quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A Padaria André


A padaria, sem o André, não teria existido, mas, sem ela, também o seu nome não passaria de uma esbatida recordação de família. O objeto e o sujeito fundem-se numa unidade indivisível, onde as partes e o todo são indissociáveis. Ainda hoje, o edifício ostenta o nome do fundador.
O André, natural de São Martinho de Mouros, casou-se com a “Picota” de Vale de Papas, aldeia vizinha da Gralheira. Talvez, devido a esta proximidade, o seu intuito para o negócio alertou-o para o potencial daquela freguesia, intersetada pelas rotas dos transeuntes que percorriam a serra. Aí se estabeleceu, de princípio, com uma rudimentar panificação, onde a cobertura de colmo e ao baixo pé direito propiciavam pequenos focos de incendio, rapidamente extintos pela pronta intervenção dos vizinhos. O negócio prosperou, permitindo ao “Copas” os meios necessários para mudar de instalações. Reabriu num espaço mais amplo e com melhores condições para desenvolver a atividade em moldes, para a época, considerados modernos.
 O “Copas” detinha um saber de experiencias feito, quando a sorte, personificada pelo racionamento da segunda grande guerra, lhe bateu à porta, reuniu as duas premissas necessárias para o sucesso. Durante esse período de escassez, a padaria funcionava quase de forma ininterrupta para satisfazer a clientela que, dia e noite, aguardava pela cozedura da fornada. Nada era desperdiçado, todas as varreduras, incluindo ciscos e teias de aranha, eram aproveitadas para fazer a “Róla”: pão escuro e cilíndrico, confecionado com farelo, tão compacto, que dizia o “Barras”:
-Ele comer, ainda se come, mas caga-lo… é que é o diabo!
Tal indústria gerou proventos que permitiram ao proprietário, aquando da “missa nova” do padre Ilídio, empoleirar-se na cadeira e, apesar dos puxões da consorte nas abas do casaco, discursar para os convivas, iniciando assim a oratória:
-Eu sou o homem mais industrial da Gralheira!…
Para fazer jus ao autodenominado e merecido estatuto, comprou, apesar de não ter licença de condução e a estrada distar dez km, um automóvel que estacionava em Bigorne e era conduzido pelo “Tanguinha”, que estava habilitado pela carta de condução militar. Quando queria ir a Lamego, tinha de montar a cavalo até essa localidade, mas já não sofia com as contingências do serviço da carreira que era reduzido e, se visse lotada, não garantia o transporte. Também foi o responsável pela primeira telefonia lá da terra. Como não havia eletricidade, era alimentada por uma bateria que, amiúde, tinha de ser recarregada. Por sorte, podiam contar com o estafeta “fira” que diz ter percorrido, carregado e a corta mato, a distância de vinte km, dez para cada lado, nuns impressionantes noventa minutos… (que jeito nos teria dado nas olimpíadas). Como era o único rádio da freguesia, os ouvintes tinha que pagar cinco coroas para poderem escutar o relato da bola. Mal assomavam à porta, logo o “Copas”, rolando o polegar sobre o indicador, dizia ligeiro:
- “Croas!...Croas”!
A rapaziada, “tesa que nem pinheiros” e revoltada com tanta usura, resolveu pregar uma partida ao usurário. Munidos de “peidos engarrafados”, bateram à porta e mal esta foi aberta, quando o das “Croas” iniciava a ladainha, o “Toninho” esmagou-os contra o soalho e afastou-se. Ao aperceberem-se do sucedido, o “Copas” e o seu filho Zeca tentaram retaliar, mas só conseguiram caçar o funil, usado como megafone, com que o “Manquito “tocava a reunir”. Na posse do artefacto, cerraram a porta, suportando o mau cheiro e ignorando os pedidos de devolução do mesmo por parte dos sitiantes que, às páginas tantas, tentaram invadir a residência usando um temão de arado como ariete. Perante esta ameaça, o megafone foi lançado por uma janela para serenar os ânimos e evitar consequências mais gravosas, mas a taxa das “croas”não foi abolida.
