sábado, 8 de setembro de 2012

Conversas de “Venda”



A “Venda” era uma loja portuguesa que encarnava o papel de mercearia, drogaria, taberna, farmácia, posto dos correios e de outros negócios não catalogados. A existência desta panóplia de atividades surgiu das mentes argutas e empreendedoras de comerciantes visionários que, avaliando as necessidades das populações, as distâncias dos centros de abastecimento e a falta de acessibilidades, inventaram este conceito de comércio integrado. Aqueles bazares de província converteram-se no centro social das comunidades, onde tudo se passava e se sabia, enquanto se estava, comprava ou vendia.
Na Gralheira, sempre existiram este género de estabelecimentos. O mais antigo, de que há memória, foi a pensão do “Brasileiro”, assim denominada, por também oferecer serviços de hospedaria a viajantes e caçadores. Dizem, os que o conheceram, que não enjeitava a mínima oportunidade de negócio. Levantava-se para vender uma caixa de fósforos, ou dois tostões de água-ardente e tão célere era a abrir a porta que, segundo o “Peixe”, devia dormir vestido, para não atrasar a clientela. Mais recentemente, a loja do Sr. Pinto e o do Sr. Moisés forneciam a Gralheira e várias freguesias em redor, assim como almocreves e transeuntes de ocasião. Eram dois reputados comerciantes, levando um “Analista Comercial” da época a comentar:
- O Moisés é homem arrojado; o Pinto, grande negociante de “peis”. 
 Mas, a loja da Sra. Salomé era o exemplo acabado deste negócio polivalente. Empresária perspicaz, dotada de uma apetência intuitiva para o comércio, a sua sortida casa atraía uma vasta clientela, reflexo de uma iniciativa enérgica e máscula que, em contraponto com a do marido, motivou o seguinte elogio a um cliente de Vale de Papas:
Loja da Sra. Salomé
-Homem, homem é a Sra. Salomé; agora…bem feito, bem feito é o Sr. Joãozinho.
 Este ícone comercial resistiu ao tempo e á evolução global, encerrando apenas quando a nonagenária proprietária soçobrou ao peso dos anos, sendo forçada a resignar ao mester de uma vida.
Fui contemporâneo das “Vendas”, nelas vivi a minha infância e juventude, lá cresci e amadureci rodeado de emblemáticos contadores de histórias, que vou tentando narrar enquanto não me falha a memória.
Uma das personagens omnipresentes era o “Carrel”, invisual, bom conversador e “bom copo”. Embora se deslocasse, sem dificuldade, por toda a freguesia, pelos caminhos mentalmente conhecidos, era no Ribeirinho, nos bancos soalheiros da “Venda” do meu tio Amadeu, que permanecia a maior parte do tempo. Da sua figura baixa e atarracada destacavam-se o tronco e os braços de um gladiador. De tal forma, que, quando estava sentado, ombreava com os mais altos, criando uma ilusão ótica da sua estatura.
Foi essa compleição física, forjada na génese e no garfo, que lhe permitiu resistir a um choque frontal com um pinheiro, quando fugia a uma carga de cavalaria da G.N.R. numa zona de má fama, no Montijo. Nessa cidade da margem sul, onde residia e trabalhava numa suinicultura, passou grande parte da sua vida ativa, até se aposentar e regressar à Gralheira. Ainda o conheci com o sentido da visão, e uma das primeiras imagens que dele guardo foi, através do janelo da sua casa, vê-lo almoçar, tão avidamente, que tive a sensação que ingeria a refeição utilizando dois garfos. Utensílios que dispensou, num dia de carnaval, para comer uma cabeça de porco, acompanhada por seis litros de vinho do Cartaxo, perante a estupefação dos patrões por não demostrar o mínimo sinal de embriaguez. Embora o vinho fosse forte, a vasilha era grande e difícil de encher, ao ponto de lhe toldar, totalmente, os sentidos. Como numa ocasião, em que uns comparsas de taberna disseram, sem se aperceberem que eram escutados:
- Nós bebemos copos de dois, ele só bebe de três, vamos embebeda-lo!
