O Norberto era uma daquelas figuras que faziam parte
da paisagem urbana da Gralheira. Anainho de corpo, mas temperamental, quando
encolerizado arremetia contras um gigante. Como ia sucedendo numa discussão com
o “Pelinho”, em que lhe dizia:
- Ó homem do diabo!...Eu até lhe chupo o sangue pelos
calcanhares!
Ao que o outro, do alto da sua estatura de seis pés,
retorquia de voz “apelinhada”:
- Pois, és um “marranico”,
não chegas mais acima.
Mais tarde, quando o confrontávamos com a disparidade
de categorias de peso, expunha o plano para derrubar aquele adversário com
corpulência de um urso:
-Eu atirava-lhe com a samarra aos olhos e, enquanto
ele se desembaraçava dela, dava-lhe uma marrada ao peito que o embaçava.
Nós riamos de vontade, ao imaginar que a cabeçada iria
atingir o alvo alguns palmos mais abaixo, acertando numa parte muito mais
sensível que o amplo peito do oponente.
No entanto, como não era pessoa de ressentimentos, aceitou
fazer uma empreitada para o dito “Pelinho”, que consistia em encastrar uma
levada num morro, para levar a água até uma horta que o contratante tinha
arroteado num terreno baldio na Ponte Seara. Só que ao rasgarem a base de
saibro, a parte superior perdeu sustentabilidade e desabou sobre o “Anório”, soterrando-o debaixo de uma
massa de terra amarelada. Valeu-lhe a sua pouca superfície corporal, que lhe
permitiu ficar encaixado nos interstícios da derrocada sem ser esmagado.
Acorreu o dono da obra, encontrando o seu operário, quase inanimado, preso
entre os dois pedregulhos. Perante a inoperância do socorro, o socorrido não
perdeu a serenidade de espirito e disse-lhe:
- Dê-me já uma bofetada, antes que eu desmaie!
Ao que o outro, medindo aquelas enormes e rudes mãos,
doseava a força com medo de lhe arrancar a cabeça. Vendo que apenas lhe fazia
cócegas, saltou-se às lambadas a si próprio enquanto não lhe trazia a lata dos
guilhos cheia de água para o despertar por completo.
De estatura
quase anã e robustez a condizer, o seu espirito indómito nunca aceitou as
limitações físicas que a natureza lhe impusera, levando as suas capacidades ao
extremo. Não é de espantar que a sua vida tenha sido recheada de ocorrências
que lhe ameaçaram a integridade, como o acontecimento supra relatado. Noutra
ocasião, foi projetado pela explosão de um tiro de pedreira que ajudava a
desencravar, indo aterrar alguns metros ao largo, debaixo de uma chuva de
estilhaços de pedra. Também foi picado por uma víbora; ficou pendurado, por uma
perna, na bifurcação do tronco de uma oliveira; foi entalado pelos quartos
traseiros de uma vaca, daí resultando uma hemorragia interna que, por sorte,
drenou pelas fossas nasais; ainda outras de menor monta, mas que contribuíram
para as mazelas com que padeceu nos últimos anos.
Era vedor credenciado e surribador afamado, onde a
experiência em conseguir detetar os “dentes
da pedra”, supria o pouco peso da marra e a pouca potência da marretada.
Tinha um génio explosivo que o fazia espumar de
fúria, quando acirrado nas suas convicções extremistas que lhe valeram a
alcunha de “Hitler” e trouxeram
alguns arrependimentos, como quando desapareceu da casa paterna com a respetiva
mobília, que mais não era que a ferramenta de surribar. No entanto, qual filho
pródigo, depois de ter chorado baba e ranho, lá fez as pazes com o “Tiu Isaías”, não sem antes alternar entre
um pranto Madaleno e acessos de raiva desmedida.
A sua ausência será notada nos bancos do” Girassol”, cada vez mais vazios. O “Tiu Zé Monteiro”, em particular, deixou de ter um benfiquista ferrenho
para confrontar o seu “portismo” doentio.
Na generalidade, perdem um companheiro de passar o
tempo e que, ao partir, lembra-lhes o menos tempo que têm para passar.
Lentamente,
quase sem nos apercebermos, deixam-nos aqueles com quem crescemos e outros que
vimos crescer. Ao vê-los desaparecer é que nos damos conta da idade e
desmontamos a ilusória sensação de imortalidade da juventude.
O Norberto não era eloquente, nem grande, nem forte,
mas possuía uma identidade que faz com que não seja mais um entre os demais.
Por certo, será recordado não pelo que fez, mas por aquilo que era.
“Um pequeno
grande Homem”
Vitor
Silvestre