terça-feira, 4 de março de 2014

O Mil Homens



O Norberto era uma daquelas figuras que faziam parte da paisagem urbana da Gralheira. Anainho de corpo, mas temperamental, quando encolerizado arremetia contras um gigante. Como ia sucedendo numa discussão com o “Pelinho”, em que lhe dizia:
- Ó homem do diabo!...Eu até lhe chupo o sangue pelos calcanhares!
Ao que o outro, do alto da sua estatura de seis pés, retorquia de voz “apelinhada”:
- Pois, és um “marranico”, não chegas mais acima.
Mais tarde, quando o confrontávamos com a disparidade de categorias de peso, expunha o plano para derrubar aquele adversário com corpulência de um urso:
-Eu atirava-lhe com a samarra aos olhos e, enquanto ele se desembaraçava dela, dava-lhe uma marrada ao peito que o embaçava.
Nós riamos de vontade, ao imaginar que a cabeçada iria atingir o alvo alguns palmos mais abaixo, acertando numa parte muito mais sensível que o amplo peito do oponente.
No entanto, como não era pessoa de ressentimentos, aceitou fazer uma empreitada para o dito “Pelinho”, que consistia em encastrar uma levada num morro, para levar a água até uma horta que o contratante tinha arroteado num terreno baldio na Ponte Seara. Só que ao rasgarem a base de saibro, a parte superior perdeu sustentabilidade e desabou sobre o “Anório”, soterrando-o debaixo de uma massa de terra amarelada. Valeu-lhe a sua pouca superfície corporal, que lhe permitiu ficar encaixado nos interstícios da derrocada sem ser esmagado. Acorreu o dono da obra, encontrando o seu operário, quase inanimado, preso entre os dois pedregulhos. Perante a inoperância do socorro, o socorrido não perdeu a serenidade de espirito e disse-lhe:
- Dê-me já uma bofetada, antes que eu desmaie!
Ao que o outro, medindo aquelas enormes e rudes mãos, doseava a força com medo de lhe arrancar a cabeça. Vendo que apenas lhe fazia cócegas, saltou-se às lambadas a si próprio enquanto não lhe trazia a lata dos guilhos cheia de água para o despertar por completo.
 De estatura quase anã e robustez a condizer, o seu espirito indómito nunca aceitou as limitações físicas que a natureza lhe impusera, levando as suas capacidades ao extremo. Não é de espantar que a sua vida tenha sido recheada de ocorrências que lhe ameaçaram a integridade, como o acontecimento supra relatado. Noutra ocasião, foi projetado pela explosão de um tiro de pedreira que ajudava a desencravar, indo aterrar alguns metros ao largo, debaixo de uma chuva de estilhaços de pedra. Também foi picado por uma víbora; ficou pendurado, por uma perna, na bifurcação do tronco de uma oliveira; foi entalado pelos quartos traseiros de uma vaca, daí resultando uma hemorragia interna que, por sorte, drenou pelas fossas nasais; ainda outras de menor monta, mas que contribuíram para as mazelas com que padeceu nos últimos anos. 
Era vedor credenciado e surribador afamado, onde a experiência em conseguir detetar os “dentes da pedra”, supria o pouco peso da marra e a pouca potência da marretada.
Tinha um génio explosivo que o fazia espumar de fúria, quando acirrado nas suas convicções extremistas que lhe valeram a alcunha de “Hitler” e trouxeram alguns arrependimentos, como quando desapareceu da casa paterna com a respetiva mobília, que mais não era que a ferramenta de surribar. No entanto, qual filho pródigo, depois de ter chorado baba e ranho, lá fez as pazes com o “Tiu Isaías”, não sem antes alternar entre um pranto Madaleno e acessos de raiva desmedida.
A sua ausência será notada nos bancos do” Girassol”, cada vez mais vazios. O “Tiu Zé Monteiro”, em particular, deixou de ter um benfiquista ferrenho para confrontar o seu “portismo” doentio.
Na generalidade, perdem um companheiro de passar o tempo e que, ao partir, lembra-lhes o menos tempo que têm para passar.
 Lentamente, quase sem nos apercebermos, deixam-nos aqueles com quem crescemos e outros que vimos crescer. Ao vê-los desaparecer é que nos damos conta da idade e desmontamos a ilusória sensação de imortalidade da juventude.
O Norberto não era eloquente, nem grande, nem forte, mas possuía uma identidade que faz com que não seja mais um entre os demais. Por certo, será recordado não pelo que fez, mas por aquilo que era.
“Um pequeno grande Homem”
Vitor Silvestre