O local, para além da função a que se destinava, também funcionava como taberna, improvisada e, de vez em quando, como casa de espetáculos, organizando bailes e “descantes” muito concorridos. Num desses eventos, os da Panchorra, armaram uma zaragata ao seu estilo. A tática, executada com uma precisão digna da Mossad, decorreu nestes termos: a primeira paulada foi no petromax que iluminava a sala, seguindo-se metódicos ataques a alvos previamente selecionados, deixando, no exterior, dois elementos a flanquear a saída para cobrirem a retirada. Os agredidos, desprevenidos e imersos na escuridão, nem tiveram tempo de dizer um “aí jesus” antes de receberem os primeiros golpes. Mal refeitos da surpresa, tentaram ir no encalço dos atacantes que se escapuliam para a rua, mas eram barrados pelos guardiões dos umbrais que, estrategicamente colocados, impediam a perseguição. Para contornar esta oposição, o “crioilo” esgueirou-se pelas traseiras, tentando surpreende-los pela retaguarda, mas esquecendo-se do tanque que, ao nível do solo, existia no quintal, viu gorados os intentos ao caiu na ratoeira. Desta forma, puderam os “panchorros” retirar com ordem e sem problemas de maior. A única oposição com que poderiam ter sido confrontados foi esboçada pelos “destemidos” “Troquinhas” e “Pilatos”, que não estavam na folia. Ao aperceberem-se do sucedido, muniram-se de sachos e foram espera-los para a portela, mas, por sorte ou por juízo, o caminho onde se emboscaram não foi o trilhado pelos fugitivos.
A padaria continuou pujante, com o André explorar todo o seu potencial. Aceitava pagamentos em géneros e assentava no rol os consumos da juventude que, na ausência de dinheiro, lá ia pagando com um alqueire de cereal, uma dúzia de feno ou outros artigos, desviados de casa, que pudessem ser capitalizados.
Tudo correu na perfeição até à morte do dono, quando este partiu os sucessores não estavam à sua altura, nem cientes da nova realidade que se avizinhava, como uma ave desasada, a padaria definhou e morreu. Ainda me lembro da demolição do forno, uma interessante obra de engenharia, e da requalificação do espaço para habitação.
Resta, qual epitáfio de uma lápide amarelecida pelo tempo, a inscrição gravada na parede e na memória:
Padaria André.
Vitor Silvestre

domingo, 25 de novembro de 2012

As minhas origens



Embora tenha nascido no Porto e aí residido o primeiro quartel da minha vida, não estando em causa os laços afetivos que me unem ao cinzento granítico daquelas ruas e fachadas, é na alcantilada e agreste Gralheira que se encontra a essência da minha naturalidade.
A cidade, qual companheira fiel, proporcionava experiência e saber, abrindo-me os horizontes da modernidade, mas a aldeia era a saudosa amante que me arrebatava a alma, num indizível deleite libertino. A minha infância e juventude foram vividas num mundo de dois hemisférios, que me proporcionaram uma ambivalência de vida inalienável da minha personalidade.
Podemos ser de onde nascemos e vivemos, mas, acima de tudo, somos de onde são as nossas raízes. Como as minhas, até ao limite da memória, são gralheirenses, um apelo ancestral percorria atento o calendário, numa ânsia desmedida para retornar ao pó das suas origens.
