“O dos Terços”, meu tio-avô,
foi uma das mentes mais perturbadas que existiram na Gralheira. Sofria de um tipo
de psicose em que acreditava estar possuído pelo diabo, e só através da oração
e sacrifícios flagelativos podia extirpar o espirito demoníaco que o
atormentava. Para o efeito, ia a desoras para a Igreja: onde em novenas e rezas
constantes, com vários terços enrolados na cabeça, penitenciava as faltas
imaginárias.
Certa ocasião, o “Tiu Tobias”
levantou-se de madrugada para ir a uma feira, quando passava pelo adro, ouviu
um restolhar próximo de uma das esquinas da igreja, nesse instante, as nuvens
descobriram o céu e a luz do luar projetou no campanário uma imagem fantasmagórica,
acompanhada de um aviso gutural:
-Fugiiii!...Que eu aí vouuu!
O homem, estarrecido pelo medo, deu meia volta e tornou para “Valdemantas”.
Para evitar tais sustos e pela cautela de ele não atear algum incêndio
no templo, resolveram retirar, durante a noite, a chave do habitual postigo
onde era depositada. Mas o meu parente, não era tão tolo como parecia, conseguiu
tirar o molde à fechadura e reproduzir uma cópia em pau de urgueira,
contornando o impedimento de expiar os pecados.
Apesar da vida quase monástica que levava, o espetro do mafarrico era
uma constante. Quando chegava a um serão, se ia com algum companheiro, pedia
sempre licença para três, sendo que o terceiro era o “Tal Amigo”. Como tal, vivia obcecado com a ideia de se submeter a
um exorcismo. Como não havia padre que reconsiderasse tal ato, a rapaziada, de
conluio com a família, disseram-lhe que estava de passagem um sacerdote e
estaria disposto a exorciza-lo. Então, no dia combinado, o Isidro vestiu uma combinação,
pegou num velho missal e em “porlatim”;
perante o olhar devoto e submisso do pertenço possuído, prostrado de joelhos e
de mãos erguidas; libertou-lhe a alma do tormento satânico que padecia. Finda a
prática, perguntaram-lhe:
-Já te sentes melhor?
Ao que o recém- exorcizado respondeu confiante:
- Muito melhor!...Sinto uma grande força dentro de mim.
Para testar essa potência súbita, puseram-lhe às costas a porta do
forno, que era de pedra e pesava bem duas arrobas, mais dois companheiros saltaram-lhe
para o cangote e o homem não dava sinais de fraqueza.
Mas, quem tolo nasce, tolo morre. Cismou que tinha de finar-se aos
trinta e três anos, idade com que morreu Cristo. Para o efeito, foi para a o
ribeiro na Varzeada e lancetou um braço. Enquanto o sangue fluía, dizia para
consigo:
- Olha como a água vai vermelha, com o sangue do rapaz…
Acudiram a tempo, antes de se esvair. Mas, nada podiam fazer quando
decidiu deixar de comer e perecer por inanição. Morreu, imitando o redentor, em
ano marcado, mas a imitação ficou por aí, pois não creio que tenha
ressuscitado.
Outro tolo emblemático, também meu parente afastado, foi o “Tolo da Fonte Torno”. Passou assim à
história, por ser maluco e por viver no lugar que lhe deu o nome. Era de
família abastada, o que lhe permitia não trabalhar e passar o tempo a observar
os seus conterrâneos, para, tal como os malucos, dizer tudo o que entendia,
expondo publicamente os seus segredos e fraquezas.
Numa ocasião, quando o sacristão acendia as velas do altar, reparou
num ligeiro tremor ao realizar a tarefa. Para espanto dos presentes, em plena
eucaristia, ouviu-se uma voz que emergia do coro da igreja:
-Treme-te a mão para acender a cera?...mas não te tremeu para comer
sete talhadas de carne, na minha cavada da Varzeada...e cavar... cavassem os outros!
A missa era um local propício a este tipo de comentários, pois todas
aquelas pessoas, crentes por vocação, não falhavam às celebrações litúrgicas.
Logo no adro estavam sujeitas aos comentários cáusticos do da Fonte Torno, que
ao ver as Cardosas de chapéu novo e afidalgado, achou que era mais aparência do
que substância e disse, sem papas na língua:
- Olha as Cardosas!.. De chapéu…e com a barriga a tocar viola…
Não sei se foi por causa destes e doutros episódios que, na Gralheira,
costuma ouvir-se dizer:
- Com tolos?...Nem prá missa!
O último amalucado a ter assento no pódio é o Serafim da Portela. Tal
como o segundo, também incorporou no nome o lugar onde habitava.
Contou-me o “Peixe”, que tinha duas manias muito peculiares. Não podia
ouvir burros a zurrar e não admitia que lhe dissessem a palavra rilha.
A rapaziada, sempre há procura de divertimento, entretinha-se acirrar
o pobre Serafim com a conjugação do verbo rilhar. Ele perseguia-os que nem cão
de fila, de navalha em punho, mas o vigor da mocidade impedia que fossem
alcançados. No entanto, numa ocasião, não se distanciaram o suficiente e foram
vistos a esconderem-se num palheiro. Vendo-se descobertos e encurralados, a
maioria aninhou-se debaixo da palha, apenas um tal “Pinante” teve agilidade para se empoleirar na tesoura que
reforçava o cume. Numa fúria tresloucada, o Serafim começou a distribuir
navalhadas na forragem macia, enquanto o empoleirado continuava acicata-lo com
a palavra maldita:
-Rilha!
Na tentativa de silenciar a voz que o atormentava, redobrava esforços
para enterrar a lâmina nos corpos que se contorciam na tentativa de se furtarem
aos golpes. Quando fazia uma penetração mais profunda, dizia triunfante:
- Este já está!
Assim continuaram, até que o “Pinante”, para livrar os companheiros
daquele aperto, deu um salto para a porta e pronunciou um estridente:
- Riiilha!
O Serafim, ao vê-lo entre as ombreiras, largou atrás dele, dando aos
outros uma oportunidade para se escapulirem.
Alguns mais haveria para serem
mencionados nesta crónica, mas estes, são aqueles em que o tempo já se
encarregou de fazer história.
Bem vistas as coisas, muitos dos tolos não são mais insanos que os
demais, apenas se diferenciam da maioria…
Vítor Silvestre
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