A Gralheira ficou mais pobre!... Não me refiro a uma pobreza económica, mas a outra menos visível, menos mediática e, geralmente, imperceptível ao senso comum. Na modernidade dos nossos dias, em que vivemos sujeitos a uma ordem economicista e o valor de cada indivíduo é aferido pela bitola do materialismo, não é difícil esquecermo-nos de outros valores que, embora mais difíceis de quantificar, são fundamentais na formação e desenvolvimento da nossa identidade individual e colectiva.
A Gralheira ficou mais pobre, porque viu partir um dos últimos contadores de histórias que assistiu à transição do "tempo antigo" para uma nova era. Quando me situo neste espaço temporal, não julguem que tenho de recuar muito, apenas retrocedo cinquenta anos, porque a evolução galopante dos nossos dias só se tornou uma realidade nacional nas duas últimas décadas. Quem visitasse a Gralheira no início dos anos 60 do século passado, poucas diferenças encontraria se lá tivesse ido em data homóloga de há dois séculos atrás. Em termos cronológicos é uma fracção de tempo muito pequena, mas num âmbito sócio económico e cultural a diferença é abissal. De tal forma, que as gerações mais novas, distraídas com as inovações tecnológicas, apenas podem vislumbrar essa realidade através do conhecimento transmitido, oralmente, por estes ícones intemporais, que são os contadores de histórias.
O “Tiu Armando” era um contador de histórias!... Possuía o talento natural de prender atenção de quem o ouvia. Conseguia, com palavras simples e modestas, mescladas de arcaísmos e regionalismos, projectar uma imagem abrangente e substanciada da narração, imprimindo-lhe um realismo emotivo, que permitia ao ouvinte visualizar a cena como se a tivesse vivido na primeira pessoa. “Praguejador” inveterado, mas os seus impropérios não eram ofensivos, antes pelo contrário, contribuíam para acentuar o carácter genuíno daquele “Homem” de cabelos brancos e olhar penetrante, que envelhecera sem nunca perder a irreverência da juventude. Por isso, foi sempre tolerante com os desvarios da rapaziada, até, quando necessário, seu defensor. Coerente e pragmático, conservou a hombridade daqueles que não se deixam contagiar por moralismos arcaicos e devoções beáticas, motivadas, apenas, pelo temor divino e preocupadas com as intenções da alma. Sociável e cordato, mas acérrimo defensor das suas opiniões. Quando se envolvia numa discussão mais veemente quase lhe saltavam os dentes postiços, tal era a intensidade da sua argumentação. Para evitar que tal sucedesse, executava um rápido e característico movimento ascendente com o maxilar inferior, em simultâneo com uma leve projecção do pescoço para diante, reposicionando a dentadura no seu devido lugar.
Recordo, com saudade, os momentos que desfrutei da sua companhia; juntamente com outros do mesmo mester, como o “Manquito” e o ”Peixe”; Ouvindo as Histórias e Estórias da nossa freguesia. Escutava-os, como se cada palavra incutisse em mim um dever genético de as memorizar, de forma a perpetuá-las e lega-las às gerações futuras. Mas, são vastíssimos os reportórios que me transmitiram. Tenho dúvidas que, algum dia, possua engenho e arte para os compilar, mas, seguramente, irei tentar que este património não se dissipe nas brumas do tempo e da memória.
Só as vivências do “Tiu Armando” seriam suficientes para elaborar uma antologia de contos e narrativas da Gralheira. As suas aventuras e desventuras são tão substantivas que bastam para lhe conferir o estatuto de histórico e ascender à prateleira daqueles que, em maior ou menor escala, “se vão da lei da morte libertando”. Para corroborar estas afirmações, vou contar dois episódios da sua vida, nos quais são reflexos o espírito indómito e peculiar desta personagem.
O “tiu Armando”, foi, provavelmente, das poucas pessoas, que há memória, a serem excomungadas, prova clara que o estigma do Santo Ofício ainda perdurava, no SEC XX, em Portugal. O motivo de tal punição eclesiástica, ficou a dever-se ao facto de ter agredido o padre que paroquiava a freguesia, por este o ter classificado como homem de “olho vivo e pé descalço”, quando assistia à eucaristia encostado ao campanário, ao invés de o fazer dentro da igreja.
Quando o questionavam, só pelo prazer de lhe ouvir a resposta, que era bem conhecida:
- Ó “Tiu Armando”, você não queria magoar o padre, era só para o assustar?
