A “Venda” era uma loja portuguesa que encarnava o papel de mercearia,
drogaria, taberna, farmácia, posto dos correios e de outros negócios não
catalogados. A existência desta panóplia de atividades surgiu das mentes
argutas e empreendedoras de comerciantes visionários que, avaliando as
necessidades das populações, as distâncias dos centros de abastecimento e a
falta de acessibilidades, inventaram este conceito de comércio integrado.
Aqueles bazares de província converteram-se no centro social das comunidades,
onde tudo se passava e se sabia, enquanto se estava, comprava ou vendia.
Na Gralheira, sempre existiram este género de estabelecimentos. O mais
antigo, de que há memória, foi a pensão do “Brasileiro”,
assim denominada, por também oferecer serviços de hospedaria a viajantes e
caçadores. Dizem, os que o conheceram, que não enjeitava a mínima oportunidade
de negócio. Levantava-se para vender uma caixa de fósforos, ou dois tostões de
água-ardente e tão célere era a abrir a porta que, segundo o “Peixe”, devia dormir vestido, para não
atrasar a clientela. Mais recentemente, a loja do Sr. Pinto e o do Sr. Moisés
forneciam a Gralheira e várias freguesias em redor, assim como almocreves e
transeuntes de ocasião. Eram dois reputados comerciantes, levando um “Analista Comercial” da época a comentar:
- O Moisés é homem arrojado; o Pinto, grande negociante de “peis”.
Mas, a loja da Sra. Salomé era
o exemplo acabado deste negócio polivalente. Empresária perspicaz, dotada de
uma apetência intuitiva para o comércio, a sua sortida casa atraía uma vasta
clientela, reflexo de uma iniciativa enérgica e máscula que, em contraponto com
a do marido, motivou o seguinte elogio a um cliente de Vale de Papas:
Este ícone comercial resistiu
ao tempo e á evolução global, encerrando apenas quando a nonagenária
proprietária soçobrou ao peso dos anos, sendo forçada a resignar ao mester de
uma vida.
Fui contemporâneo das “Vendas”,
nelas vivi a minha infância e juventude, lá cresci e amadureci rodeado de
emblemáticos contadores de histórias, que vou tentando narrar enquanto não me
falha a memória.
Uma das personagens omnipresentes era o “Carrel”, invisual, bom conversador e “bom copo”. Embora se deslocasse, sem dificuldade, por toda a
freguesia, pelos caminhos mentalmente conhecidos, era no Ribeirinho, nos bancos
soalheiros da “Venda” do meu tio
Amadeu, que permanecia a maior parte do tempo. Da sua figura baixa e atarracada
destacavam-se o tronco e os braços de um gladiador. De tal forma, que, quando
estava sentado, ombreava com os mais altos, criando uma ilusão ótica da sua
estatura.
Foi essa compleição física, forjada na génese e no garfo, que lhe
permitiu resistir a um choque frontal com um pinheiro, quando fugia a uma carga
de cavalaria da G.N.R. numa zona de má fama, no Montijo. Nessa cidade da margem
sul, onde residia e trabalhava numa suinicultura, passou grande parte da sua
vida ativa, até se aposentar e regressar à Gralheira. Ainda o conheci com o
sentido da visão, e uma das primeiras imagens que dele guardo foi, através do
janelo da sua casa, vê-lo almoçar, tão avidamente, que tive a sensação que
ingeria a refeição utilizando dois garfos. Utensílios que dispensou, num dia de
carnaval, para comer uma cabeça de porco, acompanhada por seis litros de vinho
do Cartaxo, perante a estupefação dos patrões por não demostrar o mínimo sinal
de embriaguez. Embora o vinho fosse forte, a vasilha era grande e difícil de encher,
ao ponto de lhe toldar, totalmente, os sentidos. Como numa ocasião, em que uns
comparsas de taberna disseram, sem se aperceberem que eram escutados:
- Nós bebemos copos de dois, ele só bebe de três, vamos embebeda-lo!
O resultado saldou-se em dezoito copos de dois para cada um dos
parceiros e dezoito copos de três para o “Carrel”.
