A padaria, sem o André, não teria existido, mas, sem ela, também o seu nome não passaria de uma esbatida recordação de família. O objeto e o sujeito fundem-se numa unidade indivisível, onde as partes e o todo são indissociáveis. Ainda hoje, o edifício ostenta o nome do fundador.
O André, natural de São Martinho de Mouros, casou-se
com a “Picota” de Vale de Papas, aldeia vizinha da Gralheira. Talvez, devido a
esta proximidade, o seu intuito para o negócio alertou-o para o potencial
daquela freguesia, intersetada pelas rotas dos transeuntes que percorriam a
serra. Aí se estabeleceu, de princípio, com uma rudimentar panificação, onde a
cobertura de colmo e ao baixo pé direito propiciavam pequenos focos de
incendio, rapidamente extintos pela pronta intervenção dos vizinhos. O negócio
prosperou, permitindo ao “Copas” os
meios necessários para mudar de instalações. Reabriu num espaço mais amplo e
com melhores condições para desenvolver a atividade em moldes, para a época,
considerados modernos.
O “Copas”
detinha um saber de experiencias feito, quando a sorte, personificada pelo
racionamento da segunda grande guerra, lhe bateu à porta, reuniu as duas
premissas necessárias para o sucesso. Durante esse período de escassez, a
padaria funcionava quase de forma ininterrupta para satisfazer a clientela que,
dia e noite, aguardava pela cozedura da fornada. Nada era desperdiçado, todas
as varreduras, incluindo ciscos e teias de aranha, eram aproveitadas para fazer
a “Róla”: pão escuro e cilíndrico,
confecionado com farelo, tão compacto, que dizia o “Barras”:
-Ele comer, ainda se come, mas caga-lo… é que é o
diabo!
Tal indústria gerou proventos que permitiram ao
proprietário, aquando da “missa nova” do padre Ilídio, empoleirar-se na
cadeira e, apesar dos puxões da consorte nas abas do casaco, discursar para os
convivas, iniciando assim a oratória:
-Eu sou o homem mais industrial da Gralheira!…
Para fazer jus ao autodenominado e merecido estatuto,
comprou, apesar de não ter licença de condução e a estrada distar dez km, um
automóvel que estacionava em Bigorne e era conduzido pelo “Tanguinha”, que estava habilitado pela carta de condução militar.
Quando queria ir a Lamego, tinha de montar a cavalo até essa localidade, mas já
não sofia com as contingências do serviço da carreira que era reduzido e, se
visse lotada, não garantia o transporte. Também foi o responsável pela primeira
telefonia lá da terra. Como não havia eletricidade, era alimentada por uma
bateria que, amiúde, tinha de ser recarregada. Por sorte, podiam contar com o
estafeta “fira” que diz ter
percorrido, carregado e a corta mato, a distância de vinte km, dez para cada
lado, nuns impressionantes noventa minutos… (que jeito nos teria dado nas
olimpíadas). Como era o único rádio da freguesia, os ouvintes tinha que pagar
cinco coroas para poderem escutar o relato da bola. Mal assomavam à porta, logo
o “Copas”, rolando o polegar sobre o indicador, dizia ligeiro:
- “Croas!...Croas”!
A rapaziada, “tesa
que nem pinheiros” e revoltada com tanta usura, resolveu pregar uma partida
ao usurário. Munidos de “peidos
engarrafados”, bateram à porta e mal esta foi aberta, quando o das “Croas” iniciava a ladainha, o “Toninho” esmagou-os contra o soalho e
afastou-se. Ao aperceberem-se do sucedido, o “Copas” e o seu filho Zeca tentaram retaliar, mas só conseguiram
caçar o funil, usado como megafone, com que o “Manquito ” “tocava a reunir”.
Na posse do artefacto, cerraram a porta, suportando o mau cheiro e ignorando os
pedidos de devolução do mesmo por parte dos sitiantes que, às páginas tantas,
tentaram invadir a residência usando um temão de arado como ariete. Perante
esta ameaça, o megafone foi lançado por uma janela para serenar os ânimos e
evitar consequências mais gravosas, mas a taxa das “croas”não foi abolida.
O local, para além da função a que se destinava,
também funcionava como taberna, improvisada e, de vez em quando, como casa de
espetáculos, organizando bailes e “descantes”
muito concorridos. Num desses eventos, os da Panchorra, armaram uma zaragata ao
seu estilo. A tática, executada com uma precisão digna da Mossad, decorreu
nestes termos: a primeira paulada foi no petromax que iluminava a sala,
seguindo-se metódicos ataques a alvos previamente selecionados, deixando, no
exterior, dois elementos a flanquear a saída para cobrirem a retirada. Os
agredidos, desprevenidos e imersos na escuridão, nem tiveram tempo de dizer um “aí jesus” antes de receberem os
primeiros golpes. Mal refeitos da surpresa, tentaram ir no encalço dos atacantes
que se escapuliam para a rua, mas eram barrados pelos guardiões dos umbrais
que, estrategicamente colocados, impediam a perseguição. Para contornar esta
oposição, o “crioilo” esgueirou-se
pelas traseiras, tentando surpreende-los pela retaguarda, mas esquecendo-se do
tanque que, ao nível do solo, existia no quintal, viu gorados os intentos ao
caiu na ratoeira. Desta forma, puderam os “panchorros”
retirar com ordem e sem problemas de maior. A única oposição com que poderiam
ter sido confrontados foi esboçada pelos “destemidos”
“Troquinhas” e “Pilatos”, que não estavam na folia. Ao aperceberem-se do sucedido,
muniram-se de sachos e foram espera-los para a portela, mas, por sorte ou por
juízo, o caminho onde se emboscaram não foi o trilhado pelos fugitivos.
A padaria continuou pujante, com o André explorar
todo o seu potencial. Aceitava pagamentos em géneros e assentava no rol os
consumos da juventude que, na ausência de dinheiro, lá ia pagando com um
alqueire de cereal, uma dúzia de feno ou outros artigos, desviados de casa, que
pudessem ser capitalizados.
Tudo correu na perfeição até à morte do dono, quando
este partiu os sucessores não estavam à sua altura, nem cientes da nova
realidade que se avizinhava, como uma ave desasada, a padaria definhou e morreu.
Ainda me lembro da demolição do forno, uma interessante obra de engenharia, e
da requalificação do espaço para habitação.
Resta, qual epitáfio de uma lápide amarelecida pelo
tempo, a inscrição gravada na parede e na memória:
Padaria André.
Vitor
Silvestre
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