Quando terminava a escola, um dia antes, viajava de autocarro até Cinfães e, para não ter que aguardar pela ligação às Portas, apanhava boleia nos camiões de areia até à Carvalhosa, fazendo os restantes sete km a pé. A chegada era sempre efusiva, com os abraços saudosos da família e a árdua tarefa de cumprimentar uma freguesia inteira, antes de poder desfrutar da companhia dos amigos e companheiros de travessuras. Embora fosse benquisto pela maioria, apreciadora do meu carater jovial e traquina, havia vozes dissonantes que, sem me pronunciarem o nome, diziam apreensivas:
-Já cá está o do Carlos…
O Nelo, como sou conhecido, era o suspeito crónico de todas as anomalias ocorridas no povoado. Algumas vezes, fui responsabilizado pelo que não fiz, mas, na maioria dos casos, era culpado e nem a defesa acérrima da minha tia Maria “Sapa ”conseguia um alibi credível, capaz de me ilibar do delito cometido. As “judiarias” eram mitigadas pela maneira como comungava com comunidade: partilhava a sua forma de vida, comunicávamos na mesma língua; não me olhavam como um elemento estranho, era diferente entre iguais. Os “lisboetas”; como denominavam os filhos do êxodo rural, ainda que não residissem na capital; com os “chês” do seu linguajar, os arrivistas modos citadinos e o ócio estival, eram mal aceites pelos autóctones de falar áspero e rude, que mourejavam à torreira do Sol e não compreendiam o direito às merecidas férias, intitulando-os como malandros. Esta visão dicotómica originava, ao nível da juventude, uma clivagem entre os da terra e os de Lisboa. Eles apenas nos ignoravam, passavam os dias na “piscina” de papo para o ar, na companhia de raparigas de estética mais cuidada, que não cheiravam a feno e, supostamente, permitiam liberdades mais ousadas do que as “nossas”. Por isso, assediávamos os bailes à porta fechada e apedrejávamos o vazio da noite, não só com o intuito de destabilizar essa vivência idílica, mas pelo prazer emotivo da rebeldia adolescente.   
 Logo à chegada, apresentava-me ao meu tio Herculano e acompanhava-o, diariamente, no amanho das terras e no trato das vacas, convertendo-me no filho que nunca teve. Embora fosse meu padrinho, nunca o tratei dessa forma, mas foi o único homem da família, pra além do meu pai, a quem sempre beijei a face. Esse cumprimento emanava de um afeto que não carecia ser dito, estava impresso em cada palavra, em cada gesto, numa simbiose inquebrantável. Tudo fazia para satisfazer as minhas vontades, mesmo que fossem um pouco precoces para um miúdo de seis anos. Para o efeito, deslocou-se ao Porto e comprou uma gadanha nº20 que encabou no cabo feito por medida, para que eu pudesse cortar erva. Dirigiu-se à rua do Almada e, numa das múltiplas casa de ferragens, perguntou ao ferrageiro:
-Quanto custa esta gadanha?
- Mil escudos.
Ao escutar a cifra, arremessou o objeto pra o balcão e, perante a estupefação do caixeiro, disse convicto:
- Tome-a lá, que não presta!
 Confuso, o homem questionou indignado:
-Não presta!...Então porquê?
-Porque é muito barata!
Um destes utensílios, na Gralheira e arredores, andava pelo dobro desse valor, como tal, achou ser de qualidade inferior. O experiente comerciante teve de explicar-lhe os trâmites da infanção que o produto sofria desde que era ali comprado, até ser vendido pelo intermediário na sua loja do interior.
Assim fui crescendo por entre fragas e penedos, desfrutando de uma liberdade periódica que nunca sucumbiu às tentações citadinas da juventude. Com outros da mesma laia, passávamos a aldeia a pente fino em noites de folia irreverente que, não raras vezes, com o amanhecer causavam celeuma no largo dos Carvalhos, onde vozes ressentidas comentavam:
- Banaboias...
Nem sempre as noitadas eram desse teor, também eram adornadas por arruadas canoras e serenatas românticas a donzelas de recolher obrigatório ao toque das trindades.
Hoje, passo menos tempo na Gralheira: a pacatez bucólica do passado foi substituída pelo ruido dos motores e a azáfama sazonal de forasteiros; quase não há vacas e a agricultura é residual; os amigos de infância dispersaram-se pelos caminhos da vida e os reencontros são esporádicos; o meu filho e os amigos, infetados com a doença do ecrã, não aproveitam o potencial que aquela natureza lhes oferece; muitos, já nem sabemos quem são, antes de perguntar como é hábito por lá:
-Tu de quem és?
 Quase me sinto um estrangeiro dentro da minha própria terra.
A evolução tecnológica transformou o planeta numa aldeia global, somos cidadãos do mundo, podemos pertencer a toda a parte, mas quem reconhecer as suas origens, saberá sempre onde é o seu lugar.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O desejo da carne



Quando intitulo esta crónica, faço-o no sentido literal da expressão, qualquer conotação bíblica é uma mera coincidência. Este desejo proteico, para a minha geração, só fará sentido se recordamos o bife com batatas fritas da nossa infância. Mas, para as que nos antecederam, nem vulgarização do seu consumo consegue olvidar a abstinência passada.
