Estigmatizados por ribeirinhos pés descalços que
subiam ao ostracizado desterro para trocar fruta por batatas e vender sardinha,
os “pacóvios “da serra desenvolveram
um saber imprevisível, que inúmeras vezes desconcertou espíritos mais
esclarecidos.
Mandava a tradição que o cura, por cada funeral,
recebesse, da família do defunto, sete varas de linho e uma cabra. Quanto ao
linho não havia problema, a medida estava esclarecida; em relação ao animal, o
caso era mais complexo, para ser aceite apenas tinha que se segurar de pé. Como
é óbvio, os paroquianos escolhiam a rês mais fraca do rebanho para efetuar o
pagamento. Uma ocasião, o “Russito”
apresentou um caprino velho, escanzelado e com uma galha partida. O padre, ao
analisar o espécime, desclassificou-o quanto à idade e ao trapio, acrescentando
com desdém:
- Ainda por cima… só tem um corno!
Ao que o “Foiradas”,
no seu jeito habitual, respondeu:
-Pois, pois…Sr. Abade, o outro ainda “háde” nascer.
Os sacerdotes, por conhecerem o breviário, julgavam
estar em vantagem perante a iliteracia do povo, inculto em letras, mas
doutorado em manha, não se deixava levar com duas cantigas.
Certo pároco, contrariando o celibato, mantinha pacto
carnal com uma das ovelhas do seu rebanho. O pai da moça, ao saber das “barbas borradas”, foi ter com o pastor
e comprou-lhe cinquenta alqueires do cereal da côngrua. Centeio na caixa e
conta no rol, nunca mais deu satisfações ao credor até este o interpelar, no
sentido de liquidar a compra. O homem retorceu o bigode e disse-lhe
discretamente ao ouvido:
- Quanto é que o senhor acha que vale a honra da
minha filha?
O clérigo afitou as orelhas e dando um “desande” no calcanhar da bota,
retirou-se em silêncio dando o devido pelo “donzelio”
perdido.
A vida no campo era dura, trabalhar terras que mal
davam para patrões, quanto mais para caseiros, era ver o espetro da fome sentado
no preguiceiro. A maioria destes modestos proprietários estavam à espera do
leite da mungidura para merendar, se a vaca escouceasse o canado, lá ficava em
jejum. Poucos eram abastados o bastante para emprestarem dinheiro ao parceiro
subalterno. Não era o caso da viúva do Sr. Pinto que, para além das
propriedades do casal, tinha “na burra”
avultada quantia em dinheiro; fruto do engenho empreendedor do falecido para o
negócio e de um viver comedido, sem gastos supérfluos, que o tornaram, para os
padrões da época, num homem rico. Por conseguinte, adiantou determinada verba a um dos seus caseiros, sendo reembolsada
aquando da venda de um bezerro prestes a ir para a feira. O vitelo era de boa
raça e foi vendido por soma avultada, mas a patroa continuava sem ser
ressarcida. Até que um dia, tomou a iniciativa de puxar por contas ao amnésico
devedor, abordando o assunto com diplomacia:
- Ó Sr. António, o bezerro deu bom dinheiro.
- Deu!.. Sim senhora, foi bem vendido.
- Então, se calhar, já podia pagar o que me deve?
Ao que o “Toninho”,
movido por necessidades primárias mais prementes, respondeu com a simplicidade
de um leigo:
- 0h!...Mulherzinha de Deus, está a senhora a
preocupar-se com coisas que a mim nem me lembram.
A serra sempre foi farta em pastagens, as corgas
altaneiras fervilhavam de manadas e rebanhos, providenciando a principal fonte
de rendimento aos seus proprietários. O gado era vendido a intermediários
curtidos na arte que, invariavelmente, levavam a “parte de leão” do negócio. Porem, alguns autóctones tentavam
inverter este ciclo de ganhos assimétricos e faziam incursões pelo mester, sem
terem os cabedais necessários para ombrear com os parceiros. Como tal, a
necessidade aguçava o engenho, inventavam todo o tipo de manobras para resistirem
à concorrência.
O “Tiu Álvaro” era dos mais empreendedores
e astutos negociantes de ocasião. Quando vendia cabritos e cordeiros, mal o
comprador erguia a rés para lhe “apolegar”
o peso, imediatamente, de maneira sub-reptícia, puxava-lhe por uma pata
traseira para confundir o calculo da “balança”.
Noutra ocasião, comprou e vendeu a mesma cabra a um fulano de Cetos. Como
ardil, quando o enviado responsável pela compra notou a semelhança com a que tinham
vendido, disse convicto:
- É neta!... É parecida, porque é neta.
