 1940. A função, na generalidade, tinha a incumbência de garantir a aplicação das leis e dos regulamentos administrativos e exercer a autoridade policial na respetiva freguesia. A sua importância foi, gradualmente, sendo diminuída com a expansão das áreas de intervenção da G.N.R e P.S.P, restringindo-se a sua influência às freguesias rurais mais distantes das sedes de concelho. Eram autoridades que, servindo um estado autoritário, tinham o poder suficiente para impor a lei e a ordem, pelos meios necessários ao cumprimento das disposições legais que lhe eram confiadas. Podiam nomear Cabos de Ordens todos os que tivessem prestado serviço militar e requisitar armas a particulares, para os auxiliarem no cumprimento dos seus deveres.  
Na Gralheira durante a vigência da regedoria, muitos foram os que ocuparam o cargo, mas apenas o “Tiu António” ficou conotado com a função. Quando se referiam à sua pessoa, e por existirem muitos “Antónios” na terra, acrescentavam o cognome “Regedor Velho”. Para o facto, contribuíram a longa permanência no cargo e a respeitabilidade que granjeou durante o seu exercício. Homem dado à leitura e ao saber, os seus conhecimentos iam muito além das letras gordas da instrução primária do seu tempo. Exerceu uma magistratura equitativa, ponderada e cordata, alicerçada numa retidão moral e num comportamento cívico inquestionáveis. Ainda o conheci, e posso assegurar que daquela aparência alva e calma de septuagenário, talhada pela cadência serena de um falar grave e sério, emanava a aura inconfundível de um homem estado. Foram essas aptidões que lhe permitiram debelar situações delicadas, sem ter que redundar no autoritarismo institucional vigente.
Entre a Gralheira e a Panchorra sempre existiram atritos variados, mas eram mais visíveis por palavras que por atos. Poucas foram as situações de confrontação física dignas de registo e, muito menos, de consequências graves. Mas, certa ocasião, o Isidro, devido a negócios de saias, foi barbaramente agredido numa deslocação noturna àquele lugar, ficando muito maltratado e em estado considerado critico. Este ato covarde, perpetrado e executado por vários elementos munidos de paus, despoletou, nos conterrâneos do agredido, um incontido desejo de vingança.
 O panchorrense “Candeias”, que viria a casar na Gralheira, namorava a futura mulher e, inadvertidamente, veio meter-se na boca do lobo. Sem averiguarem o grau de responsabilidade que lhe competia no sucedido, de imediato, foi cercado, na casa da “Tia Conceição”, por uma trupe enraivecida, disposta a exercer represálias sangrentas. O sitiado era instado a sair, mas, perante exclamações como as do “Herói”, que era irmão da vítima:
- As maiores postas serão as das orelhas!...
Recusava-se a deixar a segurança relativa que a tosca porta de carvalho lhe conferia, para enfrentar um linchamento anunciado.
Permaneciam neste impasse, quando o “Tolas”; com o seu carater volátil que tanto se inflamava, como condescendia; gritou desalmadamente:
- Fogo à casa!...Não sai?...Fogo à casa!...
Esta sugestão demonstra o estado de espirito daquela tropilha, que, ignorando os inflamáveis telhados de colmo, estava disposta a sacrificar meia aldeia, para atingir o seu objetivo.
Perante esta ameaça, a “Tia Conceição” assomou à janela e, em pânico, gritou a plenos pulmões:
- Aqui-del-rei, senhor regedor!!!
O apelo foi atendido pelo “Tiu António Regedor” que, valendo-se da consideração que lhe dispensavam e exercendo a autoridade que possuía, lá conseguiu demover a rapaziada dos seus intentos assassinos, evitando que o “Candeias” fosse retalhado para encher moiras.
Também foi, durante o seu mandato, que aprisionaram o “Batoco” de Ovadas, sobre o qual pendia um mandato de captura por ter violado e seviciado várias mulheres. Foi apanhado por populares e entregue à custódia do regedor, que improvisou um carcere, turnos de guarda e escolta armada para, no dia seguinte, ser conduzido à cadeia concelhia de Cinfães. A condução do detido foi entregue a dois Cabos de Ordens, investidos de uma autoridade bem esclarecida. Como afirmou o “Mistoso”, que foi um dos escolhidos, quando, ao narrar a história, lhe perguntaram:
“Tiu Amadeu”, e se ele tentasse fugir?
A resposta foi perentória:
- Era, logo, um tiro!
Além de zelar pela lei e pela ordem, também; devido a reminiscências do passado, em que o cargo tinha o estatuto de magistrado judicial; a sua jurisprudência era chamada a mediar conflitos. As decisões poderiam não ter suporte legal, mas eram vinculativas e aceites de forma consensual. Uma das intervenções mais sensatas em que tomou parte, foi obrigar o “Copas” a comprar uma casa, para poder desalojar uma inquilina, residente num imóvel de que era proprietário. A “Fragata” era mãe solteira e as únicas riquezas que possuía eram os vários filhos de tenra idade. Como tal, o “Regedor Velho” achou inconcebível despejar uma família nestas circunstâncias, deixando-a sem o teto que ajudava a mitigar a fome. A moradia, embora pequena, foi adquirida pelo locador e doada à locatária a título definitivo e sucessório, onde morou até ao fim dos seus dias.
Ao escrever esta crónica, vou refletindo sobre o estado de impotência a que chegaram as autoridades e instituições deste país. É uma pena, que com a imprescindível liberdade, não tivéssemos adquirido uma responsabilidade madura, capaz de garantir as aspirações legítimas dos cidadãos, sem descambarmos no laxismo, na permissividade e numa visão assimétrica entre direitos e deveres. Quase quarenta anos de democracia, não conseguiram consolida-la em toda a sua plenitude. Enquanto tivermos uma nação burocratizada; emperrada por processos letárgicos; regida por leis ambíguas, que permitem dualidades jurídicas entre grandes e pequenos; não temos um sistema eficaz e credível, nem somos o estado de direito que almejamos ser.
Faziam cá falta, algumas qualidades, de alguns “Velhos regedores”…
Vítor Silvestre

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