Como a medida de três é o dobro da de dois, o meu conterrâneo bebeu tanto como
os seus amigos juntos, não se embebedou e ainda teve de leva-los a casa
completamente alcoolizados.
A sua fisionomia era ideal para “jogar
as quedas”, uma espécie de luta greco-romana muito apreciada naquele tempo,
em provas de demostração de força. Como atesta o “Pontes”, pretenso campeão da modalidade, não hesitou em aceitar o
desafio que lhe fora lançado por terceiros, na forma costumada:
-Tu vais àquele?
Como era entroncado e mais alto uma cabeça, disse confiante:
-Vou!..Claro que vou!
Mas de nada lhe valeu a ousadia, quando os braços maciços do
adversário o cingiram pelas “cruzes”
num forte abraço de urso, pressionando o punho cerrado nas vertebras lombares.
As pernas desfaleceram e abrindo os braços apenas emitiu uma cacofonia de ais que
ainda reproduz na perfeição, antes de concluir resignado:
- Aquele “ maçónico” ia-me
partindo pela espinha…
Não partiu porque era a brincar, o que não teria acontecido ao médico
da caixa que recusou prolongar-lhe a baixa, quando o pé fraturado não estava
completamente restabelecido, acrescentando com arrogância:
-Você não quer é trabalhar!
Esse doutor era um senhor “Verdugo”
e tinha a mania de “enxertar” os pacientes não submissos à prepotência de
nababo que o estatuto lhe conferia. A observação era injusta e despropositada,
despoletando uma inusitada reação no paciente, num tempo em quer o pobre tinha
no cachaço a pata do rico e poucos ousavam desafiar a ordem estabelecida. Por
conseguinte, a incredibilidade transparecia no rosto do clínico, enquanto o
ofendido lhe retorquia:
- Quem não trabalha é o senhor!..Eu trabalhei a vida toda e com os
meus descontos ajudei a pagar os seus estudos!...
Refeito da surpresa, esboçou uma ténue tentativa de ripostar, mas um
aviso bem esclarecido manteve-o sentado e calado:
- O senhor não se levante!.. Porque a mim, você não “enxerta”!...
O homem espumava de raiva, mas escutou mudo e quedo até o enfermeiro
intervir e apaziguar os ânimos:
- O Sr. Doutor tenha calma, o homem deve ter razão, a pancada foi
muito forte.
Existem muitos doutores que
precisam ouvir algumas verdades. Não por serem doutores, pois o titulo está tão
vulgarizado, que perdeu a aura de deferência quase reverencial do passado.
Estamos no limiar da comercialização ao kilo, ou ao Metro, dos títulos
académicos. Ser licenciado passou a ser um preforme essencial para ocultar a iliteracia
e a incultura do país, conferindo-lhe uma sapiência virtual, creditada por
documentos selados à revelia da competência e do saber, mas indutores de
performances estatísticas sem precedentes na nossa história.
Hoje, não somos “enxertados”,
mas quando esperamos mais que o suficiente para merecermos uma palavra de
atenção e disso fazem tábua rasa; quando cobram o que entendem cobrar e não
respeitam o nosso tempo; quando usam os meios públicos em proveito privado;
chegamos à conclusão que o autoritarismo do passado foi substituído pelos lóbis
corporativos que fazem dos cuidados saúde um negócio e não um direito
constitucional de quem os recebe e um dever deontológico de quem os pratica. Para
além da competência técnica que, em larga maioria, é reconhecida aos nossos
profissionais, é necessária uma componente humana que vai muito além dos vinte
valores.
Como disse o meu amigo Olivier, bretão, burguês e filho de
reumatologista, a um desses mercenários da saúde:
- Quando o meu pai morreu, a igreja estava repleta de pessoas que eu
não conhecia. Ao apresentarem-me condolências, nenhuma falou nas qualidades
médicas que as curaram; enalteciam a vertente humana que as tinha ouvido… Quando
o Sr. Morrer, não creio, que algum dos seus doentes vá ao enterro.
Não pretendo generalizar, porque seria injusto para muitíssima boa
gente, mas, infelizmente, a bastantes serve a carapuça de não comparecermos ao
funeral.
Vitor Silvestre.
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