“O Ruço da Cara Linda”
Não era necessário ser versado em toponímia para destrinçar os fundamentos que deram origem a cognome tão pomposo. A tez clara e sarda e o escalpe aloirado eram provas cabais que ali não se imiscuíra sangue mouro ou latino. Apenas o corpo quase meão, moldado pelas carências de uma infância subnutrida, desvirtuava as origens celtas ou visigodas dos seus antepassados. Panchorrence de gema, pela força do seu carisma converteu-se no capitão-mor da legião de arruaceiros da dita freguesia. Não havia festa ou romaria onde o “Paula “, com o seu séquito de rufiões, não comparecesse para intentar alguma escaramuça colateral. Líder astuto e pragmático, não se regia por códigos de honra ou de nobreza. Nunca procurava o combate aberto e frontal, preferindo desferir ataques cirúrgicos em que o fator surpresa ou a vantagem dos números lhe garantisse uma sortida bem sucedida.
A única exceção a esta estratégia foi executada na invasão a Vale de Papas, no dia da festa consagrada à padroeira. Reuniu as hostes e, em formatura, irromperam pelas ruas do lugar tocando apitos, assumindo uma postura atrevida e provocatória, dizendo:
-Aqui manda a Panchorra!
Os papences, embora fossem em menor número, tinham salgadeiras mais fartas, caixas rasas e os longos dias de cavada tinham-lhes robustecido o corpo e o espírito para prepararem um ataque consertado. Conhecedores do labirinto de ruelas e quelhos da sua terra localizaram com facilidade os confiantes e estridentes invasores que, sem se aperceberem, foram cercados e atacados em duas frentes. Enfrentando o ataque simultâneo, cerraram fileiras, mas o ímpeto inicial da investida rompera as suas linhas e, para piorar a situação, o comandante “Ruço” e seu filho e lugar-tenente Anastácio foram postos fora de combate por dois golpes certeiros do “Cabeça de Vaca”, cuja cernelha pedia meças à de um touro de lide. Desgovernados e dispersos foram facilmente desbaratados, não lhes restando outra saída senão retirar o mais rápido possível, com os perseguidores no seu encalço. O caudilho, muito maltratado, acompanhou a debandada das suas tropas apenas escoltado pelo Anastácio, mas, perante o caos do maior desastre da sua carreira, manteve o garbo e a postura que o seu posto exigia e, ignorando o perigo, ordenou ao subordinado:
-Alto!..Tenho que “cagar”.
O subalterno, fosse pelo dever hierárquico ou respeito filial, obedeceu, ficando de plantão até o serviço estar terminado e ser dada ordem de marcha.
Apesar do retumbante insucesso, não feneceu o espírito bélico deste exército de insurretos incorrigíveis, apenas, no briefing subsequente, resolveram retornar às velhas táticas de guerrilha e continuarem a dar e receber monumentais cargas de paulada.
Aventurar-se no seu território era incursão arriscada que, quase sempre, redundava nalguma situação difícil de debelar. Assim aconteceu a um indivíduo de Gosende que, atraído pela luxúria de um baile à porta fechada, viu-se metido numa “alhada” quando o “Ruço”, no rescaldo da zaragata ocorrida na pista de dança, o descobriu escondido no caniço. Ao ver o olhar impiedoso do algoz, lançou-lhe uma humilde súplica:
- Ó “Tiu Paula” não me bata.
Ao que este, com sarcástico eufemismo, retorquiu:
- Eu não te bato, apenas encostas a cabecinha ao pau.
O “encaniçado”, desfeita qualquer esperança de clemência, mediu a distância e, quando o carrasco se preparava para lhe assentar uma cacetada, deu um salto indo-lhe embater, “a pés ambos”, no raquítico peito. O “Cara Linda”, “embaçado”e estirado no soalho, ainda gritou:
- Agarrai-o!!!...
Mas sem sucesso.