O resultado saldou-se em dezoito copos de dois para cada um dos parceiros e dezoito copos de três para o “Carrel”. Como a medida de três é o dobro da de dois, o meu conterrâneo bebeu tanto como os seus amigos juntos, não se embebedou e ainda teve de leva-los a casa completamente alcoolizados.
A sua fisionomia era ideal para “jogar as quedas”, uma espécie de luta greco-romana muito apreciada naquele tempo, em provas de demostração de força. Como atesta o “Pontes”, pretenso campeão da modalidade, não hesitou em aceitar o desafio que lhe fora lançado por terceiros, na forma costumada:
-Tu vais àquele?
Como era entroncado e mais alto uma cabeça, disse confiante:
-Vou!..Claro que vou!
Mas de nada lhe valeu a ousadia, quando os braços maciços do adversário o cingiram pelas “cruzes” num forte abraço de urso, pressionando o punho cerrado nas vertebras lombares. As pernas desfaleceram e abrindo os braços apenas emitiu uma cacofonia de ais que ainda reproduz na perfeição, antes de concluir resignado:
- Aquele “ maçónico” ia-me partindo pela espinha…
Não partiu porque era a brincar, o que não teria acontecido ao médico da caixa que recusou prolongar-lhe a baixa, quando o pé fraturado não estava completamente restabelecido, acrescentando com arrogância:
-Você não quer é trabalhar!
Esse doutor era um senhor “Verdugo” e tinha a mania de “enxertar” os pacientes não submissos à prepotência de nababo que o estatuto lhe conferia. A observação era injusta e despropositada, despoletando uma inusitada reação no paciente, num tempo em quer o pobre tinha no cachaço a pata do rico e poucos ousavam desafiar a ordem estabelecida. Por conseguinte, a incredibilidade transparecia no rosto do clínico, enquanto o ofendido lhe retorquia:
- Quem não trabalha é o senhor!..Eu trabalhei a vida toda e com os meus descontos ajudei a pagar os seus estudos!...
Refeito da surpresa, esboçou uma ténue tentativa de ripostar, mas um aviso bem esclarecido manteve-o sentado e calado:
- O senhor não se levante!.. Porque a mim, você não “enxerta”!...
O homem espumava de raiva, mas escutou mudo e quedo até o enfermeiro intervir e apaziguar os ânimos:
- O Sr. Doutor tenha calma, o homem deve ter razão, a pancada foi muito forte.
 Existem muitos doutores que precisam ouvir algumas verdades. Não por serem doutores, pois o titulo está tão vulgarizado, que perdeu a aura de deferência quase reverencial do passado. Estamos no limiar da comercialização ao kilo, ou ao Metro, dos títulos académicos. Ser licenciado passou a ser um preforme essencial para ocultar a iliteracia e a incultura do país, conferindo-lhe uma sapiência virtual, creditada por documentos selados à revelia da competência e do saber, mas indutores de performances estatísticas sem precedentes na nossa história.
Hoje, não somos “enxertados”, mas quando esperamos mais que o suficiente para merecermos uma palavra de atenção e disso fazem tábua rasa; quando cobram o que entendem cobrar e não respeitam o nosso tempo; quando usam os meios públicos em proveito privado; chegamos à conclusão que o autoritarismo do passado foi substituído pelos lóbis corporativos que fazem dos cuidados saúde um negócio e não um direito constitucional de quem os recebe e um dever deontológico de quem os pratica. Para além da competência técnica que, em larga maioria, é reconhecida aos nossos profissionais, é necessária uma componente humana que vai muito além dos vinte valores.
Como disse o meu amigo Olivier, bretão, burguês e filho de reumatologista, a um desses mercenários da saúde:
- Quando o meu pai morreu, a igreja estava repleta de pessoas que eu não conhecia. Ao apresentarem-me condolências, nenhuma falou nas qualidades médicas que as curaram; enalteciam a vertente humana que as tinha ouvido… Quando o Sr. Morrer, não creio, que algum dos seus doentes vá ao enterro.
Não pretendo generalizar, porque seria injusto para muitíssima boa gente, mas, infelizmente, a bastantes serve a carapuça de não comparecermos ao funeral. 
Vitor Silvestre.

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