Ele olhava-nos fixamente e acenando levemente a cabeça, falava com voz pausada, mas segura, como se proferisse uma sentença:
- Era para assustar?... O pau ia-lhe direito aos “Cornos”, mas bateu na esquina da casa e apanhei-o só de raspão pelo ombro… A minha vontade era deitá-lo por terra.
Assim se manteve vários anos como proscrito. Só com a visita do Arcebispo de Lamego e por intercessão da sua tia Laurinda, o seu nome foi apagado do Índex e de novo aceite na comunidade católica, com todos os deveres inerentes a um bom devoto.
Outra façanha, mas completamente ignota dos manuais da história contemporânea, foi ter esbofeteado, e saído incólume, um membro da legião portuguesa, por lhe ter exigido que se identificasse. O motivo de tal exigência deveu-se ao facto de ter expressado, publicamente, o desejo de que Salazar se finasse. Com este acto imprudente, apenas motivado pela verdura dos anos, afrontou mais o poder instituído do que muitos, mais mediáticos, que se arvoram em grandes democratas, opositores e combatentes do antigo regime.
Adeus “Tiu Armando”!.. Deixo-lhe esta menção póstuma, como marca indelével da amizade e estima em que o guardo, desejando, mesmo sendo incréu; não na essência, mas na forma como as crenças são propagandeadas; que Deus o tenha em bom lugar e lhe dê descanso eterno.
Vítor Silvestre
A Gralheira ficou mais pobre, porque viu partir um dos últimos contadores de histórias que assistiu à transição do "tempo antigo" para uma nova era. Quando me situo neste espaço temporal, não julguem que tenho de recuar muito, apenas retrocedo cinquenta anos, porque a evolução galopante dos nossos dias só se tornou uma realidade nacional nas duas últimas décadas. Quem visitasse a Gralheira no início dos anos 60 do século passado, poucas diferenças encontraria se lá tivesse ido em data homóloga de há dois séculos atrás. Em termos cronológicos é uma fracção de tempo muito pequena, mas num âmbito sócio económico e cultural a diferença é abissal. De tal forma, que as gerações mais novas, distraídas com as inovações tecnológicas, apenas podem vislumbrar essa realidade através do conhecimento transmitido, oralmente, por estes ícones intemporais, que são os contadores de histórias.
O “Tiu Armando” era um contador de histórias!... Possuía o talento natural de prender atenção de quem o ouvia. Conseguia, com palavras simples e modestas, mescladas de arcaísmos e regionalismos, projectar uma imagem abrangente e substanciada da narração, imprimindo-lhe um realismo emotivo, que permitia ao ouvinte visualizar a cena como se a tivesse vivido na primeira pessoa. “Praguejador” inveterado, mas os seus impropérios não eram ofensivos, antes pelo contrário, contribuíam para acentuar o carácter genuíno daquele “Homem” de cabelos brancos e olhar penetrante, que envelhecera sem nunca perder a irreverência da juventude. Por isso, foi sempre tolerante com os desvarios da rapaziada, até, quando necessário, seu defensor. Coerente e pragmático, conservou a hombridade daqueles que não se deixam contagiar por moralismos arcaicos e devoções beáticas, motivadas, apenas, pelo temor divino e preocupadas com as intenções da alma. Sociável e cordato, mas acérrimo defensor das suas opiniões. Quando se envolvia numa discussão mais veemente quase lhe saltavam os dentes postiços, tal era a intensidade da sua argumentação. Para evitar que tal sucedesse, executava um rápido e característico movimento ascendente com o maxilar inferior, em simultâneo com uma leve projecção do pescoço para diante, reposicionando a dentadura no seu devido lugar.
Recordo, com saudade, os momentos que desfrutei da sua companhia; juntamente com outros do mesmo mester, como o “Manquito” e o ”Peixe”; Ouvindo as Histórias e Estórias da nossa freguesia. Escutava-os, como se cada palavra incutisse em mim um dever genético de as memorizar, de forma a perpetuá-las e lega-las às gerações futuras. Mas, são vastíssimos os reportórios que me transmitiram. Tenho dúvidas que, algum dia, possua engenho e arte para os compilar, mas, seguramente, irei tentar que este património não se dissipe nas brumas do tempo e da memória.
