As travessuras nas noites de S. João e S. Pedro eram
vividas com grande entusiasmo pela rapaziada. O respeito pela tradição antiga
permitia-lhes estravagâncias inadmissíveis nos restantes dias do ano. Mesmo
assim, não era raro existirem descontentes com os excessos da juventude. Aliás,
o sucesso de umas travessuras era avaliada pelo número de críticas que
despoletavam na manhã seguinte, se ninguém se ressentia, era porque a obra
tinha sido de pouca monta. Mas, regra geral, havia sempre espíritos indignados
por motivos insignificantes ou outros de relevo, como em tempos mais antigos,
irem espolinhar-se nos campos de linho, deixando-o num
vincilho difícil de manufaturar.
Todos os que reclamavam, no ano seguinte, tinham em
dobro aquilo que não desejavam. Quando o travessado não fazia caso, nunca mais
era incomodado, qual era a graça de acirrar alguém que não exteriorizava o
incómodo.
Assim sucedeu com o “Sereno” quando viu a rima da
lenha esborralhada para o caminho. Sem se alterar, piorna por piorna, voltou a
coloca-la no “solhal”. Nunca mais se
meteram com o “Capa Carneiros”.
Outros passavam a noite de vigília aos carros de vacas,
metiam as galinhas no forno, escondiam vasos e outros pertences suscetíveis de
serem levados. O que de pouco lhes valia, pois quem se mete com moços, quase
nunca leva a melhor.
Mas, para haver travessuras é necessário existirem
travessos. Na Gralheira, há nota de uns quantos que ultrapassaram a mediania,
encarregando-se o tempo de os consagrar como históricos neste mester. O meu tio
Abílio é uma figura de proa consensual, secundado por “Rabeço”, “Fajardo” e outros da mesma laia, que em conjunto ou em
separado espevitavam a pacatez bucólica da freguesia. A dupla “Abilinho” e “Fajardo” foi uma das mais prolíferas em
matéria de judiarias. Um dos maiores esquemas postos em prática foi
improvisaram um galinheiro na Mouta e rapinarem galinhas para terem ovos com
fartura. O povo, incrédulo com tamanha razia de galináceos, alvitrava ser
raposa, doninha, milhafre, mas nada justificava aquele incidente de proporções
sem precedente.
Os dois pilha galinhas, indiferentes ao clamor
generalizado, continuavam a deliciar-se com ovos frescos, sem serem
descobertos. Até ao dia em que resolveram raptar um galo para se lançarem no
negócio da criação de pintos. Usando a tática costumada, colocaram um grão de
milho atado a um cordel e fisgaram um imponente galaroz do meu bisavô
“Alfaiate”. O galo cativo fez o que a natureza lhe pedia, cantar todas as manhãs, o
que levou à localização da origem do canto e ao desvelo do mistério das aves
desaparecidas.
Uma das vítimas mais visadas por aquela dupla
endiabrada era o “Tiu Lino” que, de
vista já cansada pelos anos, não diferenciava o toco que lhe metiam na panela,
após retirarem o salpicão. Apenas dava pela troca, quando admirado com o tempo
de cozedura espetava o garfo de forma mais decidida e batia em sólido cerne de
carvalho.
Outra aventura digna de registo foi protagonizada por
um triunvirato de respeito. O meu tio-avô “Talassas” convenceu o “Rabeço” e o “Fajardo “a acompanharem-no até à cidade
espanhola de Tui, para servirem num convento, onde já tinha estado. Por azar,
decorria a guerra civil no país vivinho e os dois jovens ficaram retidos na
fronteira. O meu tio pode passar e no regresso trouxe uma carta de recomendação
para o seminário de Braga, onde foram acolhidos. Só que passado algum tempo, o
reitor da instituição lamentava a decisão, pois o trabalho produzido pelos
serviçais era muito inferior aos alimentos ingeridos e, para cúmulo da
desgraça, entupiram os sanitários com pedaços de sarapilheira que usavam como
papel higiénico, lançavam ao vento a fopa de milho com que deveriam encher as
almofadas e uma ramada de duas pipas de vinho foi vindimada, com a ajuda de uma
cana rachada na ponta, da varanda do quarto onde dormiam, não colhendo os
padres mais que dois almudes. Foram demitidos, mas devidamente aforrados para
as despesas de regresso.
Alguns integraram a banda da freguesia, mas como não
eram muito dotados, constituíam uma segunda linha que era dispensada das
ocasiões que não requeriam todo o efetivo. Uma dessas alturas era o serviço
eucarístico, onde só os melhores músicos e de voz mais afinada acompanhavam a
celebração da missa. Livres do serviço entretinham-se a fazer o que lhes dava
na real gana. Certo dia, na freguesia de Ferreiros, enquanto o padre fazia o
sermão, resolveram assaltar uma velha cerejeira carregada de frutos. Como o tronco
estava caduco, o peso dos recoletores partiu uma bifurcação, ficando um pesado
ramo atravessado no caminho por onde ia passar a procissão. Quando os mordomos
se aperceberam, pálio, cruzes, lanternas e andores estavam imobilizados sob o
sol do meio-dia. Alteraram-se os ânimos, proferiram-se ameaças, mas ninguém
suspeitava dos elementos da banda que continuavam a soprar nos instrumentos a
plenos pulmões ou, como o “Rabeço, quem
fingisse tocar enquanto chupava uma amêndoa encaixada no bocal do instrumento.
Nem sempre as partidas acabavam a contento entre as
partes. Quando a “moçarada” resolveu
embebedar o criado do “Bague “e
aproveitar o torpor alcoólico para lhe tosquiarem os briosos caracóis, este
levou a peito as dores do servo e os “barbeiros”
passaram um mau bocado. O rapaz tinha uma farta cabeleira que cuidava com
esmero, exibindo-a com orgulho enquanto cantava na primeira fila da igreja.
Após o sucedido, assistiu à missa entre as mulheres, com um lenço na cabeça. O
patrão estranhou tal comportamento e foi inteirar-se da razão daquela anomalia.
Ao sabe-la, deu um aperto aos autores da brincadeira, pois o “Tiu Pedro” não era para cócegas e
disse-lhes indignado:
- Bague!.. Faze-lo ao meu criado, é o como faze-lo a
mim.
Outra maroteira interessante foi a que fizeram ao ”Pilatos”. Também num dia de bebedeira,
meteram-no na loja da mula do “Galhardo”,
com o engodo de lá o aguardar a Ludovina da Panchorra. Na completa escuridão,
foi-se guiando pelo tato, enquanto a brava muar desferia coices no vazio,
indiferente aos apelos cioso do “João da
Branca”:
- Sou eu Ludovina, tem calma.
Por sorte não foi colhido por uma parelha que, no mínimo,
o teria deixado embaçado. Continuando o homem de saúde e tão casto como a terra
o haveria de comer.
No meu tempo, as travessuras ainda estavam muito em
voga e cumpria-se a tradição a preceito, não só nos dias convencionados, mas
durante todo o ano. Quando nos cansávamos de jogar à bola ou das brincadeiras
triviais, era sempre um bom dia para encetar uma travessura. Não era invulgar o
povo acordar sobressaltado com uma noitada mais profícua nesta matéria.
Hoje, vivemos uma outra era, onde a criatividade
perdeu terreno para o divertimento organizado, mas o gene dos travessos não se
extingui e é com satisfação que ouvimos, aqueles que ainda se lembram da
juventude, de vez enquanto, alguém reclamar contra alguma diatribe adolesceste.
Porque, de travessos e travessuras, todos temos e
fizemos um pouco.
Vitor
Silvestre