Os anos foram passando e, conjuntamente com as sequelas de uma vida atribulada, forçaram o descanso do guerreiro. Gozava a pensão de subsistência repartida entre o seu torrão natal e a rua José Patrocínio em Lisboa, enclave panchorrence estabelecido pelo êxodo rural. Podia já não percorrer feiras e arraiais, mas na sua mente pairavam os resquícios desse passado saudoso e, quando estava “ingasolinado” nalguma taberna do “Bairro Chinês”, ainda o ouviam murmurar:
-Aqui manda a Panchorra!
Foi num desses ébrios antros que um emigrante no Brasil lhe perguntou:
-O “ sinhor” é “o Ruço da Cara Linda”?
Ao que o interrogado respondeu com a costumada ousadia:
- Eu mesmo!
- Que “bacana”, como é que ainda é vivo?
Estupefacto, fez um esgar pronunciado e ripostou:
- Então porquê, já me mandou a morte?
-Não, mas como levou tanta pancada, pensei….
O velho “Paula” oscilando ao de leve a cabeça em sinal de assentimento, depois de uma breve reflexão, respondeu:
-Pois levei, mas o meu quinhão não ficou por dar.
De todos os inimigos e adversários que constavam do seu rol, os mais estimados eram os da Gralheira. Era um ódio endógeno alimentado desde o berço por um antagonismo secular, cada vez mais acirrado pelos indícios de modernidade que começavam a despontar nos seus vizinhos. A luz elétrica era o que lhe deixava o travo mais amargo. Talvez por ser o mais visível e servir como arma de arremesso na constante troca de galhardetes entre as duas aldeias. Por conseguinte, quando viu, duas décadas depois, iniciarem-se os trabalhos de instalação dos cabos e contadores para receberem a tão aguardada energia, o seu espírito ressabiado exultou de alegria. Não conseguindo conter a ansiedade, acompanhava a evolução da empreitada, perguntando insistentemente:
- Então, quando é que a luz está pronta?
Ao que os operários, para tranquilizar aquela alma inquieta, respondiam com diligência:
-Já falta muito pouco, não se preocupe que dento em breve verá a sua terra iluminada.
Ao que o impaciente inquiridor, monologando com os seus botões, dizia em surdina:
- Agora, é que vamos fazer ver aqueles “merdas” da Gralheira quem é que tem luz…
Os trabalhos foram evoluindo e foi marcada a data da inauguração para o dia da festa em honra de S.Lourenço. Toda a freguesia se engalanava para celebrar com pompa e circunstância a efeméride, para gáudio do decano comandante que aguardava triunfante a realização do evento. Mas, insondáveis são os desígnios divinos ou os caprichos do destino e, pouco tempo antes da data anunciada, finou-se o famigerado “Ruço da Cara Linda”. Foi com grande pesar que a notícia foi recebida pelas redondezas, mesmo aqueles que tinham sido alvo das suas emboscadas, com o passar do tempo, encaravam com complacência as ações deste senhor da guerra, afluindo em grande número ao funeral. Um dos mais pesarosos era o Anastácio, descendente em primeiro grau, confidente e fiel companheiro de muitas jornadas. Conhecedor das apetências do seu pai, no cortejo fúnebre, carpia a dor com um lamento muito peculiar:
- Aí paizinho!... Tanto querias ver a luz e não chegaste a ver a luz…
Não viu a luz, mas a sua imagem ainda resplandece na memória da nossa gente que o recorda como homem de uma época em que as disputas bairristas, geradas na ignorância e acicatadas pela miséria, eram mediadas pelo “jogo do pau”. Mais temerário que valente e mais ousado do que destro, é recordado como uma figura pitoresca, muito diferente da reputação de desordeiro que os seus atos indiciam. Permanece como personagem de uma era, à qual assisti ao epílogo, reflexa de um Portugal antigo, preservado por uma evolução comezinha e assimétrica, que poucos desejam… mas deixa alguma saudade.
Vítor Silvestre