Só as vivências do “Tiu Armando” seriam suficientes para elaborar uma antologia de contos e narrativas da Gralheira. As suas aventuras e desventuras são tão substantivas que bastam para lhe conferir o estatuto de histórico e ascender à prateleira daqueles que, em maior ou menor escala, “se vão da lei da morte libertando”. Para corroborar estas afirmações, vou contar dois episódios da sua vida, nos quais são reflexos o espírito indómito e peculiar desta personagem.
O “tiu Armando”, foi, provavelmente, das poucas pessoas, que há memória, a serem excomungadas, prova clara que o estigma do Santo Ofício ainda perdurava, no SEC XX, em Portugal. O motivo de tal punição eclesiástica, ficou a dever-se ao facto de ter agredido o padre que paroquiava a freguesia, por este o ter classificado como homem de “olho vivo e pé descalço”, quando assistia à eucaristia encostado ao campanário, ao invés de o fazer dentro da igreja.
Quando o questionavam, só pelo prazer de lhe ouvir a resposta, que era bem conhecida:
- Ó “Tiu Armando”, você não queria magoar o padre, era só para o assustar?
Ele olhava-nos fixamente e acenando levemente a cabeça, falava com voz pausada, mas segura, como se proferisse uma sentença:
- Era para assustar?... O pau ia-lhe direito aos “Cornos”, mas bateu na esquina da casa e apanhei-o só de raspão pelo ombro… A minha vontade era deitá-lo por terra.
Assim se manteve vários anos como proscrito. Só com a visita do Arcebispo de Lamego e por intercessão da sua tia Laurinda, o seu nome foi apagado do Índex e de novo aceite na comunidade católica, com todos os deveres inerentes a um bom devoto.
Outra façanha, mas completamente ignota dos manuais da história contemporânea, foi ter esbofeteado, e saído incólume, um membro da legião portuguesa, por lhe ter exigido que se identificasse. O motivo de tal exigência deveu-se ao facto de ter expressado, publicamente, o desejo de que Salazar se finasse. Com este acto imprudente, apenas motivado pela verdura dos anos, afrontou mais o poder instituído do que muitos, mais mediáticos, que se arvoram em grandes democratas, opositores e combatentes do antigo regime.
Adeus “Tiu Armando”!.. Deixo-lhe esta menção póstuma, como marca indelével da amizade e estima em que o guardo, desejando, mesmo sendo incréu; não na essência, mas na forma como as crenças são propagandeadas; que Deus o tenha em bom lugar e lhe dê descanso eterno.
Vítor Silvestre
Uau !!
ResponderEliminarEspantoso ... Nunca pensei que o Tio Armando fosse assim um grandioso contador de Estórias!
Fiquei maravilhada ao ler este texto!
Parabens ao autor do texto!
concordo com a ines nunca pensei que o meu avô fosse um contador de Estórias... sabia e sei de algumas estórias mas que nao foram por ele contadas se assim é fico ainda mais orgulhoso de ser seu neto. obrigado ao autor por me ter dado a conhecer mais uma das suas façanhas
ResponderEliminarQue haja alguém, que não deixe morrer o legado daqueles que a morte nos vai levando. Parabéns Nelo por este excelente artigo
ResponderEliminarNão sabia que o tio Armando nos tinha deixado. A Gralheira ficou, de facto, mais pobre. A sua morte, a fazer fé no testemunho sentido do Nelo, significa o fim de uma cultura ancestral, tecida de palavras com um sabor a terra e a raízes - os tais arcaísmos e regionalismos. Como afirmou, com razão, alguém com juízo: "cada velho que morre é uma biblioteca que arde". Mais razão assiste ao dito, quando se trata da morte de um velho contador de histórias. Verdadeiramente, o que está em questão, é a morte de uma cultura toda ela urdida de oralidade. Felizmente que existem por aí uns indivíduos, como o Nelo, que porfiam em fazer valer a sentença camoniana e, escrevendo, os vão (aos velhos contadores de histórias "da lei da morte libertando".
ResponderEliminarDeixo um repto ao Nelo, assim como a outros da sua têmpera: contem-nos mais estórias que contribuam para a descoberta do Montemuro. Não interessa que sejam verdadeiras. Basta que sejam verosímeis. Não deixem morrer essa cultura de oralidade já moribunda.
Carlitos, filho do Demo
Grande, justa e emocional menção Nelo,certamente serás tu o herdeiro legitimo desta "escola" de contadores de "histórias e estórias" da Gralheira.
ResponderEliminarUm abraço
Fernando