 Ainda sou do tempo, em que os meus conterrâneos davam valor ao frango assado e à marrã que, ocasionalmente, comiam nas feiras e romarias. Porque em casa, o bacorito mal cevado tinha de ser regrado com parcimónia, para que não sobrasse muito ano ao vazio da salgadeira. Os mimos do suíno, enchidos e presuntos, eram guardados para a força do trabalho, cabendo às talhadinhas de suã, enquanto as houvesse, o papel de adubar as batatas com “carne frita”. Galináceos eram reservados para convalescer uma parturiente, ou um enfermo, como o meu avô António: quando o seu corpo roliço, que lhe valia a alcunha de “Sapo”, pedia melhoria de rancho, dava parte de doente. “Carne fresca”, caprina ou ovina, só em dias de festa, assada no forno a lenha e acompanhada com arroz tostado no alguidar. Outras reses, vacas e bezerros, desempenhavam um papel económico que ia além da alimentação dos seus proprietários; apenas lhe “passavam pelo estreito” se fossem vítimas de algum acidente mortal, ou incapacitante que força-se o abate.
Repastos desse género ficaram nas memórias infantis daqueles, já septuagenários, que, por providência divina, desfrutaram da morte de duas vacas do “Escudela”, fulminadas por um raio. Como foram sangradas em tempo útil, as carcaças foram retalhadas e vendidas na freguesia e arredores, para mitigar o prejuízo. Não que, na Gralheira, houvesse falta de bocas para devorar os dois bovídeos e mais que fosse, mas as bolsas era inversamente proporcionais ao apetite dos consumidores.  
Apetite que, embora voraz, era escrupuloso ao ponto de enjeitar o consumo de uma vaca e uma cabra, também vítimas da trovoada, por não terem sido sangradas, retendo a carne os fluídos corporais. Quem apascentava os animais era o “Mistoso”, também afetado pela descarga elétrica, tendo dificuldades em regressar para contar o sucedido. Ao retornar para enterrar os cadáveres, depois de indagar-lhe a localização, dizia o seu tio arreliado:
- Ora porra!..Tinham, logo, que morrer naquelas fragas...vamo-nos ver “cozidos” para arrastar a vaca.
Qual não foi o espanto, quando chegaram ao local, só lá encontrarem pele e cornos, todo o resto tinha desaparecido. Incrédulos, retrocederam ao caminho, mas quando chegaram à portela de Tejosa, avistaram uma fila de pessoas que subia a Costa Carreira carregados que nem azeméis, desfazendo as dúvidas quanto ao destino das carcaças. Os da Panchorra pouco se importaram com rubor ensanguentado da carne não purgada, como formigas recolectoras transportaram o que podiam para encher panelas e estômagos vazios.
Mais recentemente, já em época mais farta, ainda perduravam os resquícios passados. Estava eu com o meu primo “chinês” no alto do Portal Mafala, quando me apercebi da proximidade das suas vacas com as do Alcindo de Cotelo. Como o confronto parecia iminente, alertei-o de para o facto:
“Chinês”!...Vai lá, que as tuas vacas vão lutar com as do Alcindo!
Para meu espanto, o rapaz, mais novo alguns anos, reagiu com uma calma que desafiava a sua imaturidade:
-Não faz mal…eu até queria que elas lutassem e uma das dele morresse.
Surpreendido, perguntei-lhe, franzindo o senho:
-Para quê?
Ao que ele, calmamente, esclareceu:
- É que depois, o meu pai, par ajudar o Alcindo, comprava muita carne para comermos em casa; como aconteceu: quando, a minha “Cabana”, no Portaporca, matou, com uma marrada, uma da Panchorra.
Soltei uma gargalhada, e ripostei com o triunfo de quem iria desarmar-lhe o raciocínio:
- Então, se morre uma das tuas?
Ao que aquele pirralho, frio e calculista, concluiu:
-Se fosse a minha…ainda comia mais.
