A figura do regedor ainda está presente na memória
provinciana de muitos portugueses. Este cargo administrativo, criado em 1836,
esteve em vigor durante cento e quarenta anos, sendo extinto pela constituição
de 1976. As suas competências sofreram várias modificações ao longo da
história, datando as últimas das reformas administrativas de 1938 e 1940. A
função, na generalidade, tinha a incumbência de garantir a aplicação das leis e
dos regulamentos administrativos e exercer a autoridade policial na respetiva
freguesia. A sua importância foi, gradualmente, sendo diminuída com a expansão
das áreas de intervenção da G.N.R e P.S.P, restringindo-se a sua influência às
freguesias rurais mais distantes das sedes de concelho. Eram autoridades que, servindo
um estado autoritário, tinham o poder suficiente para impor a lei e a ordem,
pelos meios necessários ao cumprimento das disposições legais que lhe eram
confiadas. Podiam nomear Cabos de Ordens todos os que tivessem prestado serviço
militar e requisitar armas a particulares, para os auxiliarem no cumprimento
dos seus deveres.
Na Gralheira durante a vigência da regedoria, muitos
foram os que ocuparam o cargo, mas apenas o “Tiu
António” ficou conotado com a função. Quando se referiam à sua pessoa, e por
existirem muitos “Antónios” na terra,
acrescentavam o cognome “Regedor Velho”.
Para o facto, contribuíram a longa permanência no cargo e a respeitabilidade
que granjeou durante o seu exercício. Homem dado à leitura e ao saber, os seus
conhecimentos iam muito além das letras gordas da instrução primária do seu
tempo. Exerceu uma magistratura equitativa, ponderada e cordata, alicerçada
numa retidão moral e num comportamento cívico inquestionáveis. Ainda o conheci,
e posso assegurar que daquela aparência alva e calma de septuagenário, talhada
pela cadência serena de um falar grave e sério, emanava a aura inconfundível de
um homem estado. Foram essas aptidões que lhe permitiram debelar situações
delicadas, sem ter que redundar no autoritarismo institucional vigente.
Entre a Gralheira e a Panchorra sempre existiram
atritos variados, mas eram mais visíveis por palavras que por atos. Poucas
foram as situações de confrontação física dignas de registo e, muito menos, de
consequências graves. Mas, certa ocasião, o Isidro, devido a negócios de saias,
foi barbaramente agredido numa deslocação noturna àquele lugar, ficando muito
maltratado e em estado considerado critico. Este ato covarde, perpetrado e
executado por vários elementos munidos de paus, despoletou, nos conterrâneos do
agredido, um incontido desejo de vingança.
O panchorrense
“Candeias”, que viria a casar na
Gralheira, namorava a futura mulher e, inadvertidamente, veio meter-se na boca
do lobo. Sem averiguarem o grau de responsabilidade que lhe competia no
sucedido, de imediato, foi cercado, na casa da “Tia Conceição”, por uma trupe enraivecida, disposta a exercer
represálias sangrentas. O sitiado era instado a sair, mas, perante exclamações
como as do “Herói”, que era irmão da
vítima:
- As maiores postas serão as das orelhas!...
Recusava-se a deixar a segurança relativa que a tosca
porta de carvalho lhe conferia, para enfrentar um linchamento anunciado.
Permaneciam neste impasse, quando o “Tolas”; com o seu carater volátil que
tanto se inflamava, como condescendia; gritou desalmadamente:
- Fogo à casa!...Não sai?...Fogo à casa!...
Esta sugestão demonstra o estado de espirito daquela
tropilha, que, ignorando os inflamáveis telhados de colmo, estava disposta a
sacrificar meia aldeia, para atingir o seu objetivo.
Perante esta ameaça, a “Tia Conceição” assomou à janela e, em pânico, gritou a plenos
pulmões:
- Aqui-del-rei, senhor regedor!!!
O apelo foi atendido pelo “Tiu António Regedor” que, valendo-se
da consideração que lhe dispensavam e exercendo a autoridade que possuía, lá
conseguiu demover a rapaziada dos seus intentos assassinos, evitando que o “Candeias” fosse retalhado para encher
moiras.
Também foi, durante o seu mandato, que aprisionaram o
“Batoco” de Ovadas, sobre o qual
pendia um mandato de captura por ter violado e seviciado várias mulheres. Foi
apanhado por populares e entregue à custódia do regedor, que improvisou um
carcere, turnos de guarda e escolta armada para, no dia seguinte, ser conduzido
à cadeia concelhia de Cinfães. A condução do detido foi entregue a dois Cabos
de Ordens, investidos de uma autoridade bem esclarecida. Como afirmou o “Mistoso”, que foi um dos escolhidos,
quando, ao narrar a história, lhe perguntaram:
-Ó “Tiu Amadeu”,
e se ele tentasse fugir?
A resposta foi perentória:
- Era, logo, um tiro!
Além de zelar pela lei e pela ordem, também; devido a
reminiscências do passado, em que o cargo tinha o estatuto de magistrado
judicial; a sua jurisprudência era chamada a mediar conflitos. As decisões
poderiam não ter suporte legal, mas eram vinculativas e aceites de forma consensual.
Uma das intervenções mais sensatas em que tomou parte, foi obrigar o “Copas” a comprar uma casa, para poder
desalojar uma inquilina, residente num imóvel de que era proprietário. A “Fragata” era mãe solteira e as únicas
riquezas que possuía eram os vários filhos de tenra idade. Como tal, o “Regedor Velho” achou inconcebível
despejar uma família nestas circunstâncias, deixando-a sem o teto que ajudava a
mitigar a fome. A moradia, embora pequena, foi adquirida pelo locador e doada à
locatária a título definitivo e sucessório, onde morou até ao fim dos seus dias.
Ao escrever esta crónica, vou refletindo sobre o
estado de impotência a que chegaram as autoridades e instituições deste país. É
uma pena, que com a imprescindível liberdade, não tivéssemos adquirido uma
responsabilidade madura, capaz de garantir as aspirações legítimas dos
cidadãos, sem descambarmos no laxismo, na permissividade e numa visão
assimétrica entre direitos e deveres. Quase quarenta anos de democracia, não
conseguiram consolida-la em toda a sua plenitude. Enquanto tivermos uma nação
burocratizada; emperrada por processos letárgicos; regida por leis ambíguas,
que permitem dualidades jurídicas entre grandes e pequenos; não temos um
sistema eficaz e credível, nem somos o estado de direito que almejamos ser.
Faziam cá falta, algumas qualidades, de alguns “Velhos regedores”…
Vítor
Silvestre
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