O compasso, efetuado no domingo de Páscoa, permanece intrincado nos rituais religiosos das pequenas comunidades. Esta prática, outrora generalizada, foi-se perdendo nos meios mais cosmopolitas. Grandes áreas demográficas e a laicização da sociedade inviabilizaram, restringiram ou modificaram a sua realização.
Mas, na Gralheira, a tradição ainda é o que era. Todos os anos, o cortejo pascal percorre as ruas da freguesia com a pragmática instituída. Constituído por cinco elementos: Padre, sacristão com a cruz, campainha, caldeirinha e o do folar. O primeiro e o segundo são inerentes ao cargo, o terceiro é nomeado pelo sacristão, os restantes são designados pelo padre e o lugar é, praticamente, vitalício. Em especial o último, pois tem de ser da inteira confiança para colocar os e envelopes segundo a ordem do percurso, para o pároco poder contabilizar quanto recebeu de cada paroquiano e garantir que nenhuma oferta seja subtraída. O que a acontecer, não seria inédito.
Os moldes em que decorrem a visita pouco se alteraram, mas o folar que era pago em ovos, gradualmente, foi substituído por dinheiro. Isso facilitou a vida ao padre e ao seu fiel depositário. Eliminando, num dia de passos ébrios, o risco da perda de artigos tão perecíveis e o incomodo de carregar com a cesta destinada ao transporte dos mesmos. Foram estas circunstâncias que propiciaram a história que vou contar:
O “Gabiru”, certo ano, foi indigitado pelo prior para fazer parte do séquito do compasso, com a incumbência de recolher os ovos. Compareceu no adro, integrou a comitiva e foi executando a tarefa que lhe fora confiada, mas com determinada peculiaridade. Ao contrário dos seus antecessores que quando tinham necessidade de despejar a cesta se dirigiam a casa do pároco, resolveu estabelecer uma parceria quanto à divisão dos proventos. Assim, alguns carregamentos foram parar à sua despensa, ao invés da residência. Como a quantidade recebida era abundante e o “Gabiru” teve o bom senso de ser comedido na partilha, o desfalque não foi notado. Mas, no ano seguinte, quando se apresentou para a “desobriga”, perante o confessor, não teve coragem de omitir a falta e disse:
- Ò Sr. Abade, o ano passado roubei parte do folar que lhe era destinado.
O padre, incrédulo com tal acto, reflectiu e disse-lhe:
- Cometeu um pecado muito grave, para ser perdoado tem que comprar uma bula de composição.
- E quanto custa?
- Dez tostões.
O homem, surpreso com a cifra, não se conteve e exclamou:
- Ovos tão baratos, nunca comi na minha vida!..
Esta história foi-me contada por várias pessoas que afirmaram tê-la ouvido do próprio. Se assim foi, só ele e o padre a podiam confirmar, mas tal já não é possível.
Independentemente deste episódio ser ou não verídico, o dia de Pascoa continua a ser uma festa animada e de grande convívio na freguesia. A ronda da cruz é seguida por uma trupe de comensais que de casa em casa e de libação em libação vão dando forma a um ambiente de súcia contagiante . Mesmo os convivas mais inibidos e menos folgazões exteriorizam as suas emoções, animados pela espiral de euforia generalizada.
É nestes momentos de convívio que, nesta nova era, se vislumbram as reminiscências de uma comunidade antiga, forjada na interioridade de um Portugal profundo, pobre e letárgico. Das múltiplas carências e privações emergiu um espírito comunitário coeso, fundamentado na entreajuda e na partilha. A noção de família era extrapolada para além do agregado, induzindo uma sensibilidade colectiva que comungava das alegrias e tristezas, congregando esforços em prol do bem comum.
Nem tudo, o tempo mudou…
Vítor Silvestre
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