Na ocasião, este diálogo apenas me divertiu, mas refletindo um pouco no assunto, podemos extrapola-lo para conclusões mais abrangentes sobre as condições económicas e sociais das gerações dos hidratos de carbono. Com a melhoria per capita dos rendimentos, a alimentação tornou-se mais variada e rica em proteínas animais, o que contribuiu para uma alteração fisionómica relevante nas gerações mais recentes. Somos mais altos, aproximamo-nos das médias do centro-norte da europa, mas também somos mais gordos. A globalização do fast-food, aliada a hábitos mais sedentários, transformou a obesidade num problema crescente das sociedades ocidentais. Segundo um estudo recente, os excessos alimentares do mundo desenvolvido causam mais óbitos que a insuficiência alimentar dos povos carenciados.
Portugal não possui recursos bastantes, nem uma política agrícola que promova diminuição da dependência externa. As nossas reservas são os cargueiros que estão atracados nos nossos portos. Beneficiamos de uma posição geográfica que nos insere num contexto alimentar excedentário, mas se for interrompido por alterações que restrinjam a produção ou a logística mundial, ver-nos-emos confrontados com necessidades alimentares, muito para além:
Do desejo da carne…
Vitor Silvestre

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A demanda da lenha



Desde a utilização do fogo, a humanidade busca fontes de combustível que supram as carências energéticas, constantes e crescentes, das suas sociedades. Hoje, existe uma panóplia de alternativas, mas nenhuma se assume como a solução definitiva para colmatar esta dependência inalienável do progresso, garantindo a sustentabilidade do planeta. Renováveis ou findáveis, todas se assumem como indispensáveis, desde os primórdios, para assegurar necessidades básicas à nossa sobrevivência e conforto.
A Biomassa, por estar “à mão de semear”, foi, e continua a ser, o ancestral recurso de uma fração significativa da população mundial. Embora se encare como uma alternativa para produzir, em centrais modernas, energia resultante dos resíduos florestais, em locais remotos, ou desfavorecidos é o recurso primaz dessas franjas da civilização.
Dito isto, é de espantar, para os menos informados, que na Gralheira e afins, na segunda metade do Séc. XX, a madeira continuasse a ser o único combustível disponível paral acender a lareira, onde cozinhavam todo o ano e se aqueciam do longo frio invernal. Essa necessidade incontornável transformava-a num produto muito procurado e ciosamente guardado pelos proprietários rurais. Os que não possuíam terras viam-se obrigados a arrebanhar o que podiam pelas rebuscadas bordas dos caminhos, ou surripiar as propriedades alheias. As “Molheiras”, diariamente, vasculhavam os montes baldios na esperança de recolher um feixe de chamiços que, atados por um vencilho, transportavam à cabeça. Algumas, em desespero de causa, arriscavam-se a suportar a ira dos donos das giestas furtadas, vitais à sua subsistência.
Na Gralheira, entre conterrâneos, os roubos eram esporádicos. Quem não tinha: podia sempre contar com a solidariedade do vizinho, em troca de algum trabalho braçal; ou comprar umas carradas em Vale de Papas, onde os matos eram abundantes e os cavadores de boa cepa. O produto excedentário dos papenses era arrematado à saída da missa, na Gralheira, pela módica quantia de vinte e cinco tostões a carrada. Não era um bom negócio para quem vendia, pois os gralheirenses tinham engenho e vacas para transportar numa viagem mais do que os vendedores podiam imaginar.
Contou-me o “Peixe”, que num desses negócios, dizia uma das partes:
-São quatro carradas, quanto queira carregar!
Ao que a outra, depois de avaliar as rimas, disse pensativo:
- É uma…
Começou a tarefa e, perante o espanto do dono da lenha, quando terminou, tinha as piornas negrais todas “encarreoladas”, comentando para consigo:
- Ainda “botava” mais algumas…
Perante tal desfaçatez, o homem despiu o casaco e, como que possuído por uma força sobre-humana, arrancou à mão umas quantas e disse sentencioso:
- Carregue à vontade!.. Comigo não faz mais negócio!
