sábado, 7 de setembro de 2013

O Descante



Desgarradas, cantares ao desafio e outros topónimos afins denominam uma tradição popular muito enraizada no centro norte de Portugal. Ainda hoje, estes eventos são apreciados por grandes plateias de admiradores, convertendo os seus protagonistas em cantadores afamados. Nas romarias minhotas, como a de São Bartolomeu, a desgarrada é um ponto incontornável das festividades, apresentando artistas consagrados que, com as suas quadras picantes, arrebatam praças de gente.
Também nas ilhas, o cantar de improviso se manifesta, com especial destaque para as Velhas da Terceira. Esta moda da ilha açoriana foge à simplicidade das quadras, apresentando uma estrutura mais complexa de uma sextilha dividida em dois tercetos, rematados por uma quadra. Para melhor se perceber este cantar misógino, oriundo das cantigas de escarnio e maldizer medievais, transcrevo uma destas composições da autoria de Maria da Conceição Fernandes, a “Garajau”, uma das poucas cantadeiras que se imiscuiu neste mester dominado pelos homens, e outra de Henrique Teixeira de Sousa, o “Turlu”:

Meu avô e minha avó                                                                  Como sou muito casmurro,
(Aquilo foi um dia só)                                                                  Canguei uma velha e um burro
Foram brincar ao entrudo.                                                          E fui lavrar p`ra um serrado.

Minha avó de cima de uma caixa,                                              O burro atirava à velha,  
Esguichava por uma borracha;                                                  A velha atirava ao burro,
Meu avô por um canudo.                                                            Que me partiram o arado.

Disse minha avó zangada:                                                         Eu ri tanto nesse dia,
- Não deitas mais uma pinga,                                                    E ri com satisfação;
Se não dou-te uma pancada,                                                     A velha deu tanta coiçaria
Que te quebro a seringa.                                                           Que atirou com o burro ao chão.

Pelas bandas de Montemuro, este cantar ancestral é também denominado por descante. Se analisarmos a questão, o termo é apropriado, pois compete aos opositores contradizerem-se, desdizendo a ideia veiculada pelo adversário, descantado o que ele cantara. Havia cantadores “profissionais”, como o Carriço e o Diogo, que eram contratados para descantar em festas e arraiais, alguns amadores de qualidade e muitos com pouco saber, mas com grande vontade. Por norma, se houvesse vinho, não faltava pelas redondezas quem descantasse toda a noite, por vezes, o difícil era faze-los calar.
 Contou-me o “Manquito”, que numa ocasião em Alhões, freguesia da sua consorte, um desses cantadores de ocasião emperrou na seguinte quadra:

Eu fui um dia a uma feira,
Vender quatro pares de alpergatas;
Quatro pares de alpergatas
A uma feira fui vender.

Tiveram que o afastar para dar lugar a outro conterrâneo mais versado na arte, começando de improviso:

Eu nunca usei “grubata”,
Nem nunca a soube pôr;
Mas vem aí o meu primo,
Que foi por os bezerros a mamar.

Perante a aprovação geral, o “Manquito” disse admirado:
- Mas não rimou?!
Ao que os presentes retorquiram de pronto:
- Não calhou!..Não calhou…mas é verdade!
Por ser verdade, também nessa freguesia, estava o Sr. Acácio Ribeiro, da Gralheira, a cantar com o “Clino”, quando o seu vizinho Alexandrino, em virtude deste estar a levar uma lição, bateu nas costas do Ribeiro e lançou-lhe o desafio:

Não tens barba nem bigode,
Que raio de “home” és tu?
Deitas as calças abaixo,
Tens a cara da cor do cu.

O “Cuco” deu um desande no calcanhar da bota e ripostou:

Tens o focinho como um porco,
Os olhos como os dum gato;
Comeste sempre numa pia,
Nunca comeste num prato.

Perante semelhante resposta, o desfigurado Alexandrino ficou branco como a cal da parede e os tocadores, contagiados pela hilaridade geral, pararam de tocar e disseram:
- Não vale a pena continuar, ninguém se entende com o Sr. Acácio.
Existiam duas categorias de temas abordados pelos intérpretes: os eruditos, que glosavam sobre episódios relatados nas sagradas escrituras; e a matracada, versos mundanos de muita picardia. Embora os primeiros fossem admirados pelo saber, num meio de iliteracia generalizada; foram as quadras dos segundos que chegaram até nós, transmitidas pela memória das gerações.
Um dos mais destacados improvisadores analfabetos foi o “Espojeira” de Cotelo. “Compostor” de loiça, mais remendado que um saco de amostras, entre um “gato” e outro colocado nalguma travessa, este “António Aleixo” aguçava o engenho natural para se digladiar com quem o desafiasse.
Numa ocasião foi convidado pra atuar em Alhões, em parceria com a Arminda do Veado. A Arminda era das poucas cantadeiras, até ao aparecimento da Antónia de Guimarães na romaria dos remédios, que figurava no rol dos cantadores. Por casualidade, os dois artistas encontraram-se com antecedência nas Portas de Montemuro; como era tempo de cieiro e o sol convidava à soalheira, puseram-se à conversa encostada a um penedo. Fosse pelo cálido reposteiro ou porque a natureza o pedisse, descambaram para a vias de facto. A Arminda, tão repentina nos atos como nas cantigas, sem espartidos interiores que a estorvasse, depressa ficou em posição, mas o “Espojeira” abraços com o nagalho que lhe servia de cinto, levou mais tempo que o recomendado, o que fez fenecer a vontade da parceira, deixando-o em jejum. Mas bravatas à parte, o compromisso tinha de ser honrado e, na hora marcada, compareceram à cantoria.
A ressabiada Arminda tentou retaliar com o episódio, usando com metáfora uma cena de caça:

Estava a lebre na cama
E o caçador de joelhos,
Mas deixou fugir a lebre,
Por culpa dos aparelhos.

O experimentado cantador não se atrapalhou e, como de costume, saiu-se com obra acabada:

Estava a lebre na cama,
É verdade, não o nego;
Mas a culpa não foi da espingarda,
A culpa foi do nó cego.
        
Da minha lembrança, o maior furor causado neste universo foi, como já referi, a entrada em cena da Antónia. Desde a sua aparição na dita romaria, era presença assídua em toda a parte. Tenho uma vaga ideia de a ter visto na feira da Cruz a cantar com o Diogo, de lenço na cabeça e postura erguida, debelada as arremetidas do adversário com o mesmo à-vontade com que emborcava “cortilhos” de bagaço.
Ainda hoje, o descante mantem-se firme e hirto na cultura do povo. É popular, mas não é pimba, pois advém de uma tradição genuína, forjada na garganta de homens simples, de espirito arguto e humor sagaz; verdadeiros poetas populares que possuem o dom inato do improviso.
Vitor Silvestre

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