Subsistir era a palavra de ordem, a ínfima mais valia
era aproveitada sem olhar a quê, nem a quem. Por isso, o “Pitadas “da Panchorra aproveitou-se do cargo de regedor para “esfumaçar” português suave sem filtro,
a troco de reanimar o “Caganucho” que
tinha caído sem sentidos perante as ameaças de morte do Coelho de Feirão. A
cena foi passada na tasca do “Tiu
Domingos”, onde, às expensas do Zé Augusto, estava armada uma súcia de
vários dias que devorou um porco acabado de sair do chambaril e escouçou uma
carga de vinho. Perante a morte aparente do inanimado, o “Pitadas” pediu ao tasqueiro, com a ronha espelhada no rosto:
Ó Sr. Domingos deixe cá ver um cigarro…
Com a tocha acesa, depois de umas sôfregas fumaças,
arregaçou-lhe a manga da camisa e queimou a pele exposta. Imediatamente, o braço
furtou-se à fonte de calor, o que levou o examinante a proferir:
-Ele bem morto ainda não está…
Dê cá outro
cigarro… vamos experimentar numa perna, não vá ele estar “esquecido do corpo”. A tortura continuou, na razão de um maço, até
o homem dar sinal de vida por entre gemidos e ais, dando mostras de aparente
melhoria. Aproveitando o ensejo, o “Fumegar”,
na esperança de o por porta fora, inquiriu:
-Já está melhor?
Ao que o inquirido, acenando afirmativamente com a
cabeça, soltou um pronunciado gemido:
- Hummm…
- Você pode ir a pé?
-Hummm… (negativo).
- Então, quer ir a cavalo?
-Hummm (afirmativo).
- Está bem, venha cá, vamos aparelhar a burra.
Quando o “Caganhucho”
passou a ombreira da porta, já a botifarra do “Mijado” alçava-se para afincar-lhe um chuto no rabo, mas apenas
pontapeou o vazio, por milagre, o homem recuperou a saúde e escapuliu-se, como
um raio, por entre o casario.
Como diz o meu amigo Manuel Alves:
- Eu sou um homem sério!...Pago o que devo!...Se
tiver dinheiro…
Por vezes, a seriedade é condiciona por fatores
alheios às intenções e à natureza séria de cada um. Quando tudo é escaço, os
escrúpulos desvanecem-se, mesmo perante a juvenil inocência.
O “Troquinhas”,
indolente solteirão, acrescentava à pequena sorte que herdara o expediente de
veterinário e esfolador necrófago de gado miúdo. Quando perecia alguma rês por
moléstia, fatalidade, ou carecia de intervenção médico-cirúrgica, o “Tui António das Peis” era chamado para
tomar conta da ocorrência. No seu currículo consta a realização de uma
cesariana caprina e a abertura, com um fuso, do ânus de um cordeiro recém-nascido.
Mas, era na arte de “peliqueiro” que
os seus serviços eram mais solicitados. A troco do “fato” do defunto, providenciava enterro sanitário, para bem da
salubridade pública.
Nesta condição, foi procurado por dois jovens da
terra para esfolar uma raposa que encontraram morta. O “expert”, depois de analisar a peça, arrancou-lhe um tufo de pelo e
sentenciou desalentado:
- Está podre…é
uma pena… tem uma pele tão linda… o melhor é enterra-la…
Os rapazes levaram-na para o Cabeço das Rolas,
abriram a cova, mas quando se preparavam para o enterro o “Tonhato” interrompeu-os dizendo:
- Podeis ir embora, eu acabo o serviço, vou tirar-lhe
um bocado de pelo de um “coixõn” para
forrar uns tamancos.
Os moços abalaram e não pensaram mais no assunto, até
ao dia de Natal quando viram o “Tui
António” de samarra nova, adornada com uma magnífica gola de “raposa”.
Numa tarde quente de Agosto, estava o Sr. “Lixandre” Jorge da Silva, almocreve
reformado de uma vida experimentada, sentado na sombra dos degraus da sua casa,
acompanhado pela consorte “Dona Baronesa”, quando foram interpelados por
duas senhoras, testemunhas de Jeová. Depois de ouvir a retórica do costume, o
velho azemel tirou o lenço pataqueiro, limpou o bigode e, depois de uma breve
pausa, perguntou:
- As senhoras disseram que vinham para ajudar?
Ao que elas, perante o interesse demonstrado,
reiteraram com veemência:
-Com certeza, nos estamos cá para lhe prestar ajuda!
-Então calha bem, eu tenho umas batatas para
arrincar…as senhoras vão lá?
- Bem…não é a
esse tipo de ajuda a que nos referíamos…
- Eu sei, eu sei… se fosse no prato, com bacalhau…
Sem esperarem mais conversa, rodaram nos calcanhares
e foram profetizar para outra freguesia, ficando o “Vila Maior” a “rir-se para
trás das orelhas”, rematando com malicia:
- Ó Maria, aí vão elas!
Haveria mais a contar, mas penso ter dado uma amostra
da dita “esperteza serrana”. Talvez,
não divergisse muito da saloia, pois era uma esperteza efémera que carecia de
substância para ter um efeito efetivo na melhoria das condições de vida dos
seus detentores, mas dava para desenrascar.
Vítor
Silvestre
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