Os da Panchorra eram a principal ameaça às reservas lenhosas da freguesia vizinha. Os seus escassos e mal repartidos recursos, obrigavam-nos a delapidar a fronteira de tudo o que pudesse arder, quer estivesse em pé ou arrancado. Quando faziam alguma cavada nessa zona, se lá deixassem a lenha, ao abrigo da noite, nem as “firmas” escapavam. Mesmo durante o dia não se coibiam de fazer incursões de rapina, desafiando quem os repreende-se.
Numa ocasião, na lameira do “Bague” do vale, estava o “Bravo” a esgalhar-lhe um carvalho, quando este o surpreendeu e, com propriedade, interpelou-o:
- “Bague”!...Então isso não tem dono?
O meliante, atrevido e destemido, sem proferir uma palavra, arremeteu contra o adversário de cutelo em riste, julgando que este se acobardaria. Mas, o “Bague” era forte e valente e, confiando nas suas capacidades, aguardou o ataque do inimigo sem pestanejar. Quando este tentava desferir-lhe uma cutilada, saltou para o interior do raio de ação do cutelo e, com uma chave de braço, derrubou-o, pressionando-lhe o diafragma com um joelho. O agressor revirou os olhos e, soltando um urro agonizante, prostrou-se inerte no solo. O “Bague”, depois de refeito da descarga de adrenalina, comentou preocupado:
- Aí, se calhar, matei o raio do “home”
E foi para a Fraga da Roçadas até ele se reanimar, pegar no cutelo e deixar a ramagem cortada, para levar noutro dia.
Atualmente, com a introdução dos fogões a gás e do aquecimento a fuel, este recurso perdeu importância, mas não deve ser descartado. Quando vejo venderem-se lotes de árvores por um punhado de euros, que pouco acrescentam à bolsa de quem vende, e oiço argumentos como:
-Não serviam para nada!
Assiste-me o direito de discordar. Uma árvore serve muito mais que os interesses de senso comum. Mas, pensando nesses, num futuro de valores energéticos crescentes, poderemos ter que retornar:
À demanda da lenha…
Vitor Silvestre

sábado, 6 de outubro de 2012

Os Manga de alpaca



Esta expressão, estatutária dos burocratas do funcionalismo público, tem caído em desuso ao longo do tempo. Era usada no sentido pejorativo, por aqueles que se viam enredados no marasmo de um sistema complexo e moroso; agravado pela sobranceria e incompetência de muitos funcionários, ensoberbados na importância de um cargo mal pago, mas respaldado pelo edifício do estado.
 Todos estes predicados funcionavam na razão inversa à dimensão do meio em que se inseriam. Por conseguinte, nos concelhos do interior, onde a bitola era nivelada por baixo, o Manga-de-Alpaca ascendia a um estrato social desfasado das suas reais possibilidade. Mas, o que lhe escasseava em recursos, sobejava-lhe em influência. Os pobres e simples munícipes viam-se coagidos a bater com os pés às portas dos gabinetes para verem satisfeitas as suas legítimas pretensões. Bater da forma habitual, era sinal que vinham de mãos a abanar e, sem peita, não havia serviço. Comunicavam com enfado, depois de indagarem de onde vinham, como se estivessem muito atarefados:
- Há… é da Gralheira, há lá bom fumeiro!... Venha cá amanhã, que talvez se consiga tratar do assunto.
Por norma, era assim que as coisas se passavam, mas nem sempre se deparavam com simplórios fáceis de convencer, alguns tiveram arte para contornar o sistema organizado.
O meu tio Amadeu estava colocado na base aérea do Negaje, em angola, a cumprir o serviço militar. Quando veio de licença, foi a Cinfães tratar do subsídio que o estado concedia aos pais dos militares no ultramar, para agregados de baixos rendimentos. Porque a farda branca era a melhor roupa que possuía, ou por julgar que lhe daria algum estatuto, foi uniformizado. A sua entrada da Câmara gerou algum alvoroço, pois foi confundido com um qualquer fiscal da administração central. Os mais jarretas soergueram-se de óculos na ponta do nariz, para avaliar o recém-chegado. Quando perceberam o engano, aliviados, deixaram-se cair nas cadeiras de braçais, transmitindo aos colegas o que tinham constatado:
-Não é nada!...é só um tropa a requerer uma coisa qualquer…
O meu tio foi ignorado, até que, por curiosidade, lhe perguntaram onde estava colocado. Naquela altura, o comandante da base angolana era o Sr. General Garcia de Resende, cinfanense de elite, influente e respeitado. Então, quase de improviso, teve esta resposta:
- Estou na Base do Negaje. Sou o impedido do comandante.
Ao ouvirem isto, disseram quase em uníssono:
-Está aqui o impedido do Sr. General!... Vão chamar o irmão!...Faça favor de entrar!..
Todas as portas se abriram, desvaneceram-se entraves e mordomias, sendo o pedido despachado a toque de caixa.
O meu tio não era o impedido, mas conhecia bem o comandante, devido às funções sacristas de coadjuvar o capelão da unidade. Não foi difícil satisfazer a curiosidade daqueles lambe-botas e regressar a casa com o assunto resolvido.
Este episódio foi um exceção à regra, mas o que vou narrar de seguida assume um aspeto extradimensional. Quem o contou foi o protagonista, jurando por tudo que foi real. Vou relata-lo, porque se não foi verdade, pelo menos parece-me verosímil.
O “Necas” foi criado pelo avô materno, o Carriço, proprietário e homem de negócios. Como tal, tinha que pagar a décima dos bens que possuía. Contava o neto a idade de catorze anos, mandou-o a Cinfães pagar o imposto que era devido. O rapaz montou-se na égua e foi à sede do concelho cumprir a incumbência que lhe foi confiada. Dirigiu-se à respetiva repartição da câmara, aguardou durante todo o dia, mas a passividade dos funcionários não permitiu saldar a dívida. Retornou na semana seguinte e, pelo andar da carruagem, as coisas encaminhavam-se para o desfecho de há oito dias: a lassitude do jornal, o bocejar indolente, o torpor das conversas monocórdias e a fila que esperasse pela sua vez. Estava o “Necas “ neste impasse, quando dele se abeirou um senhor de certa idade, tão discreto, sóbrio e cinzento como o sobretudo que trajava, e perguntou-lhe com voz de velha:
-Ó meu menino, o que fazes por aqui?
O rapazote lá contou a sua história, lamentando-se que já era a segunda vez que ali estava e, pelos jeitos, não seria a última.
O homem escutou, e, sem dar resposta, dirigiu-se ao interior do balcão, de onde foi escorraçado sem delongas, por um funcionário que nem se dignou a levantar os olhos do pasquim, com uma mal-humorada advertência:
-O senhor ponha-se na fila e aguarde pela sua vez!
O enigmático desconhecido retirou-se, mas, para espanto dos utentes e infortúnio dos amanuenses, regressou acompanhado pelo cabo da guarda, mandatado para prender todos os responsáveis pelo serviço, inclusive o presidente. Perante o olhar incrédulo e estarrecido dos Manga- de- Alpaca e a estupefação dos contribuintes, disse com autoridade:
- Podem ir embora, por este ano a contribuição está paga!
Ainda aturdidos pelo desenrolar dos acontecimentos, ninguém tugiu, nem mugiu. Apenas o “Necas ”,movido pelo verdor dos anos, ousou perguntar:
- Então, se o meu avô quiser saber quem assume essa responsabilidade, o que lhe digo?
Pondo-lhe a mão no ombro, disse de forma calma e pausada, em jeito paternal:
- Meu menino…diz ao teu avô que foi o Salazar.
Posso imaginar o assombro que provocou esta revelação. Não sei as sequelas administrativas deste acontecimento. O “Carriço”, tal como nós, teve dificuldade em aceita-la de ânimo leve. Na primeira oportunidade, foi pessoalmente confirmar a versão que lhe foi contada, vindo plenamente esclarecido.
Não sei se haverá alguém, para além do “Necas”, que tenha conhecimento desta história e possa corrobora-la, mas a ser verdadeira, podemos concluir:
Ainda hoje, para muitos Manga-de-alpaca, era cá preciso um Salazar.
Vítor Silvestre